Dança das sombras

Lia via as sombras dançarem. Quando mais jovem achava divertido, brincava junto ao sol para que as sombras de suas bonecas se tornassem vivas, mas agora não sente mais vontade disso. Agora, Lia foge das sombras.

Acordar de manhã sempre foi difícil, Lia não sentia preguiça, tinha medo de sair, medo de abrir os olhos e ver outro mundo se mover ao seu redor, um mundo que quer abraçá-la, mas não com carinho ou ternura. Com medo, ela sai da cama, se veste e vai, segue sua rotina de escola e casa. Ela não gosta de sair. Novos lugares são sinônimos e novas sombras para ela.

Os dias são sempre iguais, e a pior parte deles sempre é a mesma: a hora de se deitar. Não importa em que ponto do quarto coloque sua cama, sombras bailam à sua frente. Os galhos de um grande carvalho são refletidos todas as noites. Eles a chamam, querem que ela vá com eles, mas Lia não compreende, ela tenta fugir, tenta fechar os olhos, mas não adormece, continua vendo.

Noites sem dormir, dias solitários e tristes, uma vida maçante e cruel para se ter. Seu aniversário chega mais uma vez, e novamente a família comemorou com entusiasmo. Ela não gostava, sabia que com o passar do tempo as sombras aumentavam e se tornavam piores. A idade não era um bom sinal, e logo perceberia isso. No final do dia foi para cama. Nada mudou.

Amanhece! Lia levanta. Agora ela sente algo diferente. Passou a ver uma sombra diferente, uma única sombra. Uma mulher, que se encontra junto à porta. Uma sombra bastante nítida, com contornos esfumaçados e cinzentos. Ela parece brilhar. Lia olha, teme, mas sente que deve ir até ela, então vai. Caminha lentamente, mas com firmeza. Ao se encontrar frente a frente com a sombra. A sombra some como nunca havia existido antes e , a partir desse momento, e mundo de Lia muda, ela não vê mais as sombras.

Tudo mudou e um sentimento de liberdade tomou conta de Lia. Ela acordava sem medo, dormia sem problema, e ia à todos os lugares que tinha vontade, ela não tinha mais medo. Enfim, conseguiu a vida que sempre sonhou, mas nunca se esqueceu delas, pois as sombras ainda existiam, e ela não sabia o motivo pelo qual sumiram e pararam de dançar para ela.

***

Anos se passaram, Lia casou-se, teve somente uma filha, que cresceu saudável e feliz e que agora havia lhe dado uma netinha. As sombras não a perturbaram mais.

Agora, ela via o mundo com um olhar experiente, não via a idade como um peso como um dia já viu. Agora, Lia via sua idade como sabedoria adquirida, porém, nem toda a sabedoria do mundo seria útil para prever o que as sombras estavam lhe guardando.

Acordou cedo naquele dia, a manhã estava bonita e, embora sentisse que já fosse um tanto lerda e cansada, foi fazer uma curta caminhada, como costumava em tempos antigos. Andar era bom, ela sentia a liberdade ainda surgir dentro de si. Então andou.

Hoje ela sentia algo diferente, sentiu vontade de voltar a sua antiga casa, não sabia se devia, mas seu sentimento foi forte. Lia não sentia medo, não mais, nada nunca mais foi capaz de amedronta-la, nada a não ser a lembrança das sombras. No caminho até a velha casa, sentiu medo.

Lembrou-se de tudo. Lembrou-se das sombras que dançavam e que queriam leva-la, das noites onde os galhos do velho carvalho atormentavam sua mente. Tudo voltou a ser real para ela agora. Não era mais memórias. As sombras estavam voltando a dançar para Lia.

Chegou na velha casa, Tudo estava igual, um pouco deteriorado pelo tempo, mas a casa ainda era a mesma. Lia entrou, subiu as escadas e foi até seu quarto. Entrou. Estava vazio, sem cama, armário, cômoda, não havia nada lá, exceto a sombra do carvalho ondulando.

Lia parou. Não teve reação, após anos sem ver aqueles movimentos, ela sentiu um medo terrível, pois sabia que elas iriam levá-la agora. Entre as sombras dançantes dos galhos, algo começou a surgir ao longe, parecia vir andando através de uma estrada inexistente e se aproximando aos poucos. Não se sabia o que era aquilo exatamente, mas Lia sentiu aquela sombra brilhar, e soube o que era, então fechou os olhos e esperou.

Seus olhos abriram-se. A mulher de sombra estava à sua frente. Não era como quando a viu pela primeira vez, estava um pouco corcunda, a silhueta era semelhante à sua, então Lia temeu ainda mais.

A sombra não estava sozinha, estava acompanhada de uma menininha, e Lia sabia quem ela era, e não sentiu medo, uma enorme dor de tristeza tomou conta, ela andou o mais rápido que pode para fora daquele lugar, pegou um táxi e voltou para casa. Quando chegou, a dor não havia passado, foi até o quarto de sua netinha, então chorou como nunca havia chorado antes, a sombra havia levado a vida de sua neta.

***

O quarto estava vazio, exceto pelas sombras do velho carvalho onde uma pequena menininha dormia vigiada por uma sombra. Uma sombra bastante nítida, com contornos esfumaçados e cinzentos, ela parece brilhar.

Gabriele Moura
Enviado por Gabriele Moura em 26/03/2018
Código do texto: T6291201
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