O estranho morador da casa 7 - A margarida que falou por trinta dias.
O ESTRANHO MORADOR DA CASA 7
Tudo se passa numa pequena vila de uma rua sem saída ou servidão, como é denominada em algumas cidades do Brasil. A vila é formada por treze casas, seis de um lado, outras seis do outro e a famosa casa sete, ao fundo fechando a rua.
Devido ao pequeno número de famílias ali residente, o ambiente é fraterno, todos se relacionam muito bem, exceto o estranho morador da casa sete. Solitário, de poucas palavras, quase restringe o seu vocabulário aos termos de cumprimento ou cordialidade. Bom dia!, Boa tarde!, Tudo bem? - Ao menos que me lembre, durante os anos que eu vivi na vila, foi tudo que escutei aquele homem falar. Era uma figura inconfundível, sempre muito bem trajado com ternos escuros, com passadas firmes e seu porte esguio, passava uma imagem de segurança e de dominador.
Para nós meninos da vila, naquela época, companheiros vinte e quatro horas por dia, aquele homem era a imagem inabalável do perigo e transmitia-nos mesmo, a bem da verdade, bastante medo.
Como de costume, ao passar por nós, sempre sisudo, cumprimentava-nos e se dirigia para o ponto de ônibus, da rua principal, tomando o seu destino. Todas as crianças da vila começaram a fazer indagações sobre o estranho comportamento daquele morador. Suas imaginações infantis, ante as conjecturas, iam fantasiando suas desconfianças e criando diversos personagens, com atividades as mais estranhas, para aquele homem de porte esguio e reticente em seu comportamento.
Pela manhã sempre nos reuníamos para praticar nossas peraltices, jogar futebol, além de inventar algumas crueldades, a fim de estragar as brincadeiras das meninas. Como éramos maioria, acabávamos por impor nossas condições e delimitar os espaços que elas poderiam brincar. Sem opção e apesar dos protestos, tinham que aceitar nossas imposições descabidas. Até tentavam nos intimidar, prometendo que iriam falar com o morador da casa sete e pedir-lhe que nos desse uma lição.
Quando se aproximava das oito e meia da manhã, nosso futebol já estava a todo vapor e era o momento em que as meninas começavam a gritar: “lá vem ele, vamos contar pra ele...” . Imediatamente recolhíamos a bola e em disparada íamos nos esconder no corredor da casa 1, onde morava o Paulinho. Nesse intervalo forçado do nosso futebol, na cozinha de Dona Conceição, mãe do Paulinho, sobre a mesa, três jarras de refresco geladinho e preparado com carinho, nos aguardavam.
Onde será que aquele homem esquisito está indo? Perguntávamos. Precisamos descobrir, falava Pedrinho, o mais novinho do grupo. Em seguida Edgard, com doze anos, o mais velho (melhor dizendo o menos criança) , pensando mais longe, tentava convencer-nos de armar um plano para descobrimos que era aquele estranho morador da casa 7 e o que ele fazia. Esse fato repetia-se todos os dias naquele mesmo horário.
Numa bela tarde, reunidos em frente a casa 4 onde morava a Fátima, irmã do Lélio, que sempre tentava nos intimidar com a presença do estranho morador da casa 7, Edgard voltou a expor sua idéia de armar um plano de investigação para acabar de vez com as conjecturas. Em nossas mentes infantis, tudo parecia muito real. Foi aí que começamos a montar o quebra-cabeça, engendrar os nossos planos maquiavélicos e infalíveis. Ao menos nos parecia!
Sob a coordenação segura do Edgard, nossas idéias foram selecionadas e organizadas para que, segundo ele, se revestissem de pleno sucesso. Coragem, destreza, sigilo e o compromisso de que se alguém fosse pego não delatar nenhum outro componente do grupo, eram prerrogativas irrefutáveis e mais ainda, uma questão de vida ou morte.
Depois de tudo arquitetado, passou-se a distribuir as tarefas que caberiam a cada componente do grupo assim como o posto que deveria ocupar. O rigor de cada um na consecução do plano era responsabilidade individual e aos que falhassem, num detalhe sequer, as punições seriam aplicadas imediatamente. Entre as duras punições estavam a expulsão do time de futebol e o “gelo” (ficar sem falar com ninguém do grupo) por três meses.
Ainda nessa reunião, o estranho morador da casa 7 foi apelidado de “Satã”, porque dessa forma ninguém além dos integrantes do grupo, saberia do que ou de quem estávamos falando.
Armado o plano para a manhã do dia seguinte à reunião, a primeira atitude seria escolher quem de nós receberia aquela missão. A escolha, acertadamente recaiu em Alfredo, por ser o mais sossegado e que menos falava ou gritava durante as brincadeiras e o futebol. Com essas características, obviamente a sua ausência não seria percebida pelas meninas.
A missão: Ficar escondido no armazém da esquina e seguir Satã até seu destino inicial. Anotar tudo que observasse e voltar sorrateiramente em tempo de encontrar-nos na casa de Paulinho, tomar o refresco da Dona Conceição e acompanhar-nos no segundo tempo do futebol, evitando qualquer suspeita das curiosas meninas. Com tudo acertado, inclusive horários combinados como a saída de Alfredo para as sete horas, evitando ser visto pelos moradores, despedimos e fomos dormir. Foi na verdade uma noite de sobressaltos e pesadelos, mas finalmente um novo dia surgiu.
Como costumeiramente, depois de cumprir as normas de higiene e alimentação, lá estávamos reunidos para mais uma partida de futebol. Alfredo não estava e isso significava que a missão começara. Entre olhares de satisfação e sem nenhuma palavra, iniciamos nosso jogo. Corre que corre...chuta que chuta... e as meninas gritaram: “lá vem ele, vamos contar pra ele”. Nesse dia Satã saiu às oito horas e dez minutos, conforme mostrava o relógio da matriz em frente à vila.
Como sempre fazíamos, ao avistar Satã, saímos em disparada e fomos nos esconder no corredor da casa 1. Ali ficamos por alguns minutos até que Alfredo chegasse. Passados uns vinte minutos, Alfredo chegou esbaforido e suado, ainda com a respiração acelerada e disse-nos: “missão cumprida”. A alegria brotou em nossos olhos arregalados e brilhantes, próprio das crianças. Fomos até a cozinha de Dona Conceição e lá estava, infalível, aquela senhora de sempre, amorosa e paciente, servindo-nos em copos, aquele indispensável refrigério. Agradecemos e voltamos para a rua e, antes de continuamos o jogo, combinamos nossa reunião para o período da tarde, após as aulas, o banho e o jantar.
Como não poderia deixar de ser, cada peito abrigava a sua aflição e a vontade de que as horas se passassem em segundos. Mas a natureza é pródiga e no devido momento, deu-se início à nossa combinada reunião. Como de costume, Edgar conduzia os assuntos com calma, de forma ordenada para ficarem bem entendidos. - Com a palavra o Alfredo! Sem pestanejar Alfredo começou seu relato: Levantei-me cedo, peguei a bola, esvaziei e disse a mamãe que precisava leva-la no sapateiro, porque estava furada e havíamos marcado nosso jogo de futebol para as oito horas. Sem desconfiar de nada, balançou-me a cabeça em movimento de concordância. Saí de casa após observar que não tinha ninguém na rua e disparei até o armazém da esquina. Como por ali fiquei algum tempo, o seu José, dono do armazém, perguntou-me: O que estás fazendo por aqui tão cedo, Alfredo? - Respondi-lhe: estou esperando o seu Manoel sapateiro abrir a loja, para concertar a minha bola e enche-la. - Olhando à bola, vazia, em minhas mãos, completou: Então está tudo bem. Era pouco mais de oito e dez, eu já estava no seu Manoel, quando Satã apontou na esquina. Disfarçadamente fui saindo e falei para o seu Manoel que ia comprar umas balas no armazém. Segui Satã por trás de outras pessoas que transitavam pela rua e observei-o. Foi até o ponto e aguardou uns instantes porque logo chegou um ônibus. Corri até a frente do ônibus para ver a vista ou letreiro. A seguir voltei correndo, para encontrar com os meninos conforme havíamos combinado.
