Sucessivas descargas elétricas dispararam flashes na janela, o ribombar tardio do trovão fez tremer a fuselagem. Fernão já não tinha certeza se se tratava apenas de um vácuo ou de queda livre. Rostos nervosamente amedrontados trocavam olhares de espanto.
Ele lera Capelo Gaivota, com a intenção de aprender a superar seu próprio limite. No entanto, sentia-se derrotado pelo ciúme, este mau sentimento era o grande obstáculo a transpor. Precisava estar aberto de corpo, e de mente, quando desembarcasse em Paris para conversar com Nathalie. Sabia que o desejo pela coisa proibida, tinha-se tornado o vulcão aceso com a tocha do diabo, que induziu Siquém a sequestrar Dina, o mesmo sentimento levara Páris a raptar Helena, e o mesmo vulcão que ardeu na alma de Hemor quando tomou Nathalie.
Fernão decidiu-se:
Pousaria no coração da amada para nunca mais decolar. Queria superar os limites de suas forças; rasgar as páginas que registram a vida de um homem traído e não esconder de si mesmo o segredo que muitos já sabiam: sua mulher o trocou por um piloto que voava sem licença para voar. Pobre diabo este Capelo. Não tinha boas lembranças de Paris: as tardes frias tocavam folhas secas no outono de seu coração.
Tremeu e suou.
Leu novamente o recorte do bilhete que a mulher deixara no criado. Seria uma forma de abordá-la: ‘Vim te devolver isto’. Dobrou-o cuidadosamente e o guardou outra vez na carteira. Entregaria a Nathalie, assim que desembarcasse em Paris. E reprisou a cena do abraço com a mãe no Aeroporto. As preocupações dela sobre um sonho que tivera com o filho, navegando sem timoneiro a chocar-se com o paredão da encosta. Tinha certeza de uma coisa: quando retornasse da França contaria tudo a Ravenala. Se nada conseguisse com Nathalie, não poderia perder a oportunidade de construir novo lar com outra pessoa. Pelo sim, pelo não, Ravenala sabia de sua viagem apenas para concluir o curso de aviador. Ele, Fernão, estava em um isolamento de quatro paredes de ferro e sequer ouvia o ronco das turbinas, tal sua compenetração na leitura de Bach.
Tudo estava silente, até que de repente, uma voz se fez ouvir em toda a aeronave: ‘Senhoras e senhores, estamos sobrevoando a costa Sul do Senegal. Temos nuvens pesadas em rota de colisão... Haverá mudança no plano de voo e atraso de trinta minutos na hora prevista para o pouso em Dakar. A temperatura externa é de quarenta e sete graus negativos. Boa noite e boa viagem!’
— Aceita um suco — disse sorridente a aeromoça.
— Sim. — respondeu Alice.
— Acho que nossos companheiros de viagem confirmaram presença na Convenção Internacional para as Artes e Literatura da França. Aquele não é o Arnaldo?
— É ele. E com o notebook aberto. Com certeza fazendo o enxugamento do poema que vai inscrever no Salon Du Livre.
— Será autobiográfico? Arnaldo pediu demissão do Marista e dizem que se separou da mulher...
— Autobiográfico? Isso é polêmico, polêmico demais — disse Solange — não leste as últimas postagens da Vania Lopes no Portal Literal? Pessoalmente é uma pessoa bem resolvida, mas sua poesia transpira desassossego da alma, inquietude e solidão. Ela consegue materializar seu estilo poético de forma, singular, principalmente, neste momento de convulsão por que passa o Gigante, que outrora deitado em berço esplêndido, se contorce agora, sobre o frágil assento de vidro do Congresso Nacional.
— Desculpe-me amiga. De que mesmo falas? Não consego ler as entrelinhas.
— Comunismo, minha filha: uma bandeira de sangue foi hasteada no palácio do grande reino do Maxixe.
— Agora não é mais das bananas?
— Banana é doce e macia. Não pode ser comparada a este abacaxi que nos é empurrado de goela abaixo. Mas, no caso de Arnaldo, creio que sejam arranjos articulados, ele é especialista nisso.
— Nascemos velhos — diz Alice — nossa sociedade tenta condicionar a todos a tradição, os costumes, etc.... Só quando desfrutando da razão crítica vamos nos livrar daquilo que não nos interessa, não nos motiva, então, jogamos fora grande parte do fardo que carregamos na mochila...
Solange vira a página do discurso.
— Ei, Alice! Por que Arnaldo não foi ao velório de Androceu?
— Foi. Eu o vi. Calado. Ele sempre está em clima de velório, mesmo que não vele ninguém, vela sua própria alma. Vigia a língua. Não diz asneiras. Quando fala, seu coração o escuta e é de si mesmo conselheiro. Não se envaidece. Tem alma leve, prestes a abandonar o corpo.
— Cruz credo! Estamos a trinta e seis mil pés. Isso é hora de falar em morte? Tenho pânico de voo alto! Prefiro o solo onde mantenho meus pés, bem firmes presos ao chão. O único voo que faço com segurança e sem medo é o literário. E com prazer também, é claro!
— Claro! Foi o voo literário que nos pôs nas asas deste avião. À morte, não temo. O que terá de ser feito, um dia será. Só não quero que o anjo das trevas venha apanhar-me agora. Você entende muito de voo literário, não é mesmo?
— Sou pesquisadora de Linguagem. Gosto de flutuar sobre textos, dando-me tempo para que muitas ideias amadureçam das ‘imagens’ que faço na leitura...
– Gosto de ler. Produzo textos depois de ler livros de Filosofia. Pego uma frase, um conceito e disparo a escrever. As palavras criam mundos, concluiu Alice.
Após acionar o botão para reduzir a velocidade, o piloto anunciou:
— Senhoras e senhores, estamos sob forte turbulência, por favor, mantenham os cintos afivelados. Obrigado.
Sivory virou a cabeça de lado e emudeceu.
— Vamos orar juntos, disse a irmã Paola, estendendo-lhe a mão.
***
Trecho de "Estrela que o vento soprou."
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