O nome de Fernão Capelo,  constou, não necessariamente, da lista oficial dos mortos, mas, entre os desaparecidos.  A Marinha Brasileira recolheu corpos em águas internacionais. Entre os mortos, Vannini Lopes Potiguará Saboia  Capelo; comandante Hemor Bar-Hemor de Siquém, um padre, uma freira e mais de meia centena de corpos ainda não identificados. Enlutado, o Salão do Livro listou o nome dos escritores mortos no acidente aéreo. Paola abriu lentamente os olhos, e leu seu nome na faixa,  logo abaixo  de seu  poema ‘Passeio sem rumo’. Agora podia viajar para qualquer parte do mundo, em fração de segundos, e se quisesse, poderia estar em vários lugares ao mesmo tempo. Então foi para Dakar. Viu as freiras de sua congregação, consolando os aflitos. Esperavam a irmã Paola, choravam por ela. Paola  estava ali e ninguém via.
— A natureza árida e fria, habita o coração pacífico de tantos poetas — disse André, passando as vistas na faixa — Quantos sonhos, quantos voos literários interrompidos! Tentou conversar com Paulo Valença, falar das últimas produções depositadas no Portal. Paulo não o ouvia, não respondia nem mesmo aos acenos de mão. Ainda na loja, Ravenala ligou repetidas vezes para o número da mãe de Fernão. O telefone tocou... tocou... Tocaram o interfone, bateram à porta. Tudo silente... O  Corpo de Bombeiros foi acionado.
 Infarto, disse o paramédico.
Ravenala foi levada em espírito a uma praia coberta de ossos ressequidos e uma voz profética ecoou em seu coração:  O mar devolverá à praia todos os corpos que engoliu, e a terra prestará contas dos mortos guardados em suas entranhas. Alguém tentou acordá-la massageando-lhe a face. Ela despertou como se voltasse de um pesadelo.
— Saiu a lista oficial de passageiros do ABS 815?
—Sim, a lista de mortos e de desaparecidos.
Intrigada, a viuvinha questionava: Será que Deus predeterminou a morte de 214 pessoas de uma só vez,  e os colocou no mesmo voo? para economizar acidentes? E segurou um sorriso, abafando-o com  lágrimas.
Ravenala teve a ideia de fazer uma vistoria nas coisas de Fernão. Não queria nenhum dos seus pertences, apenas colher mais fragmentos de uma história da qual fizera parte, por algum tempo. Conhecera o pai dele,  um artesão pernambucano que viera morar no Rio de Janeiro. A mãe, uma vedete nascida em Minas e banida pela família, quando abraçou  a arte de representar.  Era tudo que sabia de Fernão.
Recolheu na portaria as correspondências e se dirigiu ao apartamento. Abriu o guarda-roupas, criados, e vasculhou gavetas. Leu o diário de Vannini; olhou álbuns  e viu cartas não postadas com o endereço de  Vannini Potiguará Saboia Capelo; rua Claude Monet, Paris; viu ainda poemas, poesias, recortes retorcidos, e embolados como rascunhos, jogados na lixeira. Desembrulhou, cuidadosamente, alguns deles. Tentou juntar pedaços, mas não conseguiu nada além de frase soltas, e parte de poemas incompletos.
Sobre uma pequena mesa da sala, o telefone repica.
— Quem?
— Potiguará...
— Não entendi!
O interlocutor se refez, e perguntou pausadamente:
— Q u e  m...   e s tá...   a í?...
— Ravenala.
—  Sou Galdino. Galdino Potiguará, o pai de Vannini. Você é a faxineira?
— Sim! Sou a faxineira.
— Há notícia de sobreviventes no acidente aéreo?
— Não há notícia de sobreviventes. Só mortos e desaparecidos. O Senhor Deus reconforte a alma daqueles que perderam parentes naquele voo.
Deixou a  chave na portaria e afastou-se.
Meio viúva, meio solteira, estacionou o veículo numa rua que deságua na avenida Nossa Senhora de Copacabana. Desceu descalça e caminhou na areia, deixando o rastro desalinhado  de suas pegadas. A linha ondulada das águas, brilhava esbranquiçada no fluxo e refluxo da maré. Teve medo. Pareceu-lhe ouvir gritos de náufragos pedindo socorro. 
Recordações do acidente na plataforma do metrô  trouxeram-lhe à mente as palavras de Fernão: Eu tropeço, tu me pegas; tu escorregas, eu te seguro pelo braço.  Era a lembrança mais reconfortante, e também a mais carinhosa que guardava do marido.  
O sol pendia. Pombos catavam migalhas de alimentos deixados pelos banhistas na praia. A luz do sol fraquejava.  Era hora de voltar pra casa.

***
Adalberto Lima, últimos capítulos de "Estrela que o vento soprou."