Outro passageiro consultou o relógio. Estavam voando há cinquenta minutos sem darem uma palavra, até que um deles irrompeu o silêncio.
— Conheço o senhor de algum lugar — disse Carrero.
— Fui bancário, tive uma vida cigana. Naveguei por este Brasil urbano e caboclo, à procura do caminho das índias e mesmo aposentado, nunca parei de ticar as partidas dobradas nas curvas do meu caminho. Moro em Brasília. Não sei até quando a Disney Brasileira me suportará.
— Muitos bancários, quando se aposentam, tomam o caminho das Letras. Vais ao encontro no Salon Du Livre?
— Apresentarei ‘Música para Pensar’ É a minha mais recente obra. Produzi também outras na juventude que, hoje, renego, e seria capaz de escrever nelas: ‘incorrigível. Só o fogo!’ Sou um professor que escreve. Nisto também me assemelho a Afrânio Peixoto, se bem que Afrânio tinha outros títulos que não alcancei.
— Gostei de ‘Musica para Pensar’, também no sentido de cuidar das feridas da alma e do coração. A música tem uma linguagem própria de dizer aquilo que é impossível à língua do mortal vivente. Ela tem a capacidade de auxiliar na cura da ansiedade, angústia, estresse e até depressão...
— O amigo me pareceu maestro não só das letras, também das notas musicais.
— A música é meu chão, e o livro o mundo por onde viajo carregando um universo de indagações.
— Vem a inspiração e depois a transpiração que escorre no suor do talhar a pedra bruta — Acrescenta Gilson Chagas.
— Verdade. A obra é feita de toques e retoques. Se o papel não se dobra, jamais chegará à forma geométrica alguma. Não raras vezes, executamos um monumento como se o edificássemos em bronze, e no sopro de uma crítica desfavorável, nosso edifício é levado pela borrasca ao abismo do esquecimento.
Carrero desafivelou o cinto.
A vida é uma ficção que se escreve em livros. E sentiu o cheiro de cravo e canela, escorrendo na caneta de Jorge que, embora amado, teve também seus dias de suplicio na masmorra do exílio. Abriu a bagagem de mão e retirou dela um livro: “ Isso aqui é meu mundo.”
Reclinou o assento buscando conforto no pequeno espaço entre as poltronas. E prosseguiu.
A literatura virtual tem muita patacoada, mas não há dúvida de que também há boa medida, calcada, sacudida e transbordante de bons talentos. Tu mesmo penetraste bem com Jacó na tenda de Labão. Abençoaste Raquel, sem excomungar Lia. Camões fez o mesmo em sua lira de 14 cordas.
— A Internet aproxima o homem do mundo distante, mas, afasta o próprio homem de si mesmo, e daquilo que lhe é próximo. Tudo com um simples ‘clicar’ de teclas. É faca de dois gumes, um lado amolado e outro cego.
Gilson fica imaginado qual seria o efeito produziria no homem pelo lado cego da internet. E o cortante? Ele ainda divagava sobre os dois gumes, quando Carrero retoma a palavra:
— Não acha perigoso disponibilizar tua imagem neste universo virtual?
— Talvez sim, talvez não! Começamos a morrer a partir dos primeiros segundos de vida.
— O livro da vida tem seu preço: Algumas páginas foram escritas com suor, lágrimas e sangue.
Depois de um meio-sorriso, concluiu:
— Li um artigo de Francisco Miguel sobre Prosopagnosia. Que doença estranha! Não reconhecer o rosto das pessoas?... ‘E aí começava meu martírio’ — diz Miguel.
—É... O Chico é mesmo estranho no ser e no fazer. Foi meu grande incentivador no caminho das Letras.
— Foi? Não incentiva mais ou já morreu?
— Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos. Ele tem mais de oitenta janeiros nos couros. Rogo a Deus que eu possa também chegar a essa idade e que o Chico ultrapasse, em muitos anos, o marco até agora alcançado.
— Somos pedras que se consomem — diz Carrero — Meu livro, isso aqui, isso aqui é meu mundo, meu universo. Isso aqui é minha maravilha! Eu gosto tanto disso aqui! É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro...
