Corina refrescava sua memória: "Campo Grande gerou em minha alma toda boa lembrança que tenho de mim: a sede da fazenda,  bois pastando na manga fronteira ao curral, folias de reis, e  as cantorias no final da tarde...'


  Absorta em seus pensamentos, totalmente entregue às suas lembranças, não percebeu que Chanana passara cedo em casa. Embora fosse costume ela vir só à tardinha, naquele dia, passou cedo e procurou chegar sem ser vista pela mãe. Precisava conversar a sós com Dulcineia sobre o assunto já ventilado antes, em sopro miúdo e velado: o título de mãe solteira  ou de viúva que teve um filho, não era o  melhor ‘diploma’ para uma diretora  de escola.

 —  Não quero abortar! Preciso de sua ajuda, maninha!
 — Vou conversar com Jê, na primeira oportunidade, disse a irmã.

Dulcineia alinhavava os pensamentos. Ensaiava argumentos para convencer Jeremias a adotar um filho. E na hora da sesta, o projeto de enxoval do bebê estava pronto em sua cabeça.

— Meu dengo, só tivemos Ravenala e não engravidei mais. Gostaria muito de ter um menino ou uma menina.

 E Jeremias violou a carta do  escudeiro.

— Dulcinha, dulcíssima Dulcineia,  faz o que mais te aprouver.
— Obrigado, meu Quixote!  Você sabe como é a língua do povo...
—E como faremos?
—Simulo uma gravidez e Chanana esconde a dela.

Dulcineia improvisou uma almofada e atou ao abdome durante dois meses. Depois, pode retirá-la. Estava verdadeiramente grávida, ao passo que Chanana não apresentava pouca barriga.

A família cresceu. Jeremias refez os cálculos, ajustou o orçamento familiar e matriculou também Victor Augusto no colégio dos padres.

— Mana, estou grávida de verdade Disse Dulcineia.
— Estímulo...Estímulo -- disse Chanana
— Podemos continuar com a simulação.

Chanana escondeu sua  gravidez, até   completarem-se os dias de dar à luz seu filho.

— E quando nascer o meu filho  e o teu filho, direi que tive parto duplo --  acrescentou Dulcineia — E continuarás imaculada, porquanto diante do olhar humano, tive parto duplo.
Riram.
— Como vou esconder a barriga? As pessoas vão  reparar o aumento  abdominal e comentar...
— Mulher magra como você, mostra pouca barriga. Sabes o que fazer...

Algumas mulheres fazem de modo perigoso: comprimem o feto por baixo das vestes, usando algum artifício para pressionar a barriga. O bebê fica espremido lá dentro. Sem espaço, sem folga para flutuar no líquido amniótico, nasce deformado. E quando não morre muito jovem, sobrevive mais um corcunda de Notre Dame.

— Cruz credo! Onde leste isso, maninha?
— Não subestime minha inteligência. Tem mais...

Os abortivos  atuam como armas destrutivas ainda mais poderosas. Poderosíssimas, por isso, algumas crianças nascem com um buraco no cérebro, ou morrem antes de nascer. Mas nem todo aquele que nasceu com um buraco no cérebro, sofreu tentativa de aborto.

— Ah!...

Completados os dias dela, Dulcineia deu à luz seu filho. Mas... Chanana...Chanana viveu uma gravidez psicológica. E foi feliz. Realizou seu sonho de ser mãe, e passou a tratar Victor Augusto,  como filho.

A família cresceu. O menino também. Era hora de pensar em uma boa escola para os filhos. Jeremias não gostava dos colégios de padres nem de freiras, pois, ali os pratos da balança utilizam dois pesos. As mensalidades eram iguais para todos: pobres e ricos, mas o tratamento dos ricos é diferenciado. Ele jamais se esquecera da madre superiora, toda de preto como se fosse o corvo que atacou Santo Expedito.  Se a madre era santa ou anjo sem luz, Jeremias não sabia, nem queria julgá-la, mas os bilhetes reclamando travessuras que não fizera, iam para a casa dele, enquanto o filho do rico furtava mamão  na chácara das freiras, e o pai do menino rico, nenhuma reclamação recebia. Foi por insistência da mulher que Jeremias matriculou os filhos no Marista. Pelo menos, Padre Davi parecia agir com imparcialidade: os alunos que se destacavam no colégio,  logo o padre imaginava para eles alguma função na Igreja. Robert Louis Pastorelli daria um bom pastor, tem boa oratória e, por certo, impressionará os fiéis com sua homilia. Entusiasta, o sacerdote colocava um manto de freira na cabeça de Ravenala e com tristeza, o hábito de Madalena em Ramayana. Tinha estima de pai por seus alunos, por isso, os adotava como se fossem carne de sua carne. Preocupava-se com Ramayana mais do que com os outros, e jamais se esquecia de clamar sobre ela a misericórdia de Deus, apesar disso, escrevia no muro das   lamentações: ‘Se não mudar, esta menina vai transformar-se numa estátua de sal’.

