1040-O AMANTE DE ROSEMEIRE
O DIÁRIO DE ROSEMEIRE
Continuação de “O bebê de Rosemeire”
Os vizinhos e muitos habitantes do bairro onde morava dona Rosa Artigas ficaram impressionados com o estranho fato ocorrido há duas semanas, quando um bebê morto foi encontrado entre as pernas de Rosemeire Artigas, cujo corpo aguardava o dia marcado para o funeral.
O achado, feito por dois funcionários do cemitério de Zarara e foi amplamente explorado pelos dois jornais da cidade, situada a 300 quilômetros de Caracas, na Venezuela.
Além de bizarro o fato, o enterro foi realizado sem uma investigação, o que intrigava também o administrador do cemitério, Miguel Asteargo, homem responsável, ex-funcionário de uma grande empresa, vitima das grandes confusões comuns na Venezuela nos dias do ditador Chavez. Jamais se envolvera em política, mas agora sofria dos desmandos da caótica administração do governo bolivariano.
O senhor Asteargo havia comunicado o fato às autoridades e estranhara que, em vez de uma investigação como se fazia necessário, houve uma ordem para que o enterro fosse realizado como estava previsto e que a história o bebê não fosse divulgada.
Longe de desejar criar confusão, o administrador procedeu como mandado, não deixando, porém, de pensar sobre o assunto.
A quem poderia interessar que todo o assunto fosse enterrado com Rosemeire e o bebê que nascera estando ela já morta? — perguntou-se.
Ficou intrigado também com o que dissera a filha mais velha de Rosemeire, quando ele estivera no barraco da família, para dar a notícia.
“— Senhor, foi feitiçaria. Eu vi na porta do quintal...”
No momento, achou que a mocinha estava imaginando coisas ou mentindo. Fora até rude com ela, quando respondeu:
“— Deixa de bobagem, menina. Você não viu nada!”
Mas, agora, alguns dias depois, algo sentia que havia algo mais do que um fato estranho. Sentiu o cheiro da maldade e o mistério de um possível crime.
“Vou ver porquê recebi aquelas ordens para praticamente esconder o fato. Alguém queria que nada fosse divulgado. Vou descobrir.”
Assim, pensando, partiu para a investigação.
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A rotina de administrar o cemitério era tranquila e Miguel Asteargo tinha tempo para sair quando quisesse. Subiu no velho jipe e voltou ao casebre onde viviam dona Rosa, a mãe, e os cinco filhos de Rosemeire.
Como se fosse uma visita para reconfortar a velha senhora e animar os espíritos de todos, procurou conquistar a confiança de todos. O que fez logo na primeira meia hora, inclusive da filha mais velha, Maria Dolores, a quem havia dirigido palavras que pareciam uma zanga, na visita anterior.
Dona Rosa, lastimosa, foi informando com detalhes o que o visitante desejava saber.
— Rosemeire trabalhava na Assembleia Nacional. Era uma das muitas empregadas que os deputados empregam para ajudarem eles nos seus gabinetes. Rose não era muito letrada, não, acho que ficava por conta da limpeza, fazer e servir cafezinhos ao deputado e às visitas que o deputado recebia. Morava lá na capital e enviada todos os meses um dinheirinho que dava pra manter este barraco, as crianças vestidas e bem alimentadas. Nossa vida era muito simples.
— As crianças vão à escola?
— Elas estavam na escola, e a menorzinha ficava na creche da prefeitura. Mas tudo foi fechando e agora estão sem escola nem nada.
— E Maria Dolores? Quantos anos ela tem? Ela trabalha?
— Tem 16 anos, é muito esperta, inteligente, mas num tem emprego, não senhor. Tá todo mundo procurando serviço, tem muita loja e fabrica fechando. Agora ela ta aprendendo a costurar com dona Zenilda, nossa vizinha.
— E Rosemeire? Vinha visitar a senhora de vez em quando?
— Não, ela dizia que gastava muito na viagem, e preferia mandar o dinheiro que ia gastar, prá sustento das crianças. Eu ficava com muitas saudades dela, o senhor compreende.
— Sim.
Dona Rosa levantou-se, foi até um armário de portas de vidro, abriu e tirou um porta-retratos com uma foto.
— Esta é ela, faz poucos meses.