Quando cheguei na casa 1 do Paulinho, todos já estavam lá. Sussurrando disse-lhes: Satã pegou o ônibus da Linha 13 – Centro – Cemitérios.
Perfeito, disse Edgar, a primeira parte de nosso plano está executada. Agora cada um de nós vai buscar informações sobre essa linha de ônibus, por onde passa, até onde vai e por onde volta. - Mas como faremos isso? Indagamos. - Então orientou-nos: Perguntem aos seus pais e guardem os nomes das ruas e bairros, assim poderemos consultar a lista telefônica e verificar o que tem nessas ruas, tais como empresas, indústrias, lojas, bancos, escolas, entre outras coisas. - Realmente o Edgar era um menino muito esperto e organizado. - Assim ficou combinado e, esse seria o segundo passo do plano. Todas as informações obtidas deveriam ser levadas à reunião da tarde do dia seguinte.
Na tarde seguinte, voltamos a nos reunir em frente da casa do Lélio. Edgar demonstrava uma certa apreensão e, sem muitos rodeios, alertou-nos: Vocês precisam usar de mais sutileza quando forem pedir informações aos seus pais, eles não podem desconfiar de nosso plano, senão colocaremos tudo a perder. Quando meu pai chegou e fui perguntar-lhe sobre o ônibus da linha 13, ele disse: Que coincidência, pois acabo de encontrar com o pai do Paulinho e ele me contou que seu filho fez-lhe a mesma pergunta! - De imediato precisei criar uma situação mais favorável e o que veio à minha cabeça foi, no momento, inventar que a Professora havia nos solicitado essa pesquisa para nos orientar sobre como observar e entender aos mapas, catálogos e outros informativos escritos sobre a cidade. Diante da minha resposta, meu pai prontificou-se a buscar o mapa do percurso da Linha 13, na garagem da Empresa, fazendo ainda elogios à Professora, pela ótima idéia de preparar-nos para as necessidades do dia a dia de um cidadão. Durante o jantar ele me deu o mapa do trajeto da Linha 13, este aqui. Agora vamos pegar uma lista telefônica e ver as empresas, indústrias, bancos e lojas dessas ruas, é provável que se consiga localizar o trabalho de Satã. Pedro levantou-se e foi correndo até sua casa para pegar uma Lista Telefônica, trouxe-a e então começamos a marcar o nome das firmas. Percebemos que seria inviável devido ao grande número de firmas em todo o trajeto do ônibus e, mesmo porque, ninguém sabia, na vila, nem nossos pais, o verdadeiro nome de Satã. Então de nada adiantaria telefonar para as firmas porque não saberíamos por quem perguntar. Foi uma decepção geral, pois todos se entreolharam com um ar de indagação.
Edgar foi o único que não se abalou. Disse-nos: Precisamos aperfeiçoar nosso plano, vamos ser mais ousados e melhor estruturar nossas ações sem criar desconfianças. Pensou por instantes e lá veio a bomba. - Um de nós deverá seguir Satã, pegar o mesmo ônibus que ele e segui-lo até que entre no seu local de trabalho.
Depois de muita conversa, chegamos à conclusão que só o Márcio, morador da casa 5, poderia nos ajudar por ser o único que estudava no período da manhã. Precisávamos convence-lo a executar essa tarefa para nós. Foi bastante difícil porque ele teria que se atrasar para chegar na escola. Porém o Edgar preparou-lhe um álibi, caso sua mãe fosse notificada pela escola. Aliás, um álibi perfeito. Naquele dia, ao chegar da escola, Márcio deveria simular estar sentido uma forte dor de barriga, pedindo inclusive um remédio para sua mãe. A mesma mentira deveria contar ao chegar na escola e apresentar-se na sala de aula, justificando seu atraso. Tudo certo, não haveria risco. Bom, só um, depois da tarefa o Márcio ficou uma semana sem ir ao banheiro.
A tarefa de Márcio estava definida. Chegou o tão esperado momento. Naquela manhã, todas as janelas da vila, entreabriram bem mais cedo. A curiosidade dos meninos era verificar a saída de Márcio e dar-lhe um sinal de positivo, esticando o dedo polegar. O ritual foi cumprido.
Após o jantar, aconteceu a tão esperada reunião. Nela seria desvendado o mistério de onde Satã trabalhava. Isso ocorreu. Márcio seguiu Satã até ele entrar no Banco da Cidade onde tirou o paletó e sentou-se na mesa da Gerência. Então, Satã era gerente do Banco da Cidade e para descobrir seu nome, seria suficiente perguntar para qualquer outro funcionário do Banco. - Quando tudo parecia estar esclarecido, Lélio perguntou-nos, alguém de vocês já viu o Satã chegar na vila após o trabalho? - Foi um espanto geral, porque ninguém, jamais havia visto ou presenciado sua volta. Formou-se um burburinho, todos querendo falar ao mesmo tempo. - Edgar interviu e informou-nos que apenas a missão não tinha acabado. Da mesma maneira que checamos os fatos até aqui, precisamos nos organizar e elaborar novos planos. Nada poderá vencer os meninos da vila. Concordam? -Todos de acordo, passamos às novas estratégias para deslindar o restante do mistério.
Na verdade, esta seria a parte mais fácil e por isso a tarefa de aguardar na esquina a chegada de Satã, à tarde, ficou a cargo de Paulinho, o mais novinho de todos.
Depois do jantar, novamente reunidos, aguardávamos a chegada de Paulinho que se atrasara para seu jantar, esperando a volta de Satã. Já passavam alguns minutos das oito horas quando Paulinho apareceu com os olhos avermelhados. Havia levado umas palmadas por ter chegado muito tarde para jantar. Aí contou-nos o inesperado. Apesar de ter ficado até às sete horas e vinte minutos na esquina, não vira Satã chegar. - Como isso é possível? Perguntou Edgard. - Bem, é possível que ele tenha saído para outro lugar, respondeu Paulinho. - É, ponderou Lélio. Ele pode ter uma namorada e ter saído ao encontro dela. - Aceitas as ponderações, ficou estabelecido que cada um deveria, um dia, aguardar a chegada de Satã. - Isso foi feito toda a semana e o estranho fato se repetiu. Satã não voltava, mas todas as manhãs ele saía. - Enfim aconteceu o que todos temíamos, era um mistério de fato. Estávamos diante do sobrenatural? Quem seria ou o que seria aquele homem?
Novas conjecturas, dúvidas, muita discussão, estávamos outra vez no marco zero da questão. Quem é Satã?
Invariavelmente era Edgar responsável por tirar-nos dessa situação de insegurança e não nos faltou com suas idéias. Arquitetou um plano de alguém aguardar Satã na saída do Banco e segui-lo. - Coube ao Roberto que morava na casa 3, ele estudava piano e tinha aulas as seis horas da tarde. Porém era necessário sair mais cedo, o Banco fechava as quatro e meia e ele teria que estar lá nesse horário. - Mais uma vez o álibi foi montado por Edgar. - Roberto diria a sua mãe que precisava fazer uma pesquisa na Biblioteca Municipal e que, de lá seguiria para a aula de piano. Tudo certo, sem problemas. No dia seguinte Roberto cumpriria sua parte no plano e no outro dia pela manhã, no intervalo do futebol, no corredor da casa de Dona Conceição, daria as informações sobre o acontecido. Despedimo-nos e fomos dormir. Na manhã seguinte, depois do futebol, desejamos boa sorte ao Roberto porque só o veríamos novamente na manhã do outro dia.
