À SETE PALMOS DA REALIDADE


Inumação: Substantivo feminino; ato, processo ou efeito de inumar, enterro, sepultamento.

 

Como que despertando de um estado letárgico induzido por medicamentos, ou mesmo similar à prostração que assoma após uma noite de sono profundo decorrente do consumo excessivo de álcool, Fernando abre os olhos vagarosamente, a princípio, ele não entende o que se passa, onde está, e até por uma fração de segundos, quem é. Olhando à sua volta, ele identifica, num estado ainda nebuloso, proporções métricas retangulares, bem como um nível logo acima de seu rosto, de contornos abobadados. Por um momento, indaga-se o porquê de vestir um terno em meio a flores, após breve mirada ao seu derredor, o qual agora começa a tomar formas mais tangíveis e identificáveis. É uma urna mortuária! Sim, um caixão, porra!!. O que antes parecia um sonho, descortina feições de pesadelo, contudo, tragicamente real. Após batidas incessantes junto à tampa de seu imposto ataúde, seguidas por gritos incessantes por ajuda, Fernando é dominado por uma calma quase que insana, consciente, como aquela trazida apenas pelo mais profundo desespero ou aceitação.

Por um minuto, ele tenta lembrar como foi se encontrar naquela situação. Ele dormira? Morrera? Era aquilo de fato um sonho, ou a transição para o outro mundo, tal qual retratada pela ficção? Não, como ateu, ele não acreditava em vida após a morte, e de toda sorte – que palavra apropriada! – aquilo tudo estava realmente acontecendo. Os gritos não poderiam ser ouvidos, nenhuma ajuda viria de tal empresa; muito pelo contrário, o oxigênio se esvairia mais rápido, antecipando uma morte, agora iminente, extremamente macabra. Mesmo em meio aquele cenário surreal, Fernando tenta se manter calmo após os frustrados brados por socorro.

Sim, ele provara o jantar preparado por Suzana, sua esposa, e após alguns minutos de conversa, o resto da noite parecia um espaço em branco...até... o seu funesto despertar. Agora ele se lembrava.. . lembrava-se da mesa de jantar, de um baque seco... e depois...a escuridão, sem dor, sem contrações, sem pensamentos. Deixe isso para lá, ele reflete, descubra uma forma de sair daqui! Ainda tomado por uma quase que anacrônica placidez, talvez por ainda não acreditar totalmente que aquilo estava de fato acontecendo, ele apalpa as vedações do caixão, nota que a tampa não está totalmente afixada – Ótimo!, a madeira é fina, não de boa qualidade – ele se pergunta por que foi enterrado em tão barato ataúde, para logo em seguida realizar a conotação bizarra de tal indagação, aliás, tal situação poderia, na verdade, ser a sua salvação.

Com um soco que surpreende a si próprio, pela força e precisão, Fernando consegue trespassar a madeira da tampa do caixão – Dever ser por causa da adrenalina, que intensifica a produção de força, em situações de stress – pensa o enclausurado, enquanto cada vez mais desesperado por ar, ele prossegue em sua atividade até que as dobradiças da urna cedam em decorrência dos repetidos golpes. A lufada de ar fresco é revigorante, caso tivesse sido inumado – Meu Deus, a ideia ainda parece absurda e pouco crível - diretamente na terra, estaria certamente perdido. Resta agora forçar a vedação de abertura da catacumba, a qual, por certo, também seria ultrapassada.

Deslizando lentamente para fora do féretro, consumido pelo cansaço, Fernando repousa alguns segundos arfando incessantemente, e quando recuperado, inicia novos golpes, agora utilizando os pés ainda parcialmente entorpecidos, contudo, as batidas vão ficando cada vez mais distantes e menos potentes, até que parecem cessar por completo. Uma luz um tanto quanto fora de contexto emerge em seu campo de visão até que seus olhos se abram, ainda tímidos ante a luz, como se  os globos oculares fossem utilizados pela primeira vez.

Ele percebe-se deitado em um leito, acético, alvo, como um quarto de hospital. Suzana encontra-se sentada ao lado de sua cama, a fronte voltada ao nada, contempla vidrada as paredes brancas do recinto; olhos inchados, vermelhos, ainda derramam uma lágrima agora tímida, evidência de que muitas teriam sido vertidas em curto lapso temporal. Causa-lhe estranheza os cortes profundos, parcialmente desenfermados que permeiam seu lobo frontal.
     - Suzana, o que aconteceu, meu bem? Tive o pior pesadelo da minha vida – diz Fernando, quase que derramando lágrimas ele próprio, diante do alívio ao cerificar-se de que tudo não passara de um sonho. Suzana, lança-se sobre ele, agora chorando convulsivamente.
     - O que foi, querida?
     - Não se lembra de nada? Nós quase morremos. Batemos o carro na viagem após o jantar. Você ficou em coma por seis semanas.

Ele tenta abraçá-la, porém, sem sucesso. Estaria amarrado ao catre hospitalar por alguma razão médica? Sua esposa se afasta lentamente como que temerosa. Neste momento, sua visão desliza, acompanhando o olhar de Suzana, para então deparar-se com um cenário dantesco, de forma símile à sua ultrapassada realidade onírica, por demais incrível. Seus braços e pernas se foram. Mas por quê? Vislumbra-se tão somente um tronco e pescoço isolados, como um condenado em segregação punitiva. Após alguns segundos de apática letargia, ele entende que seus membros forma amputados em decorrência do acidente, cuja memória ainda não cruzava sua mente, tal qual uma amante arredia e ingrata.

A visão provoca um misto de asco e compaixão, seu corpo magro envolto por uma túnica nosocômica deixa revelar suas pernas e braços seccionados, já cicatrizados, artificialmente e para sempre ceifados de praticar suas funções. Impossibilitado de emitir qualquer palavra, Fernando grita até sua garganta queimar; pelo esforço e pela bílis que assoma ao seu esôfago. Nenhum som é produzido, por alguns segundos, minutos, até que então seriam liberados, como o urro de um animal mortalmente ferido, ou quem sabe, permanentemente mutilado.





imagem-google (filme: Sepultado Vivo - Buried Alive, 1990)
Marcus Hemerly
Enviado por Marcus Hemerly em 05/04/2018
Reeditado em 23/10/2018
Código do texto: T6300373
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