Devagar, rompeu a boiada, cortando a estrada velha de Juramento a Montes Claros, e naquele mesmo dia, embarcou lotando muitos vagões do trem. Duas malas de dinheiro o fazendeiro leva pra casa. Depois da paga, vaqueiros vão à farra, endinheirados, beber cachaça e vadiar com mulheres no cabaré de Montes Claros. Cláudio Manuel Constâncio, o Pururuca, foi preso numa batida policial de bordel. Turíbio Soberbo e Dinotério confabulam planos de criar peixe-leiteiro no rio São Francisco e tomam a estrada em transporte coletivo que os levaria àquela cidade ribeirinha.
Longe dali, a fazenda Campo Grande tornou-se apenas uma interrogação. Nada ficou no lugar, senão alguns recortes da história.
...cibório de nervos e memória
tensa, coberta de sangue...(Cid Teixeira)
Exangue, a viúva vê a imagem do marido na Pessoa de Fernando: ‘Fita com olhar langue’ a pastagem pálida da fazenda... Campo Grande se esvai e já não se vê tanto boi na manga como outrora. Parece que a aurora da vida entardeceu. Passa um ano, vem outro, e deixa vestes amarrotadas. Poeira na estrada, vincos e marcas profundas de tristeza e dor. Neste vaivém, a hora se perde no tempo. Soprada pelo vento, a estrela se apagou.
Corina chora.
As lembranças da fazenda Campo Grande ficaram gravadas nos anéis da memória de Corina: o casarão, o gado espalhado na pastagem, e a aurora chegando no leite mugido pelo vaqueiro na casinha de curral. Mineira de parto, gerada e crescida em Minas, quando morreu o marido, ela mudou-se para o Rio de Janeiro, com a filha Dulcineia, ainda nos cueiros. E Chanana, a índia tomada por adoção, logo que a mãe morreu de parto. A viúva do fazendeiro arrumou as malas de couro cru, pôs em cada bruaca boa medida de goma, farinha e carne seca. Vendeu tudo que tinha: porco, galo, pavão, peru e galinhas; cavalos, ovinos e todo o rebanho de gado vacum. Vendeu também por pouco dinheiro a coleção de livros que Generoso tinha, e a fazenda que cobria grande parte do chão banhado pelos rios Juramento e Saracura. Escondeu na matula o apurado, e tomou condução em Montes Claros para o Rio de Janeiro. Copacabana ainda era menina, e Corina sonhou verde. Foi morar na Tijuca, que lhe remonta lembranças de Campo Grande. Saudosas lembranças também tinha do coco que Zé cantava a Mirabela e de todas as coisas belas de Minas. Minas tem poeta, boa cachaça e muita gente famosa nascida naquele chão. Tem Drummond, João Guimarães, Tião Carreiro, e Zé Coco do Riachão. Foi em Minas que Generoso conquistou Corina, a glória que Vitória da Conquista da Bahia, não lhe ofereceu. Ela nunca esqueceu quando o marido perdeu a vida, numa encenação de campeio. Ninguém acreditou na versão de que o baiano sofreu acidente em um toco de aroeira. Aquilo foi rixa com confrontantes. Sumia galinha da fazenda e as frutas desapareciam da chácara. Também o leite sumia. A vaca que dormia de úbere cheio, acordava vazia.
Poeta e fazendeiro, Generoso sentava na raiz que dá no córrego. Contava borboletas esvoaçantes, fazia poemas ao vento e pescava lambari no rio com o mesmo nome. Agora, o Lambari mostra pouca água. Também o Saracura pede socorro. Três-potes, que outrora cantava no gargalhar das águas. Chora. Lamenta. Implora por um copo d’água. Rio Verde, amarela, por causa da estiagem. Causos de onça não tem mais. Só a arrogância de Venâncio Dólmen persiste. Ele não gostava de perder. E Justino Generoso não voltava palavra atrás. Apostou tá apostado. Perdendo ou ganhando, tem que honrar a palavra.
— Juro por minha vida — dizia Justino — meu candidato ganhou a eleição.
— Tião não ganhou. Ele morreu antes — protestou Dólmen, esbravejando.
— O nome que constava na cédula era de Tião — justifica Justino.
Dólmen eleva o tom de voz.
— Mas Tião já estava morto.
— Apostei no candidato e no partido. Não aceito querela. Não quero demanda. Quero o boi casado na aposta. O resto, não importa.
— Durão ganhou com cédula eleitoral de um falecido.
— Então o falecido ganhou. Apostei que ele ganhava. Só não sabia que depois de morto.
— Quem vai governar o município?
— Durão.
— Então Tião não ganhou.
— Amigus Plato, magis amica Veritas.
Venâncio Dólmen fez-se de entendido: ‘Doutor Justino Generoso me chama de amigo’
— Entrego o boi. Estou perdendo pouco.
Perder pouco. Naquele caso, o que seria? Quem tem mais de cinquenta reprodutores, perder um pode significar perder pouco.
Robert intervém.
— Agora rompes a fronteira da realidade e te embrenhas numa ficção descabida. Mostrar um diálogo em Latim, no meio da pastagem...
— Bobinho! A carta que meu avô escreveu, narrando o fato ao amigo, faz parte do processo que levou Dólmen para a cadeia.
— Cruzes! Não sei se falas a verdade ou me tapeias.
— O trabalho que faço, não requer apresentação de prova documental, ainda assim, eis aqui uma cópia da carta que meu avô endereçou ao Dr. Guimarães, datada e assinada.
Robert leu: “...Ora Doutor, rasguei meu Latim, no meio do pasto: ‘Amigus Plato, magis amica Veritas.’ E o coronel Dolmênico se viu atarantado, tomou aquilo como se eu lhe houvesse estendido a mão de amigo, e entregou o boi, objeto da aposta. Em casa, eu ria, contava a Corina e acrescentava pitadas de humor... Naquela noite... naquela noite... Corina estava tão bonita! E me perguntou: ‘O Cravo nunca vai brigar com a Rosa, não é meu dengo?’ — ‘Nunca, minha Flor!’ Aí, o resto eu não conto, Doutor.”
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Adalberto lima, trecho de "Estrada sem fim..."