Naquela tarde, depois do jantar, voltamos a nos encontrar para o bate-papo costumeiro, antes de dormir. O assunto circulou em torno do trabalho que Roberto deveria estar fazendo como parte do plano. Muitas suposições iam aquecendo cada vez mais nossas desconfianças. Elas acabavam fazendo de Satã uma figura das mais temidas e tenebrosas.
Na manhã seguinte encontramo-nos às oito horas para nossa partida de futebol. A ansiedade fez-nos interromper o jogo antes do costume e rumar para a casa do Paulinho. Logo começamos a indagar do Roberto sobre os acontecimentos da tarde-noite anterior. Ele estava muito desapontado, porque depois de seguir o Satã, descobriu que após sair do Banco da Cidade, ia direto para uma Escola Noturna naquele mesmo bairro. Portanto não lhe foi possível descobrir mais nada. - Tudo bem, disse-lhe Edgar, sua missão foi cumprida com esmero. Precisamos continuar nossas investigações, mas agora será menos desgastante, apesar de que teremos que perder parte de nosso sono. Vamos organizar uns turnos de vigília para que possamos saber a que horas Satã volta para a casa 7. - Assim foi feito.
Eu deveria ficar no turno de 21 às 23 horas e o Edgar ficaria das 23 h até 1 hora da madrugada. Na primeira noite tudo foi em vão, o Satã não voltou para casa. Porém, se ele dava aulas ou trabalhava na escola, não deveria voltar mais tarde do que 1 hora da madrugada. - Por via das dúvidas, na noite seguinte resolvemos fazer três turnos para evitar qualquer surpresa.
Na manhã seguinte mais problemas, ele não voltara também àquela noite. Cada vez mais crescia o nosso medo. - Seria Satã uma alma penada? - Porque não o víamos chegar em casa? - Era capaz de se fazer invisível? - Muitas coisas foram sendo criadas por nossas mentes infantis.
Pela primeira vez víamos surgir na expressão do Edgar uma sombra de temor. Um receio mesmo. Demonstrava insegurança, não teve resposta pronta, no momento, que pudesse justificar aquela situação. Mas, como bom líder que era, superou aqueles instantes e disse: Agora está na minha vez de encontrar uma solução para o impasse! Pessoalmente seguirei Satã até seu destino final. Os meninos da vila não podem ser vencidos.
Mas como Edgar faria isso? Ficamos apreensivos e pedimos esclarecimentos. - Prontamente passou a nos relatar como pretendia levar à cabo sua dura missão. - Vou dizer aos meus pais que o Felipe, meu colega da escola, convidou-me para ir na sua casa amanhã à noite para assistir uns filmes que ele alugou na locadora. Com o Felipe combinarei para que ligue do seu telefone para minha casa e peça autorização de minha mãe, esclarecendo que alugou esses filmes e como vai terminar muito tarde, que me deixe dormir em sua casa. Acho o plano perfeito, não há de suscitar nenhuma dúvida.
Assim foi executado o plano e Edgar partiu para sua dura jornada na tarde-noite seguinte.
Obviamente ele não esteve conosco no futebol da manhã porque tendo dormido na casa do seu amigo Felipe, chegou por volta das 10 horas da manhã, indo direto para sua casa. - Quando passou por nós fez um sinal de positivo. - Portanto sua missão tinha sido cumprida. Que surpresas nos estariam reservadas? Só após o jantar é que poderíamos conversar a respeito do fato. Foi um dia bastante longo para todos, a ansiedade foi nossa companheira inseparável.
Depois do jantar, o grande momento. Sentamos ao meio fio, como sempre fazíamos, e Edgar começou sua explanação. O espanto estava gravado em sua face, sua voz era trêmula.- Disse-nos: Ao sair da Escola, Satã estava vestindo um avental totalmente branco; em sua mão esquerda carregava uma pasta preta. - Segui-o, voltou três quarteirões e pegou a rua da Saudade, corri até a esquina e escondi-me atrás do poste para observa-lo. Aí aconteceu uma coisa incrível! - Satã chegou em frente ao portão do Cemitério e simplesmente entrou, sem sequer fazer um movimento no sentido de abri-lo. Ele é uma alma do outro mundo. – Trememos de medo com o que Edgar acabara de nos contar, estávamos suando frio e apavorados.
Começamos a fazer uma série de suposições, tais como: De que forma poderia Satã sair de casa todas as manhãs se nunca voltar de noite? Como entrou no Cemitério sem abrir o portão? Se, todas as manhãs saía da casa 7, sem nada nas mãos, como é que a noite, após as aulas ia para o Cemitério carregando uma pasta preta na mão esquerda?
Diante de tantas evidências e de seu comportamento estranho, pouco comunicativo, sempre muito sério, veio o nosso veredicto: Satã não é humano como nós, ou é um morto vivo ou se transforma em morcego como o Conde Drácula, antes de voltar para sua casa à noite, é a única forma de passar por nós sem ser percebido. - Desde aquela noite, nunca mais nenhum de nós quis chegar nem perto de Satã. Foi assim que passamos os anos seguintes na vila.
Como tudo aconteceu? - Claro que posso explicar-lhes agora. - O tempo passou e cada um de nós descobriu cada fato que criou todas aquelas circunstâncias.
O Satã, como o chamávamos, além de gerente do Banco da Cidade, era também um conceituado Professor na Escola do Bairro, por isso, sempre tomado de muitas responsabilidades passava por nós sempre pensativo e sério. - Não se relacionava com o pessoal da vila por exclusiva falta de tempo porque trabalhava de dia e de noite. - Se não voltava para casa à noite era porque tinha uma namorada, na casa de quem dormia, por ser mais perto da Escola. - Se, entrava no Cemitério é porque sua namorada, filha do vigia de lá, morava nos fundos do terreno. Dava a impressão de entrar pelo portão sem abri-lo porque o pai de sua namorada deixava-o semi-aberto para facilitar Satã que vinha com as mãos ocupadas. - Sempre saía da Escola com uma pasta preta na mão esquerda, porque no dia seguinte, sua namorada, que também trabalhava na Escola, levava-a para ele. - Se no dia seguinte saía da casa 7 da vila é porque o quintal de sua casa, fazia divisa com o quintal da casa de sua namorada, por onde passava através de um pequeno portão.
Ficou-nos uma lição e que julgar as pessoas, apenas pelo que aparentam é, no mínimo, cometer o crime de irresponsabilidade. Irresponsabilidade e injustiça só se justificam e têm cabimento, ante o julgamento das crianças inocentes, como éramos.
A MARGARIDA QUE FALOU POR TRINTA DIAS.
O verão despedia-se e as aulas haviam recomeçado. Estávamos na última semana de fevereiro. Em sua aula, a professora de ciências, passou às mãos de cada um dos alunos, três sementes de plantas ornamentais, recomendando-lhes que as plantassem em um vaso, seguindo as orientações e ensinamentos, passados durante a aula. As orientações iam desde a preparação da terra, passavam pelos cuidados diários e observações que seriam feitas da germinação à frutificação, culminando com as anotações que lançariam nos relatórios. O resultado da experiência seria cobrado após as férias de julho e valeria como ponto positivo, na composição da média do semestre.
A professora teve o cuidado de selecionar espécies de plantas ornamentais, cujo ciclo de vida tivesse no máximo 150 dias, garantindo que todos os trabalhos fossem concluídos dentro do prazo.
Para Weber, cujas notas não eram lá “essas coisas”, aquela experiência era uma grande oportunidade para alcançar a média de aprovação. Por essa razão, logo se dispôs a executar suas tarefas com dedicação e esmero.
Chegando em casa, guardou cuidadosamente as sementes, na prateleira da estante onde acreditava, estarem a salvo da curiosidade de seus irmãos. Foi ao quintal, à procura de um vaso adequado e da terra fértil, conforme as disposições. Não conseguindo êxito, recorreu a sua mãe. Explicou que necessitava de um vaso com capacidade de quatro litros e de terra fértil, adubada e escura, para fazer o trabalho de ciências. Para não deixar dúvidas, fez questão de pegar o caderno e mostrar para a sua mãe.
