Cão sobre cão
“Não se preocupe com o segundo ato enquanto o primeiro não tiver terminado”
Stephen King
Uma das pernas estava sobre o muro. A outra era puxada e rasgada por dois cães que se revezavam em tremendas mordidas e puxões. Quando um cão cansava, o outro acudia com o terrível trabalho de morder, perfurar, segurar e babar.
-Sai pra lá, malditos!!
A cabeça, os ombros e o tórax puxavam para cima enquanto a massa volumosa de dois rottweilers puxavam-no para baixo.
-Me larga, larga seus monstros!!
A cada mordida a dor repercutia por todo o corpo. Sentiu-se propenso à queda e, ademais, a cruciante dor o impedia de pensar. Se pudesse pensar, escolheria viver. Cair era morte certa.
-Solta, solta, seus animais!!
As mãos suando, a camisa rasgada pela fricção no muro, a garganta seca e os olhos ardendo de lágrimas. Pior que isso era a certeza da solidão da noite. Na rua sonâmbula não passava ninguém. O silêncio só era quebrado pelos latidos dos cães e sua pesada respiração.
-Para, para, assassinos!!
Devido ao corpo estar tremendo e a fraqueza o invadindo, a dor ficou secundária, localizada apenas na perna. A aflição do medo começou a turvar-lhe as vistas. Se desmaiasse morreria inconsciente sob caninos ensanguentados.
-Sumam, arreda demônios!!
Fechou os olhos, as lágrimas desciam sobre os lábios cerrados e pelo queixo, vindo azeitar os pelos intumescidos do peito. Sentiu as puxadas e mordidas arrefeceram. Pressentiu que era a trégua da morte.
-Vão, vão embora, abutres!!
Num átimo, ouviu o resfolegar dos cães e atinou que eles ganhavam tempo para recuperar as forças. A perna semidestruída continuava dependurada. Era uma massa vermelha e inerte. Não conseguia levantá-la sozinho e não podia baixar as mãos para pegá-la.
-Desapareçam, seus escrotos!!
O coração batia a ponto de explodir. As veias do pescoço saltando e as calças molhadas de urina e fezes foram as últimas coisas simples que observou antes da dor fatal. Ouviu o medonho barulho de garras arranhando o muro. Ainda teve forças para ver o inominável: um cão sobre o outro preparando o salto. O rosto e a garganta expostos para a mordida letal. O urro agônico cortou a indiferença da noite:
-Uorhgggg....arghhhh!!!
Sofreu a queda no chão duro e frio. Quando pensou que havia morrido indignamente, acordou com o bico da bota do encarregado do setor. Abriu os olhos cansados para a imensidão do pátio. O outro o advertiu a respeito de dormir com o pé embaixo da empilhadeira. Ainda zonzo puxou a perna. Sentiu que doía.
-Por que não me acordou antes?
Com olhos duros encarou o encarregado. Este já ia cutucando outros que também dormiam. Forçou o tronco, levantou-se e saiu mancando. Massageava a traqueia e puxava da perna. O corpo todo doía do pescoço para baixo.