Nas primeiras águas, berra o boi solto na manga,
corre o cavalo batendo os cascos,
atrás de uma égua no cio...
As fantasias eram coisas de virgem que jamais consegue explorar, completamente, os meandros da concepção. Ela criava imagens incompletas dos cinco minutos de intimidade dos Castros, que Morgana ouvia atrás da porta e lhe contava:
‘Tá na hora de oferecer um sacrifício no altar...’
— É sacrilégio comparar o momento de intimidade do casal com o sacrifício de oblação.
— E não é um sacrifício? É trabalho pesado, dá uma suadeira!...
— Se é sacrifício, por que te mostras tão entusiasmado?
— O próprio Deus colocou um atrativo para que as espécies se multiplicassem. Se não houvesse néctar na flor, abelha ia trabalhar de graça na polinização?
— Espere pelo menos eu terminar a reza.
Ravenala riu, recordando-se do que lhe confidenciara a amiga sobre o código do senhor Martiniano Castro: “Tá na hora de oferecer um sacrifício no alta.” Então, ela pensou em receber de Robert um convite para oferecerem um sacrifício de agradável odor.
O tempo de espera parece interminável: horas, minutos e segundos chegam devagar. Mas logo, se vão apressados. A passagem deste para o outro lado da vida, pode durar apenas alguns segundos. E no virar de cada página, vai-se um mês e vem outro, vai-se um ano e dezenas de anos vão correndo, escorrendo como águas no regato.
A idade avança: um quarto de século contempla a beleza da moça solteira. Não há guarda-chuva contra o tempo que tritura as quatro estações da vida. Esses dias a Morga ainda era uma menina, a agora já vai se casar...Ravenala teve uma ponta de inveja, uma santa inveja.
Deitou-se, acomodou a cabeça, olhou para o teto e buscou por lembranças dos tempos do Marista. Morgana se casara, e ela, Ravenala, continuava no caritó, olhando as paredes uma enfermaria.
No silêncio de sua dor, ouviu a voz de sua alma: ‘Vem Ravenala!’ E viu surgir o cavalo esverdeado do apocalipse seis sete.
Seu cavaleiro tinha por nome Morte; e a região dos mortos a seguia com outro nome, chamado pelos humanos de dengue hemorrágica.
Só um mal daquela monta a impediria de ir ao casamento da Morgana. O pai gracejava: ‘O mal de Ravenala é dengue. Está dengosa minha menina. Um dia a ciência vai mudar o nome da dengue para Mal de Talita Cumi’.
Desta vez ela não riu. Sentia febre, dores musculares e vontade de ficar deitada...
— Amanhã, receberás alta, disse o médico.
Ela lamentou: “Faz dois dias que Morgana se casou! E eu ainda solteira, curtindo dengue em leito hospitalar.” Fechou as asas como uma gaivota em voo vertical para erguer-se das águas com um troféu no bico. Precisava agir logo. Abriu um livro, leu Iracema e viu Alencar colocar a índia nos braços de Martim: ‘trêmula e palpitante como tímida perdiz... ’ É hora da estrela. ‘Por que não agora? Por que não soltar seu grito de gaivota, e derrubar as muralhas de Jericó?’ Estava cansada de comprar os beijos de Amarildo com o salário da loja. Amarildo não pensava no futuro! Gastava tudo com anabolizantes e mensalidades numa academia de subúrbio.
Nada guardava do salário recebido. Por certo, não assimilava a sabedoria que vem deste os tempos da Grécia Antiga: Nenhum ganho oferece maior segurança do que economizar o que se tem. Então, ela tomou os originais de seu livro, ainda em construção, e dirigiu-se à casa de Robert.
Logo que sentaram, surgiu o primeiro impasse: Pelo gosto de Ravenala, declinaria o nome de todos os colegas do Marista, até o gol de Sivory que deu ao colégio o título de campeão em 1980, merecia registro. Haveria de conseguir algum papel para muitos colegas, mesmo que fosse uma ponta, uma passagem rápida, como figurante de telenovelas. Robert examinou os rascunhos, e deu seu parecer:
— A primeira coisa a ser definida é o público-alvo, depois, constroem-se as cenas, escolhem-se personagens e traçam-se perfis, cenas e cenários. É preciso introduzir cada capítulo, sem, contudo fazer um prefácio dele. Cuidar da arte como se cuida de um filho em tenra idade. Colocar uma pitada de sal e outra de açúcar, levedar a massa e produzir um alimento de agradável sabor.
— Ora, Bob! Isso me parece uma receita de bolo.