No dia seguinte, Dona Verônica foi à feira, comprou frutas, verduras, legumes e também o material solicitado pelo filho. Ao retornar, foi recebida por Weber no portão. Ele fez questão de trazer o “carrinho de feira” até a cozinha. Aliás, como sempre fazia, não com o intuito de ajuda-la, mas levado pela curiosidade e o desejo de se apoderar de uma boa fruta, que sempre tinha lugar entre as compras. Porém, desta vez as frutas não eram sua preocupação porque, o medo da reprovação em ciências, era bem maior. Ficou ao lado da mesa, pacientemente aguardando que a mãe retirasse toda a compra do “carrinho”.
Enfim, ela coloca sobre a mesa um grande vaso de cerâmica, desembrulha-o e surpreende o menino, com o tamanho e a beleza. Em seguida, põe sobre a mesa, três sacos de terra preta e adubada. Ali estava tudo que de melhor poderia oferecer ao filho. Weber correu até ela, pendurou-se em seu pescoço, beijou-lhe a face e disse: “muito obrigado”. Já se apoderava do material quando ela interveio, dizendo-lhe que iniciasse o seu experimento, após o almoço e com atenção, muita calma e paciência. Inclusive alertou-o de que as plantas, como nós, seres humanos, também tinham sentimento e sentidos, fome e sede e, caso não desse a elas muita atenção e carinho, certamente não se desenvolveriam, nem cresceriam vigorosas, sadias e bonitas. Atento àquelas palavras, precisando somar pontos positivos na média de ciências, durante o almoço, várias vezes, inquiriu a mãe sobre os cuidados para conseguir o melhor rendimento de suas futuras plantas, desde o plantio até a frutificação. Foi um almoço técnico-científico, do qual sua mãe jamais pode esquecer.
Meia hora depois foi até a área coberta nos fundos da casa e escolheu o lugar onde deixaria o vaso, de forma a pegar o sol da manhã, estar protegido da chuva, dos insaciáveis pardais e ainda longe das brincadeiras dos irmãos estabanados. Tudo de acordo com as orientações da professora. Foi à cozinha, pegou o vaso e transportou-o cautelosamente. Voltou, pegou os três sacos de terra, abriu-os um a um e foi enchendo o vaso, colocado sobre um prato plástico, até quase completá-lo. Levantou-se, lavou as mãos na pia do tanque e foi buscar as três sementes, deixadas na estante. Colocou-as sobre a terra, lado a lado, bem no centro do vaso. A seguir pegou alguns punhados da terra que havia reservado no último saco e foi espalhando levemente sobre as sementes, compondo uma fina camada. Com a ajuda do “spray” que sua mãe utilizava para umedecer a roupa, depois de trocar a água, borrifou suavemente a superfície da terra, tantas vezes quantas se fizeram necessárias para deixa-la úmida. Recolheu todos os materiais excedentes, varreu a terra que havia caído no chão e com a pá depositou no saco de lixo. Em seguida, foi buscar sua mãe para mostrar-lhe o serviço.
Dia após dia, cumpria seu ritual, cuidava sobejamente da experiência e suportava as “gozações” dos irmãos que, todas as vezes que por ele passavam, entreabriam sorrisos sarcásticos e lhe dirigiam palavras como: “olha o jardineiro fru-fru!” (induzindo ao pensamento de pessoa afeminada) ou ainda, “quando essa flor nascer, mamãe terá duas para cuidar!”.
Oito dias depois, após o café da manhã, como diariamente fazia, foi verificar o seu experimento e que surpresa! Lá estavam duas pequeninas folhas verdíssimas, estreitas e compridas. Chamou a mãe, que foi ao seu encontro. Ao chegar, ela entendeu o que se passava ao vê-lo de cócoras, junto ao vaso. Com paciência, coisa que normalmente as mães têm muita, explicou para o filho que aquelas duas folhas, tão delicadas, que acabaram de germinar ou “nascer”, eram denominadas “folhas cotiledonares” e separavam dois grandes grupos de plantas. O das “dicotiledôneas” que apresentam duas folhas cotiledonares e o outro, das “monocotiledôneas”, que apresenta apenas uma folha cotiledonar. Imediatamente o menino, em voz bastante alta, falou: Então minha planta é uma dicotiledônea? Certo, respondeu-lhe a mãe. Em disparada ele foi a sua escrivaninha, pegou o caderno e anotou, palavra por palavra, todas as informações.
“Como seríamos mais cultos se, sistematicamente, tivéssemos esse procedimento!”
No mês de abril, a planta passava dos 50 centímetros de altura. O menino exclamou: Caramba! (palavra introduzida do espanhol, que expressa admiração), ela vai ficar do meu tamanho.
Em maio, a expectativa cresceu ainda mais, deveriam surgir os botões florais. Por isso, suas visitas à planta aumentavam, à procura de uma emergente gema floral, conforme explicação da professora. Mas mesmo quando se fala de planta, “nem tudo são flores” e, a primeira preocupação surgiu quando, em conversa com colegas, soube que em todas as experiências, exceto a dele, haviam nascido ao menos duas plantas. Imediatamente ele foi procurar a professora e contar-lhe o fato. Como de costume muito calma, a professora disse-lhe: Muitos fatores podem ser responsáveis por isso, como os inibidores de germinação. Porém, o que mais comumente acontece é que, as sementes perdem “vigor” e “poder germinativo”, por ficarem algum tempo guardadas. Pode ser que suas sementes fossem mal formadas ou tivessem baixo índice de germinação. Mas não se preocupe, uma única planta vai produzir muitas flores, suficientes para o seu trabalho e ainda sobrarão. Confiante, agradeceu a professora pela atenção e voltou para casa, ansioso por rever a planta, além de escrever no caderno de anotações aquelas informações, antes que as esquecesse.
Depois de alguns dias, era voz corrente entre os alunos, uma verdadeira competição sobre o tamanho e a quantidade de botões florais de suas plantas. O menino não se conteve, entrou na conversa e começou a indagar a tantos quanto dele se aproximavam, qual o tamanho e a quantidade de botões florais de suas plantas. Uns disseram-lhe que suas plantas estavam com mais de um metro de altura e no mínimo dez botões florais; algumas meninas então, quase o levaram ao desespero por afirmarem que suas plantas tinham mais de um metro de altura e apresentavam mais de quinze botões florais. A pressão foi demais, afinal a sua plantinha nem tinha um metro de altura e só possuía um botão floral. Não conseguia entender. Tratou-a com carinho e dedicação, acompanhou-a dia a dia deu-lhe tudo de que precisava. Não lhe faltou água um só instante, tirou todos os insetos que nela tentaram instalar-se, inclusive os ovos de borboletas depositados em suas folhas. Como poderia aquilo estar acontecendo! Perguntava-se.
Recorreu a experiência e sabedoria da mãe, mas esbarrou numa dúvida ainda maior porque ela não sabia dizer-lhe nada a respeito. Ao menos dessa vez, a solução não estava tão próxima, precisaria novamente recorrer à professora. Puxa, como a professora vai me receber! Imaginava. Afinal de contas eu vivo a incomodá-la com minhas eternas dúvidas! Já sei, vou chegar como quem não quer nada e começar a conversar com ela. Aí, aos poucos, vou entrando no assunto da minha planta. É isso mesmo, planejou.