Miguel Asteargo pegou o porta-retratos. A foto era um instantâneo cujo fundo mostrava o prédio da Assembleia Nacional.
“Linda morena” pensou ele. Encantou-se com o sorriso, os cabelos longos até os seios fartos, e a postura altaneira, elegante.
— Ela já estava grávida, aqui nesta foto?
— Sim, no começo.
— E o pai...?
— Ela era viúva, o marido morreu há mais de cinco anos, num desastre de trem. Ela não queria me dizer quem era o pai dessa criança...
“Uma beleza dessas não fica muito tempo sozinha. Ainda mais no meio dos políticos, todos os calhordas...” — E logo saiu a pergunta de seus lábios:
— Quem era o seu patrão, o deputado...
Antes que dona Rosa respondesse, Maria Dolores falou, com um jeito exaltado e quase soando como uma censura:
— Rômulo! Rômulo Diaz. A gente não gosta dele, não, é muito exibido.
— Dolores! Não fala assim, não, menina. Ele era muito bom para sua mãe.
— Um exibido, sim. Sorria para todas as mulheres. Até prá mim ele andou sorrindo e piscando...
Miguel interveio, antes que as duas entrassem numa discussão sobre o galante deputado.
— Rosemeire escrevia cartas prá vocês? Prá você, Dolores, ela mandava cartas, cartões de aniversário, coisas assim?
Ele mesmo não sabia para que desejava saber de cartas de Rosemeire. Mas Dolores não lhe deu tempo para divagações.
— Não, carta nunca escreveu. Nem cartão. Mas eu fiquei com o diário dela, o senhor quer ver?
“Puxa, um diário! É tudo que eu preciso para saber de alguma coisa...”
— Sim, por favor.
A mocinha foi rapidamente ao quarto e voltou com um volume encadernado, pequeno, com a capa brilhando pela proteção de plástico.
— Tome, o senhor pode ler...
— Dolores! — exclamou dona Rosa, a avó. — Onde foi que...?
— Mamãe me deu, sim. O senhor pode ler...
Sentiu-se desconcertado, mas intimamente feliz por ter em mão um diário da falecida Rosemeire. Era tudo o que precisava.
— Você me empresta para eu ler com calma, em casa?
— Pode sim, mas tem que me devolver, viu?
Asteargo deu-se pressa em despedir-se. Subiu no jipe e dirigiu-se rapidamente ao seu escritório.
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Zarara é uma cidade pequena da Venezuela, situada a uns 300 quilômetros a sudeste da capital, Caracas. Tinha, à época em que os fatos aqui narrados aconteceram, Rômulo Diaz como representante da cidade na Assembleia Nacional. Assim que eleito encheu seu gabinete de eleitores que o elegeram. Entre elas estava Rosemeire Artigas, que passou a morar em Caracas, a fim de trabalhar no gabinete de Diaz.
Fazia já quatro anos que Diaz fora eleito, e nesse período, tomara-se de interesse por Rosemeire, chegando até a visitar sua mãe e os filhos pequenos da viúva Rosemeire.
Estas e outras informações estavam no diário de Rosemeire, naturalmente não nesta ordem. As informações que se seguiam eram muito mais detalhadas, principalmente com o relacionamento entre o deputado e ela, que se tornara alvo de presentes e gentilezas por parte de Diaz.
Miguel Azteargo lia o avidez (e com alguma dificuldade devido à péssima caligrafia da autora), não se importanto nem um pouco de estar entrando na intimidade da morta, bem como da do deputado.
Procurava informações sobre um crime (ele estava certo disto) e não podia ater-se a detalhes de ética ou de privacidade.
E à medida que ia lendo, a história ia tomando o contorno de um romance entre os dois, que culminaria no registro de poucas palavras do ápice do relacionamento amoroso.
Singelamente, Rosemeire registrara na página do dia quatro de abril de 2010:
“Hoje saímos para jantarmos juntos. Depois Rômulo me levou ao motel “Dos coraciones” onde vivi a noite mais maravilhosa de minha vida.”.
Asteargo ficou olhando fixamente para a parede, como se vendo uma mosca azul, que o levaria à solução daquele caso.
A seguir: “O Amante de Rosemeire”
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 09 de fevereiro de 2018
Conto # 1.040 da Série INFINITAS HISTÓRIAS