Paranoia
Havia dois homens na porta.
Óculos escuros e ternos impecáveis lhe emprestavam aquele ar misterioso de agentes especiais do cinema, mas ali, à luz do por do sol penetrando pelas grandes janelas fazia-os parecerem dois idiotas tentando se levar a sério. O fluxo de pensamentos não durou mais que um milésimo de segundo enquanto Elmer caminhava até a porta. Levava na mão uma bandeja de aço coberta com uma fina toalha branca.
O reflexo da luz do sol no aço criava losangos de luz que dançavam no chão.
Ao chegar perto um dos homens bloqueou o caminho e fez sinal para que levantasse a toalha, tinha numa das mãos uma compacta arma de choque. Era um padrão exigido para tudo que entrasse ali no quarto. Se pudessem, pensou, enfiariam um dedo até num copo de água para ter certeza que não era ácido nem nada parecido. Bando de lambe botas; perderiam um dedo pelo chefe e teriam de aprender a atirar com a mão esquerda, mas o fariam com total satisfação no olhar, lambe botas...
- estou com as duas mãos ocupadas, como vê. Poderia fazer esse favor?
– levantou um pouco mais a bandeja.
O outro sujeito se aproximou pelo lado contrário. Não disseram nada.
Em seguida ambos retiraram os óculos fitando a toalha por diversos ângulos; um deles se abaixou brevemente. Se eu tivesse um anel, pensou, eles fariam com que tirasse, afinal poderia ser uma arma contendo uma micro agulha com veneno na ponta ou sabe-se lá o que a mente já alucinada do velho consegui criar. “O senhor Arnaldo está paranoico e vai sofrer um infarto fulminante se não o internarem logo ou então irá estourar os miolos, se vai. E olhem como esses dois sabem agradar a loucura do velho”.
- o que tem ai? – perguntou o primeiro por fim. No calor do corredor gotas de suor escorriam pela lateral de seu rosto.
- sopa. Contém frango, algumas verduras, temperos e massa de sopa. Uma fatia de pão salgado e um copo de leite morno – o sujeito assentiu e levantou delicadamente a toalha. Ambos espiaram por baixo enquanto uma leve nuvem de fumaça escapou. Os três aspiraram o cheiro ardente da pimenta que Genésio usava nas receitas. E por um instante Elmer sentiu seu estômago roncar educadamente; como só um estômago de mordomo teria feito.
- como alguém pode comer sopa, nesse... – começou o segundo. A frase saiu baixa e distante e acabou não sendo concluída.
“mais uma prova da insanidade tomando a cabeça do velho” pensou Elmer mais uma vez. Estava se tornado redundante associar loucura ao patrão, mas era inevitável. Desde que fora afastado da presidência da empresa pelos filhos, cinco anos atrás, se tornara um tanto compulsivo.
Trancara-se no quarto exigindo a presença de homens na sua porta que deveriam vistoriar tudo que entrava assim como as escassas visitas. Não saía por nada do local que já contava com inúmeros aparelhos eletrônicos assim como um armário com diversos remédios. Pusera câmeras no corredor da entrada e também lá dentro. Havia uma inclusive no banheiro da suíte. A vigilância era realizada pela tevê, por ele mesmo e armazenada num disco rígido guardado embaixo do assoalho (segredo que todos desconheciam, até o próprio Elmer, talvez o seu mais confiável empregado).
O quarto era sua fortaleza e seu mundo. As janelas possuíam grades reforçadas e as vidraças foram substituídas por vidro blindado. Mantinha ali um telescópio apontado diretamente para a entrada da propriedade.
Nada devia escapar-lhe aos olhos e nada escapava. Se pensavam que podiam chegar ali com uma ambulância pronta para leva-lo ao manicômio disfarçada de carro de entregas ou fosse lá o que, ele saberia, ah saberia bem e se fossem capazes de chegar ali, até sua fortaleza tão bem guardada passando por cima dos obstáculos que punha, bem, ele ainda tinha um último recurso, disse a Elmer uma vez enquanto remexia calmamente a sopa com uma colher, um olhar clínico e desconfiado de um investigador experiente acompanhava o movimento.