No dia seguinte, mal havia soado a sirene que indicava o final da aula, lá estava ele, ao lado da professora e, como havia planejado na véspera, começou logo a falar: Como vai a senhora? - Tudo bem disse a professora. - Afoito, como toda criança, não perdeu aquele gancho e prontamente respondeu: Comigo tudo bem, mas com a minha planta, nada vai bem. - Entendendo a jogada do aluno, achou melhor dar-lhe uma atenção diferenciada. Abriu-lhe espaço e deixou-o contar tudo que queria falar sobre a sua planta, sobre os cuidados e os acontecimentos. Depois, com aquela calma que só as professoras conseguem retirar do fundo de seus peitos, afinal conduzem dezenas de semifilhos, comprometeu-se a acompanha-lo até sua casa para ver pessoalmente a planta. Era uma sexta-feira, final de tarde. Foram recebidos pela mãe do menino que, após cumprimentar a professora, um pouco constrangida, justificou-se não ter intercedido junto ao filho, porque percebia nele uma angústia muito grande, por achar que a sua experiência, era um verdadeiro fracasso.
Dirigiram-se até a área dos fundos da casa, onde estava o vaso com a planta. Cuidadosa e detalhadamente, a professora observou a planta por uns quinze minutos e, apesar de estranhar a presença daquela planta silvestre (ela não tinha dado nenhuma semente daquela espécie vegetal para seus alunos) , achou melhor não criar um problema maior e, ainda agachada, abriu um discreto sorriso. Levantou e disse-lhe: Weber, não há nada de errado com sua planta. Está perfeita, o desenvolvimento é normal, não está parasitada por nenhum tipo de inseto e observo no prato, que tem água suficiente à sua disposição. Quanto à presença de um único botão floral também não é motivo para preocupação. As plantas dessa família vegetal, de nome “Compositae” , têm inflorescência do tipo capítulo. Essa inflorescência possui, em seu interior, mais de 50 pequeninas flores. Vulgarmente são chamadas de “margaridas” , são muito ornamentais e mantém as suas inflorescências abertas e bonitas por 30 dias. Portanto, fique tranqüilo e tão logo a sua margarida desabroche, comunique-me que virei fazer-lhe uma nova visita e te darei outras informações.
Quando a professora saiu, Weber parecia outra pessoa. Pegou seu caderno e anotou tudo. Calmamente pegou a toalha, tomou um demorado banho, vestiu-se e ficou no sofá da sala, aguardando que sua mãe o chamasse para o jantar.
Seus irmãos que tudo escutaram, não perderam a oportunidade de “tirar mais algumas” com a cara do Weber. O mais velho, também o mais “gozador”, ao passar por ele e dizia: Fique tranqüilo, vou arrumar um bonito “girassol” para namorar a sua “margarida”, afinal de contas ele pertence a essa tal de família “Compositae” e certamente, dar-te-ão lindos “netinhos”. Dando gostosas gargalhadas, saíram em disparada. Alheio às gozações do Ted ou mesmo do Gerson, seu irmão caçula, Weber aguardava com ansiedade o desenvolvimento de sua planta.
Seis dias após a visita da professora, Weber ao levantar-se, foi verificar a “margarida”. Finalmente! Aproximou-se da planta, agachou-se e ficou observando aquela enorme e linda “margarida” que acabara de desabrochar. Suas pétalas eram de uma brancura imaculada, lembrando numerosas bandeirinhas de paz, circundando um riquíssimo tesouro de dourado intenso e brilho radiante. Tomado pela satisfação, segurou uma das folhas da planta, beijou-a e disse: “Muito obrigado”. Mais alguns minutos de contemplação e saiu correndo para contar a novidade para sua mãe que, curiosa, pegou-o pela mão e foi conhecer a tão esperada “margarida”.
Nossa! Como é grande e bela esta “margarida”! Viu filho! Nunca devemos nos precipitar, tudo tem sua razão de ser. Importante é que se observe bem, antes de emitir qualquer parecer. Precisamos dar tempo à natureza para que desempenhe o seu papel. Agora você terá muito que escrever no seu relatório. Passou a mão nos louros cabelos do filho e retirou-se, para continuar os seus afazeres.
Mais algum tempo olhando para a planta e falando sozinho, Weber ia se retirando quando uma voz muito delicada disse: Weber! Bom dia! Podemos conversar? Eu não quis falar na presença de outras pessoas porque poderiam imaginar que fosse um feitiço! Surpreso com o que acabara de conseguir, Weber respondeu: Sim, vamos conversar. Porém, nesse instante, chegam correndo, Ted e Gerson, gritando “Weber Margarida” e dando enormes gargalhadas.
Preocupado com a algazarra e correria que faziam, Weber retirou-se sem lhes dar confiança e foi para sua escrivaninha, dando início àquela que seria a mais impressionante história de sua vida.
Naquela noite, seu sono foi bastante tumultuado, entre curtos e espetaculares sonhos surgiram jardins de diferentes estilos e coloridos. As flores que invariavelmente conversavam com ele e contavam histórias surpreendentes de tesouros escondidos, de monstros muito maus, de bruxas disfarçadas de princesas, enfim, uma verdadeira mixórdia de situações. Porém, todas as vezes que se encontrava às margens do perigo ou da fatalidade, aparecia sua enorme “margarida” que, surpreendentemente, tirava-o daquela situação desconfortável.
Na manhã seguinte, após o café, foi rever a “margarida”. Aproximou-se do vaso e perguntou: Dormiu bem? Não Weber, as plantas não dormem. Apenas vivem e cumprem suas funções, tais como: transformar os sais minerais e os micro-nutrientes na seiva que circula por todo seu sistema vascular, com auxílio da luz solar, num processo conhecido como fotossíntese. Além disso, absorvem o gás carbônico e liberam oxigênio, dão melhor qualidade ao ar, fornecem folhas tenras, frutos e grãos ou sementes, que alimentam os seres vivos e muito mais. As plantas pequenas revestem o solo, mantendo-o com a umidade necessária e temperatura adequada para que as plantas maiores possam se desenvolver. Outrossim, cedem sua madeira para a construção de casas e confecção de utensílios e móveis. Oferecem sombra e derivados como corantes, colas, resinas e substâncias químicas que são utilizadas, inclusive como remédio. Weber interferiu dizendo: Por favor, vamos continuar nossa conversa amanhã porque o Ted e o Gerson já estão de pé.
Em segundos, chegam seus irmãos gritando: “Weber margarida”, “Weber margarida”. Como de costume, levanta-se indiferente e dirige-se para o quarto. Senta-se à escrivaninha, pega o caderno de anotações e começa a passar as informações para o relatório, antes que algumas lhe voassem da lembrança, como águias irrecuperáveis.
Ao ver o filho passar a caminho do quarto, Dona Verônica resolve segui-lo para ver se descobre de onde ele tira tantas informações. Disfarçadamente entra no quarto. Weber já está escrevendo. Com um frasco de óleo para móveis e um pequeno pedaço de pano nas mãos ela começa a esfregar as portas do guarda-roupa. Ele pergunta se vai limpar sua escrivaninha e ela responde que não, que o fará depois que ele sair. Acaba de limpar o guarda-roupa, a penteadeira e retira-se. Confirmara que tudo que ele escreve é da própria cabeça. Indignada com o fato, passa o resto do dia procurando uma explicação e acaba num “beco sem saída”. Sua única alternativa é procurar a professora, quem sabe ela está passando todas aquelas informações para o Weber?
