Romã
Como se num inventário, ele deixou, em vida, uma de suas peças, de imenso valor sentimental, para sua filha, aquele maravilhoso relógio carrilhão, que há muitos anos tocava música de ninar.
O som delicioso, como de uma caixa de música, uma marimba na vertical, que a todos fazia lembrar ondas se aproximando da praia; era mágico, um suave remédio para dormir, inclusive sua menininha.
A doação foi feita com uma única condição, que ao lado daquela caixa de som mágico fosse colocada uma poltrona do papai, e que todas as sestas, após os almoços, fossem embaladas pela máquina de mostrar a hora e de encantar sonos.
Ele era um militar aposentado, aquela era sua única filha, que lhe dera um único neto; elos de carinho montavam aquela família, onde havia apenas um hiato, o genro.
Moravam em cidades vizinhas, bem próximas, o que permitia que ele passasse todos os domingos com sua filha e neto, e lamentavelmente também com o elo, que por afinidade, os laços de parentesco trouxeram para o convívio daquele grupo quase que perfeito, o marido de sua filha era um pária naquele grupo familiar.
As marcas pelo corpo, os olhos arroxeados da esposa mostravam claramente o caráter violento, a truculência daquele mastodonte, também chamado de marido.
O crápula mostrava apenas um comportamento que poderia ser chamado de racional, ele dava corda no relógio, com um intervalo exato de sete dias, e em todos os domingos à tarde, em um ritual quase que religioso, ele puxava as três correntes do relógio, levando para a parte superior os pesos, que alimentavam a movimentação do equipamento, presos na ponta de cada uma das correntes; assim se dá corda num relógio carrilhão: os pesos são levantados até a parte superior, e a força da gravidade cuida para que os pesos desçam, durante a semana, até a parte inferior.
Aquele domingo não foi diferente, o velho militar foi para a casa de sua filha, e a convidou para um almoço, num restaurante novo da cidade, e para lá foram os três: o pai, a filha, e o neto.
Com muita discrição, ele, muito acostumado com artefatos militares,antes de sair de casa, deixou no piso interno do relógio uma granada, com o pino de segurança preso a um dos mencionados pesos, que, por rotina, eram elevados em todos os domingos.
E o domingo continuaria não sendo diferente, se no momento em que o violento marido deu corda no carrilhão, puxando as correntes ele retirou o pino da granada, e uma tremenda explosão deu fim ao carrilhão, à cadeira do papai, e ao genro, mostrando o poder de destruição daquela romã, que os espanhóis chamam de granada