Fernão olhou de soslaio. Lia muitos livros, mas nunca pensara em escrever um. Poesia, muito menos. Apesar de que, quase todo jovem se sente poeta do amor. Mas, seu mundo era diferente! Não se apegava a outra coisa, senão às suas miniaturas de fórmula 1. Irritava-se facilmente com os colegas que o tratavam por Gaivota: “Fernão Capelo tem pena de gaivota em vez de cabelo.” As afrontas, embora ingênuas, feriam sua autoestima, mas, apesar dessas lembranças, sentia saudade dos tempos de colégio. A galhofa que lhe faziam do nome, deixou marcas que permaneceram na vida adulta. Por causa delas, só se apresenta como Fernão ou como Noronha. Nunca Fernão de Noronha, tampouco Fernão Capelo, para evitar associação ao pássaro de Bach.
Preocupado com as frequentes turbulências, Fernão de Noronha Capelo, acionou o serviço de bordo. A comissária aproxima-se:
— Deseja alguma coisa, senhor?
— Tenho a impressão de que voamos baixo demais...
— Estamos em nível de cruzeiro.
— Vejo o azul do mar.
— O céu é lindo porque é azul da cor do mar. Fique tranquilo, o comandante Hemor é muito experiente.
Flash...
Acenderam-se a luzes de alerta e uma voz feminina anunciou: Senhoras e senhores! Este é o voo AB 612, com destino a Paris. Nimbos se aproximam. Por favor, mantenham a poltrona em posição vertical e apertem os cintos. Obrigada!
A voz era de Nathalie .
Fernão fitou-a demoradamente e percebeu nela o rosto cheio, e o corpo mais gordinho. Sentiu Cezar Ubaldo sussurrar em seu ouvido: “Carregamos no ventre a hóstia consagrada em partos menores... No ventre carregamos vida, então!...Carregamos no ventre o sol da manhã, a manhã irmã...” Ele, Fernão, nunca desejara tanto ver o sol da manhã, da tarde..., ou mesmo ainda que apenas uma nesga de luz, um sinal qualquer de vida fora das paredes da aeronave... Queria contemplar o semblante de rostos amenos, diferentes daqueles espavoridos de seus companheiros de voo.
***
Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."
— Conheço o senhor de algum lugar — disse Carrero.
— Fui bancário, tive uma vida cigana. Naveguei por este Brasil urbano e caboclo, à procura do caminho das índias e mesmo aposentado, nunca parei de ticar as partidas dobradas nas curvas do meu caminho. Moro em Brasília. Não sei até quando a Disney Brasileira me suportará.
— Muitos bancários, quando se aposentam, tomam o caminho das Letras. Vais ao encontro no Salon Du Livre?
— Apresentarei ‘Música para Pensar’ É a minha mais recente obra. Produzi também outras na juventude que, hoje, renego, e seria capaz de escrever nelas: ‘incorrigível. Só o fogo!’ Sou um professor que escreve. Nisto também me assemelho a Afrânio Peixoto, se bem que Afrânio tinha outros títulos que não alcancei.
— Gostei de ‘Musica para Pensar’, também no sentido de cuidar das feridas da alma e do coração. A música tem uma linguagem própria de dizer aquilo que é impossível à língua do mortal vivente. Ela tem a capacidade de auxiliar na cura da ansiedade, angústia, estresse e até depressão...
— O amigo me pareceu maestro não só das letras, também das notas musicais.
— A música é meu chão, e o livro o mundo por onde viajo carregando um universo de indagações.
— Vem a inspiração e depois a transpiração que escorre no suor do talhar a pedra bruta — Acrescenta Gilson Chagas.
— Verdade. A obra é feita de toques e retoques. Se o papel não se dobra, jamais chegará à forma geométrica alguma. Não raras vezes, executamos um monumento como se o edificássemos em bronze, e no sopro de uma crítica desfavorável, nosso edifício é levado pela borrasca ao abismo do esquecimento.
Carrero desafivelou o cinto.
A vida é uma ficção que se escreve em livros. E sentiu o cheiro de cravo e canela, escorrendo na caneta de Jorge que, embora amado, teve também seus dias de suplicio na masmorra do exílio. Abriu a bagagem de mão e retirou dela um livro: “ Isso aqui é meu mundo.”