Na manhã seguinte, encontra casualmente com a professora, Dona Aída, na feira livre e não deixa passar a oportunidade. Faz as cortesias de praxe e diz-lhe: Professora! Estou cismada com o Weber. Do que se trata, Dona Verônica? Ele tem escrito em seu relatório tantas coisas que nem eu sabia! Perplexa a professora disse: Eu julgava que a senhora é que estava ajudando-o no trabalho? Não, inclusive tomei a liberdade de para-la aqui na feira por causa disso. Pois saiba Dona Verônica que esse trabalho foi passado para eles, no sentido de despertar-lhes o espírito de pesquisa e forçar-lhes a questionarem seus pais. É uma forma de interação e de a escola saber, ao menos superficialmente, o nível de escolaridade da família do aluno. Certamente o Weber está lendo alguns livros e transcrevendo para o seu relatório. Fique tranqüila, posso dizer-lhe que ele está outra pessoa. Relaciona-se facilmente com seus colegas e professores; não apresenta nenhum problema com as matérias, inclusive a de ciências; participa de todas as atividades em sala de aula e está totalmente extrovertido. Dessa forma, temos que agradecer toda essa mudança favorável ao seu comportamento. É, acho que tens razão! A partir de hoje vou ser menos preocupada. Obrigado pela atenção e me desculpe atrasá-la em seus afazeres. Tenha um bom dia! A senhora também, Dona Verônica. Ao tomarem seus rumos, passaram a pensar no fato e ficaram estupefatas. Porque o menino apresentou tantas mudanças num espaço de tempo tão curto? Tem que haver uma explicação plausível!
A professora continuou as suas investigações sobre o fato. Fez uma visita surpresa à Dona Verônica e aí pode observar as mudanças ocorridas na casa e nos relacionamentos do Weber com os seus irmãos e amigos.
Por outro lado, Dona Verônica, mais perseverante não se deu por vencida, pois o único tempo que não observava o filho era após o café da manhã, até o instante em que ele ia para a escrivaninha. Tinha que haver uma justificativa. Curiosa, resolve arquitetar um plano para a manhã do dia seguinte. Um plano para surpreender o Weber, sem que ele perceba. Afinal de contas o menino tornou-se um exemplo e mais, todos que o conhecem não se cansam de dirigir-lhe palavras de elogio, portanto não seria ela, sua própria mãe, que colocaria em risco uma situação tão confortável.
Ao retornarem da escola, Weber e seus irmãos trocaram de roupa e foram brincar no quintal, onde corriam e chutavam a bola de couro, numa vibrante partida de futebol, com mais três colegas da vizinhança. Depois do banho, jantaram, foram ao computador por um tempo, pediram a benção aos pais e foram dormir.
Depois de contar, ao marido Willy, os acontecimentos e justificar-se que nada havia falado anteriormente porque o Weber só tinha apresentado melhoras quer em seu comportamento, desempenho, responsabilidade e interação, explicou que estava intrigada porque, nem ela e nem a professora, conseguiam entender aonde ele ia buscar todas as informações e conhecimentos que, sistematicamente, avolumavam seu relatório.
Willy disse que essa mudança de comportamento nos meninos, mormente nessa faixa etária, era bastante comum. Pois nessa hora é que eles começam a apresentar as primeiras reações dos seus sentimentos individuais e questionamentos. Inclusive as professoras os induzem a tal, para que despertem e formem sua personalidade, desprendendo-se daquelas orientações educacionais, geralmente impostas pelos pais. Acredito que o caso não exige maiores preocupações. Basta você recordar-se do Ted.
Eu sei, disse Dona Verônica, porém com o Weber as mudanças se deram muito rápido, praticamente da noite para o dia e, além disso, não observo amadurecimento de sua conduta e comportamento!
Percebendo a preocupação da esposa fala que, na manhã seguinte, ela deixe o Weber tomar seu café e conforme havia planejado siga-o, mas depois de alguns minutos para observa-lo na área. Mas que não vá pelo corredor interno da casa como normalmente o faz, mas que saia pela porta da sala de visitas, vá pelo corredor externo até o quintal, esconda-se atrás do tronco do abacateiro que de lá, terá toda a visão do local. Acredito mesmo que, conforme você imagina, ele tenha um livro guardado lá. Satisfeita com a conivência do marido para efetivação do plano, apagou a luz e deu-lhe um beijo.
Às cinco horas da manhã, Willy estava de pé, arrumando-se para o trabalho. Dona Verônica já o aguardava na cozinha, preparando-lhe o desjejum. A seguir foi a caixa receptora no portão da rua, pegou os três litros de leite e os dois pães que o entregador da padaria do bairro, ali deixava antes das cinco horas.
Preparado e com sua pasta arrumada, Willy sentou-se à mesa e junto da esposa tomou o café. Como de hábito, ao terminar seu desjejum, levantou-se, pegou a pasta e beijou Dona Verônica. Recomendou-lhe que ficasse tranqüila e procedesse como normalmente fazia, para não levantar suspeitas no Weber.
Próximo das sete horas, Weber chegou na cozinha, sentou-se, cumprimentou a mãe e ficou aguardando que lhe servisse. Depois do café, pediu licença e foi rever a “margarida”. Como planejado, ela aguardou por dez minutos e cautelosamente, saiu pela porta da sala de visitas. Com muito cuidado, colocou-se atrás do tronco do abacateiro para observar. Estupefata, percebeu que ele conversava com a “margarida”. Voltou para a cozinha e enquanto preparava a mesa para os retardatários Ted e Gerson, ficou a matutar de que forma poderia aproximar-se do Weber sem ser notada e o bastante para que pudesse ouvir o que falava.
Após o almoço, quando os três meninos saíram para a escola, ela fez uma verdadeira devassa na área dos fundos, tentando localizar algum livro que pudesse estar por ali. Nada encontrando, ficou ciente de que seu filho não obtinha nenhuma informação naquele local. Ainda indignada, perguntava-se: Será que Weber fez de sua “margarida” um “amigo invisível” ? Sem alternativa, passou a preocupar-se com o fato do filho estar vivendo num mundo virtual, de fantasias. Como faria para traze-lo de volta à realidade? Questionou-se. Era uma nova situação e que merecia a sua atenção. Até que ponto as idéias dele viajavam? A que distância estaria ele do mundo real? Qualquer atitude teria que ser tomada, somente após ter conhecimento do que seu filho conversava com a planta, caso contrário, uma precipitação, poderia causar-lhe um trauma ou um sentimento de perda irreparável. A situação estava realmente se complicando, era preciso voltar a conversar com seu marido. À noite contou tudo para o marido. Willy depois de ouvir toda a explanação, ficou de pensar melhor, com mais cuidado, porque o caso agora estava mais sério do que imaginara. Disse que iria conversar com seu irmão, psicólogo, e saber como agir.
De manhã, antes que Willy saísse para o serviço, Dona Verônica alertou-o de não esquecer de falar com o irmão. Na mesma hora ele pegou o telefone e marcou com Wild, seu irmão, um encontro para almoçarem juntos no restaurante próximo do seu escritório. Despediu-se e partiu.
Depois que Weber tomou o café e foi ver a “margarida”, Dona Verônica acompanhou-o por todo o percurso. Ele sentou-se ao lado do vaso da margarida e depois de colocar um pouco de água no prato de plástico, ficou observando a planta. Como nada falava, depois de alguns minutos, fingindo procurar alguns panos, ela resolveu retornar aos seus afazeres. No meio do corredor parou e, levada muito mais por reflexo e curiosidade, voltou-se cautelosamente, descalçou os chinelos e foi até o fim do corredor. Bem encostada à parede e tendo como aliado o silêncio, pode escutar o que Weber falava com a “margarida”, inclusive fazendo-lhe perguntas sobre a sua experiência. Ela ensaiava um discreto sorriso quando escutou uma voz muito fina, respondendo as perguntas do Weber. Suas pernas ficaram trêmulas e, tomada por uma indignação sem precedentes, arriscou uma rápida olhadela no local. Pasma, pálida e reticente, acabava de verificar com seus próprios olhos que os dois conversavam normalmente. Mais uma olhadela e pronto. Estava criado o maior impasse em sua cabeça. O que estaria acontecendo? Não era possível acreditar naquela cena. Aquilo era uma fantasia. Será que estava tendo uma alucinação? Muito preocupada, retirou-se vagarosamente para a cozinha aonde, em minutos, chegaram o Ted e o Gerson.
