Os cães do Rio

Os Cães do Rio

O filho de Any faria 6 anos. Combinaram de passar um dia agradável em Nova Esperança com os “avós adotivos”. Gael adorava estar com os avós. O pai Isaque não pode ir devido a compromissos na universidade a qual era reitor. Quando chegaram ao sítio, os avós fizeram festa. O coração dos dois idosos estava intimamente ligados a Any e sua prole por laços paternos nascidos no dia em que ela foi resgatada do místico Río Italiano. Ela passou a amá-los na mesma proporção em que amava seus pais biológicos.

Any, após retornar ao Rio que lhe devolveu a vida, nunca mais conseguiu se afastar. Uma força além da compreensão humana lhe atraía. Era normal ela sempre se banhar em suas águas. O rio lhe devolveu a vida, mas lhe cobrou um preço. Quem bem lhe conheceu sabe que ela nunca foi a mesma pessoa novamente e por vezes assumia uma outra personalidade que lhe tornava uma pessoa fria, calculista e vingativa. Seu coração por vezes se tornava cativo às vontades do Rio que misteriosamente parecia ter vontade própria. O estranho brilho em seu olhar era reconhecido pelos idosos quando o Rio lhe chamava.

E mais uma vez ela atenderia a um chamado. Deixou o filho com os avós e foi atender. Como num ritual, se sentou as suas margens, e somente lhe observou por cerca de uma hora em mais profundo transe. Até que ouviu a voz do Rio lhe chamando. Retirou a roupa, e em completa nudez, novamente a mais bela mulher que já havia se banhado no Rio Italiano, foi possuída por suas águas mágicas.

Permaneceria ali por horas, mas foi alertada de que havia algo errado. Ela viu uma caixa fechada boiando e quase se afundando trazida pela correnteza do Rio. Ela tentou chegar a caixa antes que ela se afundasse, mas não conseguiu, ela havia se submergido por completo. Any mergulhou e conseguiu regatá-la, a retirou do Rio e abriu sendo surpreendida por seu conteúdo. Em seu interior havia dois filhotes de cachorros que estavam mortos, afogados. Any não conseguiu salvá-los. Ela se vestiu, e lágrimas de comoção escorreram de seus olhos. Decidiu enterrar os animaizinhos, mas antes que fizesse, ouviu gargalhadas distantes. Ela então seguiu o barulho pelas margens deixando os cachorros por ali para enterrar quando retornasse.

Em determinado ponto ela pode avistar na outra margem dois adolescentes que aparentavam ter cerca de 17 anos cada. Eles bebiam e zombavam dos animaizinhos que haviam jogado no Rio.

— Será que beberam muita água? — perguntou zombando.

— Parece que sim, as águas do Rio até baixaram. — Gargalhou o outro.

Any se escondeu atrás de alguns arbustos, e aquilo lhe trouxe a memória toda a violência que sofrera na sua adolescência às margens do Rio Italiano. Seu coração novamente se inclinou para a Vingança. Não poderia ficar impune! Se lembrou também do antigo ditado comentado pelos moradores de Nova Esperança. “Todo crime cometido às margens do Rio Italiano será vingado”. Ela então os viu partir ao som de gargalhadas, mas não esqueceria seus rostos.

Any retornou pelo mesmo caminho pensando na maldade dos corações humanos e que os cachorros mereciam ser vingados. Ao chegar no local, surpreendeu-se novamente, pois eles haviam desaparecido. Decidiu ir para casa dos pais. Chegando, já no quintal pode ouvir os sorrisos do filho e do idoso. Ambos brincavam com dois filhotes. Ela assustou-se momentaneamente ao ver que era os cãezinhos mortos que havia encontrado.

— Eles estão vivos! Onde os encontraram?

O idoso preocupou-se um pouco com as palavras de Any.

— Então eles estavam mortos! O Rio aprontou das suas mais uma vez. Fomos a sua procura que já demorava muito, e os encontramos molhados e com frio. Gael os trouxe.

