PARTO DUPLO

 
Era dia de São Sebastião.
O sol beijava a janela, depois se escondia atrás de uma nuvem. Jeremias conta as horas amanhecidas na insônia de uma noite mal dormida.

Teve vontade de perguntar o que a mulher tratara no dia anterior com a irmã. E torcia que fosse problema na escola. Talvez a gravidez precoce de alguma aluna, dessas que exibem nas vestes sua condição rebelde de fazer sexo com seus ídolos.

Mas sobre essas coisas nem o direcionamento espiritual oferecido pelo padre Davi, amenizava o furor daquela  juventude rebelde dos anos noventa. Chanana tinha formação em Psicologia. Dava bons conselhos, mas agora era ela que precisava ser aconselhada.


 O velho Jeremias tentou passar uma borracha na memória:  lidava com números e contava dinheiro dos outros no banco. Vendia as horas... E nos finais de semana, reunia os amigos em torno da churrasqueira, assava lagarto na brasa e jogava truco. Mas agora, morando no Rio de Janeiro,  reunir jogadores de truco    é mais difícil que encontrar  pamonha no hipermercado Freeway.

— Pai, essa bandeira não existe mais. Nem supermercado vende pamonha.
— Por isso digo que jogar truco no Rio é tão raro quanto encontrar pamonha em supermercados. Truco é coisa de mineiro! É bom jogar  truco mas, as mulheres não gostam que seus maridos se divirtam. Que  deem boas gargalhadas:  Truuuuco, rato! Toma seis, ladrão de meus tentos!’
— Imagino como seria Turíbio Medonho jogando truco contra Pururuca do Curral de Dentro.

Pururuca tem pouco sal na moleira. Seu projeto de criar avião poedeiro, tem menos consistência do que aquele de  peixe-leiteiro, na verdade, ele vendia leite de cabra como se contivesse ômega três: leite de boto criado em cativeiro, anunciava o rótulo da embalagem.

Sei não, muito estranho o comportamento dos vaqueiros de Campo Grande.


Ravenala deixou os parceiros jogando truco no Rio de Janeiro e foi tocar boi de invernada em Campo Grande.

Amarildo conversava macio, feito mulherzinha, na presença de Turíbio Medonho. Foi quando Corisco e Lampião,  partiram para cima de João Velho. A intenção do boi Corisco era dar suporte à fuga de Lampião. E o plano era matar o vaqueiro que oferecesse maior resistência: pegar João Venho, nalgum momento de distração... O plano falhou. Os bois  de invernada não contavam com a intervenção do vaqueiro novo, que em se aproximando pelo lado que o boi  enxergava pouco, deu um chega pra lá com o peito do cavalo.  Lampião caiu dos quartos e foi pisado por cascos, que vinham em sua retaguarda, transportando toneladas de carne.

Corisco fugiu.
Ficou devendo mais um favor a Lampião. Também José Lino devia favor a João Velho. Estivera em confronto com ciganos. E na hora agá,  João surgiu, de repente, com arma na mão para defender o filho. Pôs abaixo a tenda, e com ela,  todo o moral cigano. Sem a proteção  da tenda, o cigano Aguilar, viu-se nu, surpreso e  extasiado com uma arma apontada para sua  cabeça. Não reagiu. Ficou em pé, feito estátua de bandeirante com a mão no cabo da espada.

Com efeito do levante  vaqueiro Xandão perseguiu Corisco e ninguém ouviu o disparo de Pururuca. Nem ele mesmo sabia que  acertara o boi, pois Lampião já estava caído. Machucado. Pisoteado...


Faz tempo... 
Corina refrescava sua memória: "Campo Grande gerou em minha alma toda boa lembrança que tenho de mim: a sede da fazenda,  bois pastando na manga fronteira ao curral, folias de reis, e  as cantorias no final da tarde...'

  Absorta, totalmente entregue às suas lembranças, não percebeu que Chanana passara cedo em casa. Embora fosse costume ela vir só à tardinha, naquele dia, passou cedo e procurou chegar sem ser vista pela mãe. Precisava conversar a sós com Dulcineia sobre o assunto já ventilado antes, em sopro miúdo e velado: o título de mãe solteira  ou de viúva que teve um filho, não era o  melhor ‘diploma’ para uma diretora  de escola.

 —  Não quero abortar! Preciso de sua ajuda, maninha!
 — Vou conversar com Jê, na primeira oportunidade, disse a irmã.

Dulcineia alinhavava os pensamentos. Ensaiava argumentos para convencer Jeremias a adotar um filho. E na hora da sesta, o projeto de enxoval do bebê estava pronto em sua cabeça.

— Meu dengo, só tivemos Ravenala e não engravidei mais. Gostaria muito de ter um menino ou uma menina.

 E Jeremias violou a carta do  escudeiro.

— Dulcinha, dulcíssima Dulcineia,  faz o que mais te aprouver.
— Obrigado, meu Quixote!  Você sabe como é a língua do povo...
—E como faremos?
—Simulo uma gravidez e Chanana esconde a dela.

Dulcineia improvisou uma almofada e atou ao abdome durante dois meses. Depois, pode retirá-la. Estava verdadeiramente grávida, ao passo que Chanana não apresentava pouca barriga. 
A família cresceu. Jeremias refez os cálculos, ajustou o orçamento familiar e matriculou também Victor Augusto no colégio dos padres.

— Mana, estou grávida de verdade Disse Dulcineia.
— Estímulo...Estímulo -- disse Chanana
— Podemos continuar com a simulação.
Chana escondeu sua  gravidez, até   completarem-se os dias de dar à luz seu filho.
-- E quando nascer o meu filho  e o teu filho, direi que tive parto duplo --  acrescentou Dulcineia -- E continuarás imaculada, porquanto diante do olhar humano, tive parto duplo.

Riram.