Azul & Preto
Quando Filomena sentiu a gravidez, junto veio um sentimento esquisito, um treco estranho.
Uma semana após aquele sentimento esquisito, veio a confirmação, estava grávida. Como dar a notícia para o marido? A futura mãe já tinha um pressentimento, um presságio de dar arrepio na espinhela!
Filomena tinha nove irmãos, ela foi a última a se casar, casou a pedido do pai. Senhor Benjamim, senhor austero, sisudo. Casado com dona Valentina, senhora muito dedicada à família, um exemplo de dedicação e devoção aos filhos e ao marido.
Família muito simples e sem grandes recursos, no almoço e na janta, as crianças comiam tudo que colocavam na mesa, raspavam as panelas de arroz, feijão, não sobrava uma folha sequer de alface.
O som das colheres raspando a rapa das panelas era demais, todos as refeições era aquela guerra entre os filhos, os pais se olhavam e se continham.
As roupas das crianças, eram todas de doações dos vizinhos. Apertavam a manga de uma camisa, ajustava o cóz de um short, endireitava a perna de uma calça, todos se vestiam simples, mas bem.
Só a roupa de ir à missa que era nova, comprada na loja, essa era usada só pra ver Deus. As roupas para ir em festas eram as ganhadas.
As crianças cresceram, tornaram-se adultos e foram casando, até sobrar Filomena, ela já com seus vinte oito anos de idade. Num belo dia o pai lhe chamou na breca:
-- Filomena você precisa se casar! Você tem que se casar, você vai casar! Entendeu?
A veia do pescoço do pai estufou tanto que Filomena pensou: meu Deus! Meu pai vai ter uma convulsão cerebral aqui! Um infarto do miocárdio! Assim ele vai ter um piripaque. Puta merda!
A carótida continuava dilatando, o rosto todo vermelho, lábios brancos, respiração confusa. Os braços balançavam, às vezes não. Quando o pai levou as duas mãos nas orelhas e tentou arriá-las com as unhas, Filomena disse:
-- Eu vou me casar pai, prometo, me caso antes que o senhor espera. Cacete!
Casamento era algo que não havia passado pela cabecinha de Filomena, ela gostava de tantas outras coisas para se entreter na vida, que casamento seria enfadonho. Pensava ela:
essa vida de fazer arroz, feijão, lavar panela, limpar casa... Ah não! Isso não. Já basta a vida que minha mãe levou, que mesmice pô!
Toninho da lambreta tinha dois sonhos na vida, só dois: ter uma lambreta e casar com Filomena. A lambreta do Toninho era toda vermelha, tudo, até os números do velocímetro eram vermelhos. Era tão barulhenta que quando passava, o povo falava:
-- Lá vai o Toninho Lambreta com sua lambreta desgraçada de barulhenta. Baderneiro desgraçado!
Senhor Benjamim gostaria que ela se casasse com o Jurandir, o jardineiro, mas achou por bem não interferir na escolha da filha, desde que se case, tudo bem! Vá lá.
Após o casamento, que aconteceu seis meses depois da conversa do pai com a filha, senhor Benjamim e a senhora Valentina, foram até o armário onde ficavam todas as panelas, pegaram uma por uma, eram várias, furaram, amassaram, retorceram-nas o quanto foi possível e enterraram.
A partir daquele dia, nunca mais fizeram almoço ou janta em casa. Almoçavam em self service, a noite tinham combinado com o dono de um restaurante jantar lá. Era servido um PF pra eles.
Dona Valentina comia arroz, feijão, três folhas de alface, um pedaço de carne de panela e um ovo cozido. O marido jantava sempre arroz, feijão, quatro folhas de alface, duas rodelas de tomate, um bocado de carne de panela e um ovo frito bem mole, pra gema colorir o arroz de amarelo alaranjado.
Nove meses se passaram muito rápido para Filomena, a ansiedade e o temor do que tinha em suas entranhas lhe matava aos poucos. Dia após dia, uma parte dela se perdia não se sabia onde! No dia do nascimento Filomena disse a si mesma:
É o fim! Seja lá o que for, que venha logo. Hoje, tenho certeza, eu morro. Ai de mim!