O escritor deve retirar as amarras, deixar o cavalo solto no pátio, de modo a permitir que os leitores também cavalguem. Personagens precisam sair das páginas como Raquel e Alvarenga, para socorrer Biba acidentada na calçada. É a fantasia denunciando a realidade, fazendo o lado social da literatura.
Não se deve esvaziar o tinteiro, para que, com o resto da tinta, o leitor possa pintar novo quadro e recontar a história. ‘Não leste Carrero? Ele tomou por empréstimo a deusa mitológica dos gregos. E apresentou Osíris na carne de Leonardo em relacionamento incestuoso com Isis. Confira o Livro dos livros, e descubra onde Alencar encontrou o mel para colocar nos lábios de Iracema! Onde pensas que Homero pegou Helena de Tróia e a entregou a Páris?...
Ora, Dina, a filha de Jacó, nas mãos de Homero, tornou-se Helena de Menelau. Páris pode ser o príncipe de Siquém que raptou Dina. Simeão e Levi estão representados por Aquiles e Agamenon em guerra para libertar Dina, a filha de Jacó, que se tornara Helena de Homero. A intertextualidade é essencial para provocar a verve do leitor.
— Sem dúvida, os cruzamentos literários enriquecem a obra. No entanto, cuidado com o Anjo Negro! Mude a denominação do anjo. Podes ser processada por segregação. Racismo. Anjo das trevas parece mais adequado.
— Anjo das Trevas não tem o mesmo efeito literário que Anjo Negro. Efeito teológico, talvez tenha. Literário, não! Ademais, negro é cor. Não raça.
— Vais escolher então, o efeito teológico ou literário?
— A Bíblia pode ser considerada como literatura?
Robert ficou embaraçado.
— Isso é polêmico. Os livros bíblicos apresentam a estrutura literária praticada na época em que foram escritos. Sob essa ótica, é literatura. Mas... se fosse literatura, não estaria comprometida com a verdade. Enfim, religião não é uma ciência, nem a Bíblia, um livro. Embora etimologicamente o seja, a Bíblia é uma pessoa. É Deus que fala.
— Vais deixar estas coisas numa prancheta? Inscreve-as num livro, a fim de que tua palavra seja eficaz e duradoura. É preciso transformar o negrume em brancura e colocar um ponto de luz na escuridão.
corre o cavalo batendo os cascos,
atrás de uma égua no cio...
As fantasias eram coisas de virgem que jamais consegue explorar, completamente, os meandros da concepção. Ela criava imagens incompletas dos cinco minutos de intimidade dos Castros, que Morgana ouvia atrás da porta e lhe contava:
‘Tá na hora de oferecer um sacrifício no altar...’
— É sacrilégio comparar o momento de intimidade do casal com o sacrifício de oblação.
— E não é um sacrifício? É trabalho pesado, dá uma suadeira!...
— Se é sacrifício, por que te mostras tão entusiasmado?
— O próprio Deus colocou um atrativo para que as espécies se multiplicassem. Se não houvesse néctar na flor, abelha ia trabalhar de graça na polinização?
— Espere pelo menos eu terminar a reza.
Ravenala riu, recordando-se do que lhe confidenciara a amiga sobre o código do senhor Martiniano Castro: “Tá na hora de oferecer um sacrifício no alta.” Então, ela pensou em receber de Robert um convite para oferecerem um sacrifício de agradável odor.
O tempo de espera parece interminável: horas, minutos e segundos chegam devagar. Mas logo, se vão apressados. A passagem deste para o outro lado da vida, pode durar apenas alguns segundos. E no virar de cada página, vai-se um mês e vem outro, vai-se um ano e dezenas de anos vão correndo, escorrendo como águas no regato.
A idade avança: um quarto de século contempla a beleza da moça solteira. Não há guarda-chuva contra o tempo que tritura as quatro estações da vida. Esses dias a Morga ainda era uma menina, a agora já vai se casar...Ravenala teve uma ponta de inveja, uma santa inveja.
Deitou-se, acomodou a cabeça, olhou para o teto e buscou por lembranças dos tempos do Marista. Morgana se casara, e ela, Ravenala, continuava no caritó, olhando as paredes uma enfermaria.
No silêncio de sua dor, ouviu a voz de sua alma: ‘Vem Ravenala!’ E viu surgir o cavalo esverdeado do apocalipse seis sete.
Seu cavaleiro tinha por nome Morte; e a região dos mortos a seguia com outro nome, chamado pelos humanos de dengue hemorrágica.