A algazarra dos dois foi até oportuna, fez com que ela se desconcentrasse e, entretida pelas obrigações de mãe, servisse o café àqueles peraltas. Enquanto aguardava que acabassem, ficou pensando o que iria fazer. Contar ou não, o presenciado? Óbvio que ninguém acreditaria naquele “conto de fada”. Nem mesmo seu marido e, certamente, pensaria que ela estava estressada e precisando de um tratamento psicológico. Por isso resolveu dar “tempo ao tempo” enquanto não encontrasse uma saída adequada.
Quinze dias depois da “margarida” desabrochar, muitas mudanças ocorreram com seu filho que, apesar de favoráveis poderiam trazer-lhe sérios problemas psicológicos. Como aquela jovem cabeça estaria recebendo a carga daquele relacionamento tão incomum? Perguntava-se. Os cuidados com Weber deveriam ser multiplicados, dizia o coração de mãe.
Escutava todas as manhãs a conversa do filho com a “margarida”, sempre sobre o trabalho. Aprendeu que a família vegetal “Compositae” caracterizava-se por apresentar suas flores protegidas por um receptáculo de brácteas (folhas modificadas), compondo uma inflorescência denominada “capítulo”. Que as flores, como no caso das margaridas, são de dois tipos: as que circundam o capítulo, são chamadas flores marginais, têm um só sexo, são femininas e apresentam uma única pétala (conhecida por lígula), desenvolvida e de cor branca imaculada ou de outras cores, enquanto que as flores centrais são menores, muito mais numerosas, amarelo-ouro e têm os dois sexos (são hermafroditas), formando o “miolo da margarida”. Que as flores, tanto as marginais brancas quanto as centrais amarelas, têm o seu ovário em posição ínfera.
Dois dias se passaram e, pela manhã, Weber não chegou na cozinha, para tomar seu café, no horário de costume. Ao entrar no quarto, com ele já acordado, perguntou-lhe: Perdeu a hora hoje? Não, estou com dor de cabeça, moleza e frio. Também umas dores pelo corpo. Porque não me chamou, Weber? Não quis incomodá-la! Ora filho, em caso de doença a gente deixa as outras coisas de lado.
Pegou o termômetro, colocou-o na axila do filho, aguardou por dois minutos, retirou-o e quando da leitura, surpreendeu-se. A temperatura em mais de 39° Celsius pressupunha alguma infecção. Ajudou-o a levantar-se, lavar o rosto, escovar os dentes, arrumar-se e levou-o ao médico.
Depois de examinado, não sendo constatada nenhuma infecção otorrinolaringológica, o médico disse para Dona Verônica que ele apresentava sintomas de “dengue”, por isso iria fazer outros exames para certificar-se, mas enquanto aguardasse o resultado, o Weber teria que ficar em repouso absoluto e seguir uma dieta.
Mais preocupação e sofrimento para um coração materno. É o curso natural da vida. É a lógica e a razão do existir.
Chegando em casa, depois de fazer uma rápida higiene no quarto do filho, trocando as roupas de cama e acomodando-o, Dona Verônica foi até à sala, pegou o telefone e comunicou o fato ao seu marido e a professora de Weber, conforme seu filho havia solicitado. Em seguida, alertou o filho de que deveria seguir rigorosamente a dieta e as orientações médicas.
Quando se retirava do quarto, Weber pediu-lhe que trouxesse uma cadeira, deixasse-a perto da janela onde entrava uma fresta de sol e colocasse sobre ela o vaso da “margarida”. Percebendo a necessidade de atender ao pedido do filho, respondeu-lhe positivamente.
Ao retirar o vaso de dentro do prato plástico, veio-lhe a surpresa e o espírito de culpa. Ali estava um foco de larvas de mosquito e certamente do Aedes aegypti. Sem querer despertar medo em Weber, ela pegou um outro prato plástico, encheu-o de areia, como é o correto, colocou-o sobre a cadeira e foi buscar o vaso.
Em seguida telefonou para a Prefeitura e solicitou uma perícia em sua casa.
Estando a cidade, vivendo uma epidemia de “dengue”, excepcionalmente, o atendimento foi rápido e eficiente. Comprovada a existência do foco, realizaram uma aplicação de inseticida no quintal e após as recomendações de praxe, os funcionários da equipe despediram-se, deixando-lhe votos por um pronto restabelecimento do menino.
Como de costume, Weber e a “margarida” conversavam todo o tempo em que estavam a sós. Alem das costumeiras perguntas e respostas sobre o trabalho, nesse dia, a “margarida” fez questão de lembrar que só estaria com ele por poucos dias, pois a sua parte no ciclo da planta era de trinta dias. Puxa! Eu nem pensei mais nisso! Para mim você já era uma companheira para a eternidade. E sou, retrucou. Como assim? Perguntou Weber. Olha menino, a minha participação nessa história tem uma razão de ser, porém eu não vou te contar. O tempo te dará o discernimento e a compreensão, necessários para decifrar esse enigma e, quando isso ocorrer, também você saberá a sua parte e o significado de sua existência no ciclo da vida.
Nesse momento, entram no quarto os seus irmãos. Ao contrário de todos os outros dias, chegam calmos e em silêncio. O Gerson pergunta: Você estava falando sozinho? É, responde-lhe Weber, acho que estive sonhando. Nada disso, intercede o Ted. Isso já aconteceu comigo quando estive doente e com febre alta. Segundo o médico, esse fato, chama-se delírio. É como se estivesse realmente acontecendo todas aquelas coisas em que estamos pensando. Só que estamos meio inconscientes por causa da febre e não temos muita fixação. Esboçando um leve sorriso, Weber parece concordar com a explicação do irmão. Ted conclui: Olha mano! Se precisar de alguma coisa é só chamar a gente, viu? Apesar da gente viver te perturbando e fazendo muitas gozações, nós gostamos muito de você, falou? Concordando ao levantar o dedo polegar, Weber volta a ficar sozinho.
Tomado pela moleza característica nos estados febris, ele adormece.
Preocupada, “vira e mexe” (dito popular que se refere a um fato ou coisa que se repete a todo o momento), Dona Verônica vai até a porta do quarto de seu filho e observa-o. Tudo parece estar tranqüilo, pois apesar de muito suado, sua respiração não é ofegante. Vagarosamente aproximasse da cama e suavemente, coloca as costas de sua mão na testa do filho para sentir a sua temperatura que, naquele momento, parece ter cedido alguma coisa. Esta atitude ela repete por várias vezes durante todo o dia, estivesse Weber cochilando ou mesmo acordado.
Dois dias depois, Weber recebe a visita da professora. Dona Aída foi fazer-lhe, além da visita, uma confidencia, pois sendo professora de ciências, era inadmissível não ter lembrado de alertar sobre os cuidados devidos. Ainda mais por não ter observado, quando examinou a sua planta, a presença indevida do prato plástico, sob o vaso, com água. Porém agora, nada mais mudaria o acontecido, restava prestar-lhe todo o apoio e tranqüiliza-lo quanto à apresentação do trabalho. Disse-lhe que, somente quando estivesse totalmente curado, deveria ir a escola para apresentar o seu relatório. Pois, tinha certeza de que nenhum dos trabalhos a serem apresentados, seria tão completo quanto o dele, com tanta riqueza de detalhes, devido à dedicação e o empenho com que vinha demonstrando, durante a execução do mesmo.
Notando que ele estava cochilando, passou a mão em seus cabelos e despediu-se. Ia se retirando quando escutou aquela voz muito fina. “Nada adianta à senhora, querer agora, mostrar-se solicita. Se cumprisse com responsabilidade o seu dever isso não teria acontecido. A distração ou omissão em não fornecer um dado tão importante, capaz de por em risco uma vida, demonstra bem a qualidade do profissional. Esse erro jamais será reparado, mas certamente, restam-lhe alguns anos de vida e, a senhora encontrará uma forma de superar esse trauma. Caso isso não ocorra, só um Ser Superior poderá perdoa-la”.