— Eles estavam mortos pai! — Disse Any com voz baixa para que seu filho Gael não ouvisse.

— Quem morre nas águas do velho Rio, não necessariamente está morto. Não é mesmo minha filha?

Any balançou a cabeça afirmativamente e sorriu. O idoso continuou.

— Os propósitos do Rio ao trazer esses animais de volta são o que me assustam. Eles são seus agora filha.

***

Dois anos depois

Any e o filho haviam chegado ao sítio cerca de 3 horas atrás, o filho andava a cavalo com seu avô. Any disse a idosa que levaria os cachorros para passearem às margens do Rio. Era normal a acompanharem desde que ela os encontrou, mas nem de perto se pareciam com os indefesos filhotes de dois anos atrás. Eles haviam crescido, e tinham porte grande pela raça. Apesar de todo tamanho, eram dóceis.

Naquele dia porém, a idosa que conhecia bem Any, percebeu um estranho brilho em seu olhar, e chegou a pedir que ela não fosse. Any sorriu somente, lhe beijou a face e partiu com os cachorros.

Não demorou para Any avistar dois jovens que se embriagavam e se drogavam as Margens do Rio. Ela rapidamente os reconheceu, eram os adolescentes que haviam abandonado os filhotes para morrerem afogados no Rio. Não precisou pensar muito para ser invadida por um sentimento de ódio e indignação. Ela olhou para os cachorros e disse: — “Vão!”. A aparência dos animais instantaneamente mudou, e agora pareciam feras raivosas. Ambos se atiraram no Rio e nadaram até a outra margem onde os jovens se encontravam.

Any observava com o olhar débil, o mesmo de quando presenciou a morte de Miguel. Os cachorros foram rápidos, e quando os jovens viram, eles já estavam cercados. Os cães se aproximavam sorrateiramente aproveitando a distração dos jovens.

— O que é isso? — gritou um dos jovens.

Ambos se ergueram, um deles tentou correr, mas parou ao perceber que seria facilmente dominado. O pavor tomou conta do coração de ambos, que de pé se encontravam de costas um para o outro enquanto as feras raivosas se aproximavam. Sem nada para defenderem-se , seriam facilmente rasgados pelas feras. Um deles começou a chorar e a gritar “vão embora”, enquanto os cães se aproximavam cada vez mais em posição de ataque. Any sorriu sem emitir som algum, enquanto um músculo do seu braço esquerdo começou a tremer involuntariamente. Ela estava ansiosa.

Os cães deveriam atacar, mas pararam. Uma voz gentil e polida, combinando com sua aparência infantil lhes deu uma ordem.

— Parem!

O garoto Gael se aproximava dos cães enquanto o avô observava de longe em total confiança. As feras balançaram o rabo ao notarem a criança e subitamente voltaram a ser as dóceis e amáveis criaturas. Os dois jovens aproveitaram o momento e correram deixando seus pertences para trás. Any exibia agora um olhar de frustração enquanto os cães brincavam com o garoto. Em seguida o avô se juntou a eles e partiram em direção ao sítio.

Cerca de meia hora depois, Any também chegou ao sítio, chamou o idoso e o questionou!

— Por que não deixou os cachorros acabarem com aqueles assassinos? Foram eles que deixaram os cachorros para morrerem.

O idoso possuía olhos azuis glaciais fundos e a boca contraída demonstrando uma expressão de cansaço. Ainda assim lhe sorriu de uma maneira que desestruturou Any. Ela podia sentir quase de maneira palpável o quanto aquele senhor lhe amava.

— Entendo toda sua ira minha filha, mas esse não é o propósito do Rio. Ele os trouxe de volta com um propósito muito maior.

— Qual o propósito pai? E eles ficarão impunes? Cometeram um crime.

O idoso sorriu e lhe explicou:

— Eu ainda não sei por qual o propósito o Rio trouxe os cães de volta, mas um dia saberemos. E lembre-se sempre de que “nenhum crime cometido às margens do Rio Italiano ficará impune” minha filha.

• Conto que precede o livro “A imponderável Rainha do Rio”