Naquele dia, a aula pareceu endereçada a Ramayana. O padre professor, não teria abordado o tema se ela não houvesse perguntado, publicamente, aquilo que em particular, já lhe dissera sobre música funk: A música prepara o ambiente para a ação do espírito de Deus, se provém dele ou, para a ação do mal, se vem do Mal.

Existe uma canção nova, uma música nova, que é do homem novo, que é da nova criatura. É Deus fazendo novas todas as coisas, através da música. Existe também uma canção velha, a música do homem velho, da velha criatura. A música velha, mundana, alienante e pornográfica, deve ser banida entre os cristãos, para que não guardem material explosivo em seu interior. Do mesmo modo que escolhemos  o alimento para o corpo, também deve-se escolher o alimento espiritual. A música pode fazer bem ou mal. Tudo vai depender dos frutos que ela produzir na mente e no espírito de quem ouve. O rock, por exemplo, como ferramenta do diabo, praticamente, passou como passa também a moda; até as palavras saem de uso e dão lugar a outras novas. Tudo tem seu tempo, agora é o tempo do funk que veio com mais forças e poder que o rock. Cuidado com os atrativos! O perfume e a beleza das cores atraem a presa para a armadilha da anêmona.  “Em analogia ao que disse  sando Agostinho, posso estabelecer um paralelo também em relação à música:  “Não permita que tais atrativos acorrentem tua alma.”

 A música é boa, se der bons frutos. Feito para curar, o remédio que cura também mata. Tudo na vida depende de uma escolha, uma opção. Pode-se escolher entre o Bem e o Mal, entre andar na luz ou nas trevas. Também as pinturas, os quadros ditos psicografados, representam um perigo. “Cuidado com a flor-de-pedra, cuidado com a fumaça que sai da pedra!  Não  queiras ir para Nínive quando eu te mandar para Tárcis!”  E sem disfarçar, olhou por cima dos óculos para um canto da sala, na direção de Ramayana.

— Pô, meu! Tipo assim! Cada um tem seu gosto. Pega leve, teacher! Gosto de rock. Quero ser Groupie, e pronto! Sou dona de meu nariz. Ninguém manda em mim...
— Cale-se ou expulso a senhorita da sala.
Não precisou expulsá-la. Ramayana saiu dando rabanada. Terminada a aula, Robert   indaga:
— Agora há pouco o professor dizia: Não queiras ir para Nínive, quando eu te mandar para Tárcis... Não seria o contrário: não queiras ir para Tárcis, quando eu te mandar para Nínive?

Ora! — explica o padre —  Alexandria tinha uma biblioteca com 700.000 volumes em rolos de papiro; Nínive, talvez a segunda maior da antiguidade, com 30 tábuas contendo ensinamentos de Astrologia. Quem sabe, Jonas além de profeta era também vendedor de livros, e preferiu vender suas ideias em Tárcis que não tinha biblioteca?! (Ironizou). Agora imagine. Não queiras ir para Nínive, quando eu te mandar para Tárcis e não queiras ir para Tárcis, quando eu te mandar para Nínive, têm o mesmo princípio: a obediência.

— Não seria por causa do fanatismo religioso acarretado pela prática da  Astrologia que Jonas foi mandado para Nínive?
— Sim, em parte sim! Os ninivitas eram pagãos. Adoravam os astros como se fossem deuses. Ainda hoje, muitas pessoas não saem de casa sem consultarem o horóscopo. E se esquecem de elevar sequer uma prece ao verdadeiro Deus, criador de todas as coisas. Adoram a criatura, quando deveriam adorar o Criador.

No decorrer do tempo,  as profecias do padre se cumpriram, em parte. Robert   não fez o teste vocacional. E entre os alunos do Marista daquela época, apenas Vitor Augusto ingressou no seminário. Morgana abraçou a vocação ao matrimônio; Ravenala, ora quente, ora fria, guardava seu maior   tesouro em vaso de barro. E Ramayana virou uma boneca de trapo, uma espécie de deusa do fogo das memórias medievais. Deusa em nada virgem e muito menos sagrada, mas uma figura estrambótica  a desfilar nas noites da Vila Mimosa. Roubando.  E quando  roubava  para comprar as drogas que consumia, tinha sempre um livro na mão por álibi: Sou estudante! Foi apenas um esbarrão...  
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Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..
Contato: adalbertolimapoetadedeus@gmail.com