Assustada, olha à sua volta e não vê ninguém. Volta-se para Weber que está dormindo. Aflita, retira-se do quarto e chama por Dona Verônica que prontamente lhe atende. A senhora está pálida professora, o que houve? Não sei, acho que minha pressão caiu! Disfarça. Espere um pouco sente aqui na cozinha, vamos conversar enquanto lhe preparo um café e depois a senhora vai embora. Não! Dona Verônica. Muito obrigado, mas estou bastante atrasada. Despediu-se e seguiu no rumo de sua casa, totalmente desorientada e carregando uma grande dose de frustração e muita culpa. Extremamente religiosa, jurava ter recebido um aviso dos céus, na voz de Deus e, a partir desse dia, transformou-se na professora mais dedicada, preocupada, responsável e profunda conhecedora, não só de sua matéria como também de todos os segmentos que, de alguma forma, inter-relacionavam-se com sua área de estudos.
No dia seguinte, Weber já se sentia bem melhor, a febre havia cedido e a sua fisionomia era bem mais saudável. Embora pretendesse levantar-se, sua mãe não concordou porque o médico dependia do resultado dos exames para uma avaliação final. Por isso ele ficaria ali em sua cama, onde lhe serviria o café da manhã.
Apesar de contrariado, ele teve que concordar com as condições impostas pela mãe. Além do diferenciado desjejum, sem pão, sem leite e sem queijo branco, ainda teve que se contentar, apenas com um chá preto e as torradas.
Weber, depois de “engolir” o desjejum, sentado na cama, pegou na gaveta de sua escrivaninha, colocada ao lado da cabeceira, seu caderno de anotações e, delicadamente, pediu que a mãe se retirasse para que ele continuasse a escrever seu trabalho. Ela sorriu e disse-lhe: Claro meu filho, com todo o prazer. Aproximou-se, beijou-o e foi para a cozinha enquanto pensava: “Agora ele quer ficar conversando com a sua margarida”.
Com os últimos acontecimentos ela já estava identificada não só com aquela situação, como também cedia espaço para a “margarida”, dividindo com ela a atenção e dedicação ao seu filho, vendo-a como uma aliada e não mais um “problema” capaz de prejudica-lo.
Pouco tempo depois chegam seus irmãos, dessa vez, sem fazerem barulho. Weber finge cochilar, deixando o caderno caído sobre a cama. Ted e Gerson aproximam-se, passam as mãos na cabeça de Weber e sussurrando, pedem-lhe desculpas por terem trocado as suas sementes na prateleira da estante, afirmando ter sido apenas uma brincadeira, juravam que não queriam lhe prejudicar. Foi quando aquela voz fina os interpelou: “Escutem, seus moleques, essa brincadeira poderia fazer seu irmão repetir o ano. Tenham vergonha nessas caras e sumam daqui”. Ted e Gerson entreolharam-se, também para Weber que continuava dormindo, olharam para todos os lados e, nada vendo além da “margarida”, saíram em disparada até o quintal. Verdadeiramente apavorados, julgando terem escutado vozes do outro mundo ou mesmo aquela “margarida” falar, conforme insistia em afirmar o Gerson, juraram de mãos postas, que nunca mais fariam travessuras ou gozações com as coisas do irmão.
Mais dois dias e Weber já se sentia “pronto para outra”, porém sua mãe não “arredava os pés” das determinações médicas. Naquela manhã, nem mesmo seus irmãos foram vê-lo no quarto. Seu estado não inspirava maiores cuidados, como dizia o Ted, em tom de blague.
Chegando um pouco mais tarde para o almoço, por ter ido buscar o resultado dos exames do filho, seu Willy foi até o quarto de Weber, mandou que ele se arrumasse e fosse espera-lo na sala. Dirigiu-se até o banheiro e lavou as mãos. Passava do meio dia e meia. Dona Verônica já arrumava a mesa, apressada e ansiosa por saber o resultado dos exames. Ted e Gerson, devidamente uniformizados e penteados, com suas mochilas prontas, aguardavam na mesa.
Willy havia convidado seu irmão Wild para o almoço e que acabara de chegar, pois a campainha tocou. Dona Verônica abre a porta, recebe o cunhado e com ele se dirige para a copa. Após lavar as mãos, Wild ia tomando seu lugar à mesa quando Willy chega, abraça-o e em seguida sentam-se.
Seu Willy chama por Weber que também toma seu lugar na cabeceira da mesa, oposta à que seu pai está. Escutem-me, saí do serviço peguei o resultado dos exames, fui ao consultório do Dr. Mário e ele me disse o seguinte: Vocês precisam tomar mais cuidado e redobrar as atenções com seus filhos. A vida nos prega surpresas que nem sempre são boas e esse foi um caso que muito me preocupou. Se, em sua casa, foi detectado um foco de larvas da dengue, onde os cuidados e higiene nunca faltaram, imagine nas casas da periferia onde a administração pública não é capaz de oferecer um mínimo de saneamento básico? O que tenho a lhe dizer, de verdade, é que seu filho não tem nada, foi só uma pequena virose sem conseqüências, portanto pode libera-lo para todos os seus afazeres.
Dona Verônica já estava abraçada e beijando seu filho que logrou escapar-lhe do abraço e correu para o quarto gritando: “ Vou vestir o uniforme e já volto, põe meu almoço no prato mamãe, com tudo o que tenho direito”.
Muito sorridente, Dona Verônica, a mais feliz de todos, começou a servir o almoço.
Weber retorna para a mesa, senta-se e, como nos bons tempos, revive aquele incontido glutão.
Ted e Gerson, quase que em uma só voz dizem: “Esse é nosso irmão”.
Quando todos terminam, Weber pede-lhes atenção por uns instantes, para fazer uma declaração. Pede-lhes que aguardem por um momento. Vai até seu quarto e trás consigo o vaso com sua planta, colocando-o na cadeira em que havia sentado para almoçar. A “margarida” já está meio-ressequida, frutificando, no fim do ciclo, os trinta dias de florescimento haviam passado, sua missão estava no fim, o relatório de Weber também. Tudo havia saído de forma a satisfazer a todos. Foi aí que Weber dirigiu-se à sua mãe e disse-lhe: Mãe faça uma pergunta para a “margarida”! Sem graça, constrangida, mas levada por tudo que já tinha presenciado, ela faz a seguinte pergunta: “Margarida”, eu sei que muito tenho para agradece-la, não só pela companhia que fez ao meu filho por todo esse tempo, mas por tudo que me ensinou, porém diga-me, porque não falou comigo?
Atônitos, seu Willy e Wild sem nada entenderem; Ted e Gerson ante a possibilidade de ser desvendado o mistério que carregavam, aguardam silenciosos. Ante seus olhares de indignação, aquela voz muito fina lhes diz: “Concluí o meu ciclo e estou partindo satisfeita por ter sido útil, pacífica e compreensível. Meus filhos, netos e bisnetos, como os seus, irão se encontrar e tudo que devemos desejar-lhes é que vivam em harmonia, em busca de um mundo cada vez melhor”.
Tomando a palavra de imediato, Weber comunica a todos que tudo que aprendera sobre o seu trabalho, foi num livro de botânica que emprestara da Biblioteca Municipal e que estava escondido em seu quarto e que, a maior surpresa que queria fazer-lhes era a de ter aprendido ventriloquia, enganando assim à sua mãe, aos irmãos e a professora Aída.
Como tinha ficado adoentado, aproveitou-se da situação para pregar uma peça em seus irmãos e na professora, chamando-lhes a atenção por seus comportamentos inadequados e capazes de trazerem prejuízos para as outras pessoas.
Foi uma verdadeira algazarra e, entre sorrisos e abraços, acabam por derrubar o vaso da “margarida”. Instantaneamente Weber em voz fina diz: “Foi essa a maneira que encontrei para participar de toda essa alegria, afinal de contas eu fui e sou a atriz principal dessa história”.