A notícia que uma índia tinha sido capturada nas imediações da fazenda Campo Grande espalhou-se, rapidamente. Gente da circunvizinhança veio conhecer aquele vivente estranho. Até o padre que celebrava na capela da Catarina, também apareceu por lá.
— Não pude faltar a seu chamado, coronel Generoso. Obrigado por mandar o vaqueiro me avisar. Eu estava mesmo curioso para saber sobre uma índia capturada na fazenda Campo Grande.
— A notícia deve ter viajado léguas. Acrescentou Generoso.
— Creio que o senhor foi prevenido, ao mandar abater um boi para a festa. Vai chegar muita gente na fazenda. Isso é bom. Muita gente só não é bom, quando a comida é pouca.
O padre sorriu.
— Vou aproveitar o ajuntamento de gente, para celebrarmos a festa do vaqueiro. Meio fora de época, mas bem a calhar para festejarmos a vida do o vaqueiro que dado como morto, foi encontrado.
—Sou todo agradecido pela novidade. É a primeira vez que se reza uma missa de vaqueiro nesta fazenda.
— Onde está o vivente?
— A índia?
— Sim!
— Está amarrada na casinha de Curral. Venha ver, Padre!
A caminho do curral, uma multidão de homens, mulheres e crianças seguiam o sacerdote como ovelhas atrás do pastor.
— É bicho do mato — disse um deles.
— É gente, retrucou outro.
— Não come nem bebe.
— Sem comer pode até durar alguns dias; sem beber morre logo!
— Morre não! Na hora que a sede apertar. Ela bebe. Bicho sente o cheiro da água de longe!
— E água tem cheiro, abestalhado?
Pururuca baixou as vistas. Jurara a Nossa Senhora de Montes Claros, que não faria mais nenhuma arte com ninguém. Nem mesmo com os animais. Tudo é criatura de Deus.
João Velho acudiu.
— O animal vem farejando a água no cheiro da terra molhada.
Pururuca do Curral de Dentro arrepiou, como se uma onça farejasse seu rastro. Olhou para trás. Viu uma multidão que descia em direção ao curral. Sentiu-se protegido. A onça mostra-se ao da frente, mas ataca é o derradeiro.
— A índia vai morrer de fome.
— Preste atenção! Ela comeu churrasco!
— Quem é doido de dar churrasco a índio brabo!
— Comeu na mão de Onofre. Onofre deu carne mal passada. Quase crua. Ela comeu.
— O povo rico também come carne desse jeito. Sangue escorrendo.
— Porcaria! Deve ter ‘nicróbe’.
— Ô seu torresmo rançoso, a gente diz micróbio.
Alguém estalou os dedos, imitando o mastigar de torresmo: “trek... trek”. Pururuca se conteve. Não queria brigar por causa de apelido! Zé Pilão brigava. E a molecada pirraçava gritando por onde ele passava: “ Zé Pilão! Zé-prequeté! — Ninguém gosta de apelido. Dino vira uma fera quando é chamado de Dinotério.
— É tirado a valente, mas não honra as calças que veste. Já correu com medo de Capistrano. Agora finge ser amigo. Fala até em sociedade. E Turíbio Medonho vai na conversa dos dois de criar peixe-leiteiro...
— Amarelo, Isso é conversa pra boi dormir!
— Quem tá amarelo é Onofre! Paldo, paldo!...
— Pálido demais — corrigiu João Velho — Talvez carecendo de sangue...
— Tudo por causa de uma mordida à toa que a índia deu na ‘batata’ da perna dele.
— Os bichos se mordem na hora de fazer cria.
Onofre se aproxima, a tempo de ouvir o comentário de Pururuca.
— Prosa ruim...
Turíbio Medonho provoca.
— E se índia tiver um companheiro e vier atrás dela?
— Corto na 44 papo amarelo!
— Você acha que ele vem sozinho? Índio anda de magote!
— Vai tudo no mesmo saco...
— Calma, meu filho, disse o padre — índio é criatura de Deus. É preciso, no entanto, passar pela água do Batismo, para se tornar filho, e como filho, herdeiro da graça. Deus ao criar o homem, além da vida temporal, concedeu-lhe uma vida sobrenatural. Mas o homem afastou-se de Deus por causa do pecado.
O povo se aglomerou em volta do padre.
— O momento é propicio para uma confissão comunitária — disse o sacerdote.
Corina ergue o polegar direito:
— Aprovado. Churrasco e bebida, só depois da missa — dissera a anfitriã, abrindo um largo sorriso.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."