Por fim decidiu que era somente sopa, mas exigiu a Elmer que provasse antes.
Naquele momento, pela fração de alguns segundos em que demorou de chegar perto da mesa e provar a sopa Elmer acreditou em tudo: o homem estava sendo perseguido; a sopa estava envenenada e ele, Elmer, um mero copeiro era a vítima fatal daquela maquiavélica conspiração familiar. Nada ocorreu. Engoliu a sopa morna e após convencer-se que estava bem, por mais um dia, o velho comeu seu
jantar.
Elmer aguardou sentado num cadeira observando os muros que cercavam a mansão da família Herrera, a estrada que seguia reta, fazia uma curva a esquerda e dividia-se em três um pouco mais a frente, os campos esverdeados e a fina garoa que caía tornava tudo ali um lamaçal sem fim.
Agora cá estava ele. Abandonando o corredor bem iluminado e adentrando o quarto mergulhado em sombras. Grossas cortinas cerravam as janelas impedindo a entrada da luz. O computador zumbia. Arnaldo estava sentado à esquerda numa poltrona; a cabeça baixa. Parecia cochilar, mas levantou-a assim que o rapaz pôs a bandeja sobre a mesa ao lado.
- seu jantar senhor – a frase já se tornara uma espécie de cumprimento entre ambos. O velho completou como de costume:
- está bem quente. Suponho...
- sim – disse enquanto a descobria. Calmamente dobrou a toalha alva e a pôs ao lado. Afastou-se buscando a costumeira cadeira próxima a janela enquanto o velho arrastava a bandeja para si. O costumeiro ritual se iniciou ali: ele remexeu a sopa calmamente aspirando os aromas no ar. Enfiou um dedo magro no miolo do pão e repetiu o gesto no leite. Elmer perguntava-se se seria chamado a prová-los como ocorrera N vezes.
Não desta vez.
Arnaldo comeu calmamente mergulhando o pão (agora desfeito em pedaços) na sopa. Gotas alaranjadas escorriam pela barba, ele não notava.
Ao fim engoliu o leite num único gole. Recostou-se e suspirou... Parecia prestes a dizer algo. Seus olhos buscaram os de Elmer enquanto seu tórax fez movimentos de regurgitação, subindo e descendo como num acesso de tosse, e naquele momento o rapaz sentiu o sangue gelar: algo está acontecendo. Ele pode estar tendo um ataque agora! Havia veneno na sopa! Agora é pra valer... o velho arrotou alto e ele deu um pulo sentado.
Rindo, disse:
- Genésio tem se superado, não é? Dê meus cumprimentos a ele. Peça-lhe apenas para diminuir um pouco a pimenta, sinto que minha garganta vai incomodar pelo resto da noite.
Um tanto trêmulo Elmer foi se levantando. Assentiu e ouviu um “claro senhor” sair de sua boca de maneira automática.
- você é um bom rapaz – concluiu se encaminhando para a tevê.
Saiu do quarto.
Uma ruga de preocupação estava impressa em seu rosto. Preocupação mais por ele próprio do que pelo velho, afinal, agora era ele que estava se tornando paranoico. Não havia nada de errado ali ah não ser com o senhor Arnaldo e ele devia tirar aqueles pensamentos da cabeça, devia afugentá-los como se faz a um cão sarnento nos rodeando pela rua, do contrário enlouqueceria e partiria pro outro mundo antes mesmo do velho, vítima de paranoias que a vivência ali estava lhe trazendo.
Devia pedir férias? ou uma demissão e uma fuga definitiva dali seria o melhor para si?
Passou pelos seguranças sem notar o olhar que ambos trocaram.
Não notou também que um deles impediu, pondo um dos pés de maneira cautelosa, que a porta do quarto se fechasse atrás de si.