Reclinou o assento buscando conforto no pequeno espaço entre as poltronas. E prosseguiu.
A literatura virtual tem muita patacoada, mas não há dúvida de que também há boa medida, calcada, sacudida e transbordante de bons talentos. Tu mesmo penetraste bem com Jacó na tenda de Labão. Abençoaste Raquel, sem excomungar Lia. Camões fez o mesmo em sua lira de 14 cordas.
— A Internet aproxima o homem do mundo distante, mas, afasta o próprio homem de si mesmo, e daquilo que lhe é próximo. Tudo com um simples ‘clicar’ de teclas. É faca de dois gumes, um lado amolado e outro cego.
Gilson fica imaginado qual seria o efeito produziria no homem pelo lado cego da internet. E o cortante? Ele ainda divagava sobre os dois gumes, quando Carrero retoma a palavra:
— Não acha perigoso disponibilizar tua imagem neste universo virtual?
— Talvez sim, talvez não! Começamos a morrer a partir dos primeiros segundos de vida.
— O livro da vida tem seu preço: Algumas páginas foram escritas com suor, lágrimas e sangue.
Depois de um meio-sorriso, concluiu:
— Li um artigo de Francisco Miguel sobre Prosopagnosia. Que doença estranha! Não reconhecer o rosto das pessoas?... ‘E aí começava meu martírio’ — diz Miguel.
—É... O Chico é mesmo estranho no ser e no fazer. Foi meu grande incentivador no caminho das Letras.
— Foi? Não incentiva mais ou já morreu?
— Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos. Ele tem mais de oitenta janeiros nos couros. Rogo a Deus que eu possa também chegar a essa idade e que o Chico ultrapasse, em muitos anos, o marco até agora alcançado.
— Somos pedras que se consomem — diz Carrero — Meu livro, isso aqui, isso aqui é meu mundo, meu universo. Isso aqui é minha maravilha! Eu gosto tanto disso aqui! É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro...
Fernão olhou de soslaio. Lia muitos livros, mas nunca pensara em escrever um. Poesia, muito menos. Apesar de que, quase todo jovem se sente poeta do amor. Mas, seu mundo era diferente! Não se apegava a outra coisa, senão às suas miniaturas de fórmula 1. Irritava-se facilmente com os colegas que o tratavam por Gaivota: “Fernão Capelo tem pena de gaivota em vez de cabelo.” As afrontas, embora ingênuas, feriam sua autoestima, mas, apesar dessas lembranças, sentia saudade dos tempos de colégio. A galhofa que lhe faziam do nome, deixou marcas que permaneceram na vida adulta. Por causa delas, só se apresenta como Fernão ou como Noronha. Nunca Fernão de Noronha, tampouco Fernão Capelo, para evitar associação ao pássaro de Bach.
Preocupado com as frequentes turbulências, Fernão de Noronha Capelo, acionou o serviço de bordo. A comissária aproxima-se:
— Deseja alguma coisa, senhor?
— Tenho a impressão de que voamos baixo demais...
— Estamos em nível de cruzeiro.
— Vejo o azul do mar.
— O céu é lindo porque é azul da cor do mar. Fique tranquilo, o comandante Hemor é muito experiente.
Flash...
Acenderam-se a luzes de alerta e uma voz feminina anunciou: Senhoras e senhores! Este é o voo AB 612, com destino a Paris. Nimbos se aproximam. Por favor, mantenham a poltrona em posição vertical e apertem os cintos. Obrigada!
A voz era de Nathalie .
Fernão fitou-a demoradamente e percebeu nela o rosto cheio, e o corpo mais gordinho. Sentiu Cezar Ubaldo sussurrar em seu ouvido: “Carregamos no ventre a hóstia consagrada em partos menores... No ventre carregamos vida, então!...Carregamos no ventre o sol da manhã, a manhã irmã...” Ele, Fernão, nunca desejara tanto ver o sol da manhã, da tarde..., ou mesmo ainda que apenas uma nesga de luz, um sinal qualquer de vida fora das paredes da aeronave... Queria contemplar o semblante de rostos amenos, diferentes daqueles espavoridos de seus companheiros de voo.
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Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."