A criança nasceu chorando. A criança não nasceu e chorou. Dentro da barriga da mãe, já chorava, berrava. Os médicos e enfermeiros se olhavam sem saber o que estava acontecendo. Devido as dores, a mãe não ouvia que o filho berrava dentro de sua barriga.
Após todos os procedimentos, mesmo com o recém-nascido aos berros, o médico levou a criança até a mãe que já estava no quarto. Até aquele momento, o neném não havia aberto os olhos. Quando a mãe segurou a criança, ela começou a chorar, a criança sessou de berrar e ficou calminho!
O médico saiu sem entender nada e sem examinar a criança pela última vez. Valentina era um choro só, as lagrimas eram tantas que molhou a fronha todinha, precisou trocar três vezes. O pai, Toninho da Lambreta, estava amuado no canto do quarto de cócoras, não entendia nada.
O que esse pirralho fez com minha mulher pra ela estar desse jeito, carai! Mas que diabos! O que esse moleque tem meu Jesus amado? Pensava Toninho da lambreta com os olhos cheios de águas e com os punhos serrados.
Quando os pais adentraram o quarto e assistiam passivamente, entrementes, aflitos em ver a filha naquela situação, se abraçaram e choravam. Choraram tanto, tanto que fizeram uma promessa para santo Anselmo: vamos voltar a cozinhar em casa, para todos os nossos filhos, netos, genros e noras todos os domingos.
Ao terminarem de fazer a promessa, subidamente, a filha parou de chorar. A criancinha no colo da mãe apertou o dedinho dela, olhou para os avós, naquele momento, sem a menor dúvida, todos tiveram a nítida impressão e convicção:
o neném sorriu! Após sorrir, abriu os olhos. O olho direito azul, o esquerdo preto. eram a cor dos olhos da criança! Embora quando piscava, as cores invertiam, direito preto esquerdo azul.
Alguém, agachado dentro do quarto, não se sabe quem, falou baixinho, rilhando os dentes:
-- Jesus toma conta!
Quando Filomena sentiu a gravidez, junto veio um sentimento esquisito, um treco estranho.
Uma semana após aquele sentimento esquisito, veio a confirmação, estava grávida. Como dar a notícia para o marido? A futura mãe já tinha um pressentimento, um presságio de dar arrepio na espinhela!
Filomena tinha nove irmãos, ela foi a última a se casar, casou a pedido do pai. Senhor Benjamim, senhor austero, sisudo. Casado com dona Valentina, senhora muito dedicada à família, um exemplo de dedicação e devoção aos filhos e ao marido.
Família muito simples e sem grandes recursos, no almoço e na janta, as crianças comiam tudo que colocavam na mesa, raspavam as panelas de arroz, feijão, não sobrava uma folha sequer de alface.
O som das colheres raspando a rapa das panelas era demais, todos as refeições era aquela guerra entre os filhos, os pais se olhavam e se continham.
As roupas das crianças, eram todas de doações dos vizinhos. Apertavam a manga de uma camisa, ajustava o cóz de um short, endireitava a perna de uma calça, todos se vestiam simples, mas bem.
Só a roupa de ir à missa que era nova, comprada na loja, essa era usada só pra ver Deus. As roupas para ir em festas eram as ganhadas.
As crianças cresceram, tornaram-se adultos e foram casando, até sobrar Filomena, ela já com seus vinte oito anos de idade. Num belo dia o pai lhe chamou na breca:
-- Filomena você precisa se casar! Você tem que se casar, você vai casar! Entendeu?
A veia do pescoço do pai estufou tanto que Filomena pensou: meu Deus! Meu pai vai ter uma convulsão cerebral aqui! Um infarto do miocárdio! Assim ele vai ter um piripaque. Puta merda!
A carótida continuava dilatando, o rosto todo vermelho, lábios brancos, respiração confusa. Os braços balançavam, às vezes não. Quando o pai levou as duas mãos nas orelhas e tentou arriá-las com as unhas, Filomena disse:
-- Eu vou me casar pai, prometo, me caso antes que o senhor espera. Cacete!