Só um mal daquela monta a impediria de ir ao casamento da Morgana. O pai gracejava: ‘O mal de Ravenala é dengue. Está dengosa minha menina. Um dia a ciência vai mudar o nome da dengue para Mal de Talita Cumi’.
Desta vez ela não riu. Sentia febre, dores musculares e vontade de ficar deitada...
— Amanhã, receberás alta, disse o médico.
Ela lamentou: “Faz dois dias que Morgana se casou! E eu ainda solteira, curtindo dengue em leito hospitalar.” Fechou as asas como uma gaivota em voo vertical para erguer-se das águas com um troféu no bico. Precisava agir logo. Abriu um livro, leu Iracema e viu Alencar colocar a índia nos braços de Martim: ‘trêmula e palpitante como tímida perdiz... ’ É hora da estrela. ‘Por que não agora? Por que não soltar seu grito de gaivota, e derrubar as muralhas de Jericó?’ Estava cansada de comprar os beijos de Amarildo com o salário da loja. Amarildo não pensava no futuro! Gastava tudo com anabolizantes e mensalidades numa academia de subúrbio.
Nada guardava do salário recebido. Por certo, não assimilava a sabedoria que vem deste os tempos da Grécia Antiga: Nenhum ganho oferece maior segurança do que economizar o que se tem. Então, ela tomou os originais de seu livro, ainda em construção, e dirigiu-se à casa de Robert.
Logo que sentaram, surgiu o primeiro impasse: Pelo gosto de Ravenala, declinaria o nome de todos os colegas do Marista, até o gol de Sivory que deu ao colégio o título de campeão em 1980, merecia registro. Haveria de conseguir algum papel para muitos colegas, mesmo que fosse uma ponta, uma passagem rápida, como figurante de telenovelas. Robert examinou os rascunhos, e deu seu parecer:
— A primeira coisa a ser definida é o público-alvo, depois, constroem-se as cenas, escolhem-se personagens e traçam-se perfis, cenas e cenários. É preciso introduzir cada capítulo, sem, contudo fazer um prefácio dele. Cuidar da arte como se cuida de um filho em tenra idade. Colocar uma pitada de sal e outra de açúcar, levedar a massa e produzir um alimento de agradável sabor.
— Ora, Bob! Isso me parece uma receita de bolo.
O escritor deve retirar as amarras, deixar o cavalo solto no pátio, de modo a permitir que os leitores também cavalguem. Personagens precisam sair das páginas como Raquel e Alvarenga, para socorrer Biba acidentada na calçada. É a fantasia denunciando a realidade, fazendo o lado social da literatura.
Não se deve esvaziar o tinteiro, para que, com o resto da tinta, o leitor possa pintar novo quadro e recontar a história. ‘Não leste Carrero? Ele tomou por empréstimo a deusa mitológica dos gregos. E apresentou Osíris na carne de Leonardo em relacionamento incestuoso com Isis. Confira o Livro dos livros, e descubra onde Alencar encontrou o mel para colocar nos lábios de Iracema! Onde pensas que Homero pegou Helena de Tróia e a entregou a Páris?...
Ora, Dina, a filha de Jacó, nas mãos de Homero, tornou-se Helena de Menelau. Páris pode ser o príncipe de Siquém que raptou Dina. Simeão e Levi estão representados por Aquiles e Agamenon em guerra para libertar Dina, a filha de Jacó, que se tornara Helena de Homero. A intertextualidade é essencial para provocar a verve do leitor.
— Sem dúvida, os cruzamentos literários enriquecem a obra. No entanto, cuidado com o Anjo Negro! Mude a denominação do anjo. Podes ser processada por segregação. Racismo. Anjo das trevas parece mais adequado.
— Anjo das Trevas não tem o mesmo efeito literário que Anjo Negro. Efeito teológico, talvez tenha. Literário, não! Ademais, negro é cor. Não raça.
— Vais escolher então, o efeito teológico ou literário?
— A Bíblia pode ser considerada como literatura?
Robert ficou embaraçado.
— Isso é polêmico. Os livros bíblicos apresentam a estrutura literária praticada na época em que foram escritos. Sob essa ótica, é literatura. Mas... se fosse literatura, não estaria comprometida com a verdade. Enfim, religião não é uma ciência, nem a Bíblia, um livro. Embora etimologicamente o seja, a Bíblia é uma pessoa. É Deus que fala.
— Vais deixar estas coisas numa prancheta? Inscreve-as num livro, a fim de que tua palavra seja eficaz e duradoura. É preciso transformar o negrume em brancura e colocar um ponto de luz na escuridão.