Casamento era algo que não havia passado pela cabecinha de Filomena, ela gostava de tantas outras coisas para se entreter na vida, que casamento seria enfadonho. Pensava ela:
essa vida de fazer arroz, feijão, lavar panela, limpar casa... Ah não! Isso não. Já basta a vida que minha mãe levou, que mesmice pô!
Toninho da lambreta tinha dois sonhos na vida, só dois: ter uma lambreta e casar com Filomena. A lambreta do Toninho era toda vermelha, tudo, até os números do velocímetro eram vermelhos. Era tão barulhenta que quando passava, o povo falava:
-- Lá vai o Toninho Lambreta com sua lambreta desgraçada de barulhenta. Baderneiro desgraçado!
Senhor Benjamim gostaria que ela se casasse com o Jurandir, o jardineiro, mas achou por bem não interferir na escolha da filha, desde que se case, tudo bem! Vá lá.
Após o casamento, que aconteceu seis meses depois da conversa do pai com a filha, senhor Benjamim e a senhora Valentina, foram até o armário onde ficavam todas as panelas, pegaram uma por uma, eram várias, furaram, amassaram, retorceram-nas o quanto foi possível e enterraram.
A partir daquele dia, nunca mais fizeram almoço ou janta em casa. Almoçavam em self service, a noite tinham combinado com o dono de um restaurante jantar lá. Era servido um PF pra eles.
Dona Valentina comia arroz, feijão, três folhas de alface, um pedaço de carne de panela e um ovo cozido. O marido jantava sempre arroz, feijão, quatro folhas de alface, duas rodelas de tomate, um bocado de carne de panela e um ovo frito bem mole, pra gema colorir o arroz de amarelo alaranjado.
Nove meses se passaram muito rápido para Filomena, a ansiedade e o temor do que tinha em suas entranhas lhe matava aos poucos. Dia após dia, uma parte dela se perdia não se sabia onde! No dia do nascimento Filomena disse a si mesma:
É o fim! Seja lá o que for, que venha logo. Hoje, tenho certeza, eu morro. Ai de mim!
A criança nasceu chorando. A criança não nasceu e chorou. Dentro da barriga da mãe, já chorava, berrava. Os médicos e enfermeiros se olhavam sem saber o que estava acontecendo. Devido as dores, a mãe não ouvia que o filho berrava dentro de sua barriga.
Após todos os procedimentos, mesmo com o recém-nascido aos berros, o médico levou a criança até a mãe que já estava no quarto. Até aquele momento, o neném não havia aberto os olhos. Quando a mãe segurou a criança, ela começou a chorar, a criança sessou de berrar e ficou calminho!
O médico saiu sem entender nada e sem examinar a criança pela última vez. Valentina era um choro só, as lagrimas eram tantas que molhou a fronha todinha, precisou trocar três vezes. O pai, Toninho da Lambreta, estava amuado no canto do quarto de cócoras, não entendia nada.
O que esse pirralho fez com minha mulher pra ela estar desse jeito, carai! Mas que diabos! O que esse moleque tem meu Jesus amado? Pensava Toninho da lambreta com os olhos cheios de águas e com os punhos serrados.
Quando os pais adentraram o quarto e assistiam passivamente, entrementes, aflitos em ver a filha naquela situação, se abraçaram e choravam. Choraram tanto, tanto que fizeram uma promessa para santo Anselmo: vamos voltar a cozinhar em casa, para todos os nossos filhos, netos, genros e noras todos os domingos.
Ao terminarem de fazer a promessa, subidamente, a filha parou de chorar. A criancinha no colo da mãe apertou o dedinho dela, olhou para os avós, naquele momento, sem a menor dúvida, todos tiveram a nítida impressão e convicção:
o neném sorriu! Após sorrir, abriu os olhos. O olho direito azul, o esquerdo preto. eram a cor dos olhos da criança! Embora quando piscava, as cores invertiam, direito preto esquerdo azul.
Alguém, agachado dentro do quarto, não se sabe quem, falou baixinho, rilhando os dentes:
-- Jesus toma conta!