Número dois
 
Havia uma semana que estava desempregado. Preocupado com a situação, olhou a semana que passou como umas férias, uma folga, afinal, havia trabalhado três anos consecutivos sem férias, devido às necessidades, havia vendido as.

Antes de levantar da cama, penteou os cabelos com os dedos das duas mãos, alternando-as, a direita iniciando na testa até a nuca, a esquerda partia da orelha esquerda e seguia freneticamente para a direita.

Coçou os olhos em seguida, uma remela amarela dura lhe incomodava. Nem ele entendeu, mas num repelão, jogou a coberta, o virol e todos os travesseiros no chão, contraiu os músculos das pernas tanto, que teve um início de caimbras, na batata da perna direita e no posterior da coxa esquerda.

__ MeuDeusdúCéu, gritava desordenadamente, compulsivamente estendia uma perna e retraia a outra. A dor era tanta que justificava clamar, apelar pra Deus.

Chorava, mas não permitia uma única lagrima escorrer ou encher-lhe os olhos, reprimia-as antes do final do canal lagrimal.

Com seus 115 quilos, a vítima das caimbras, se atirou da cama, mantendo uma perna por debaixo da cama e a outra por cima da cama, contorceu-se o quanto podia, buscou ar para respirar, encontrou um pouco no canto do quarto, onde um dos pés da cama quebrado, estava apoiado na junção das paredes.

Suando as bicas, deu um tranco no quadril, o suficiente para se contorcer mais um pouco e manter as duas pernas esticadas. O suor era tanto que tinha que manter os olhos cerrados, o sal do suor era demais.

Pela fresta da porta do quarto, o filho observava tudo. Registrava com todos os detalhes as estripulias, as peripécias e o sofrimento do pai. Como o pai é um homem nervoso, muito nervoso, o filho julgou pelo seu bem e da mãe não adentrar o quarto para ajudá-lo. Fez muito bem, um contravapor seria certeiro, bem na fusa do filho, quando o pai recobrasse o controle do corpo.

Com a mão direita na parede e a outra na porta do guarda-roupas, ficou em pé. Em nenhum momento dobrou os joelhos. Mantendo as pernas retas, elevou-se do chão, todo molhado de suor, seguiu para o banheiro com passos trêmulos, embora não dobrasse os joelhos de maneira nenhuma, chegou ao destino traçado.

Passou pelo filho, cumprimentou o com um aceno de cabeça, observou a esposa que mantinha uma perna reta, a outra dobrada com o pé no joelho, estava debaixo do portal da cozinha.

Valtinho ao ver que o pai estava recuperando-se bem, saiu pela porta que estava a mãe. Não a beijou, apenas lhe disse um tchau costumeiro da família e seguiu para a escola.  A mãe retribuiu-lhe a despedida com outro tchau.

Permanecendo como dantes, a mãe alisava a barriga, o pescoço e o rosto, depois retornava à barriga e começava tudo de novo, aquela fixação em se coçar era um prenúncio, era um problema, era um baita problemão.

Felipe saiu do banheiro como nos últimos três últimos anos: barba feita, banho tomado, cheirando a lavanda, meias brancas, sapato preto, calça e camisa azul petróleo. Foi até a penteadeira do quarto, pegou a carteira, celular e as chaves da casa.

Filomena continuava se alisando debaixo do portal da cozinha. O marido passou pela esposa, deu lhe um carinho nos ombros, no pescoço e por fim, no centro da testa, uma lambidinha com a pontinha da língua, bem úmida. Filomena continuava como outrora.

Felipe tomou uma xícara de café, comeu um pedaço de pão adormecido, lavou as mãos na pia da cozinha, passou pela lavanderia, enxaguou a boca, gargarejou por alguns segundos, depois cuspiu tudo que tinha na boca flutuando com a água do gargarejo no tanque de lavar roupas. Enxugou a boca com as costas da mão e ganhou a cidade sem rumo definido.

De uma elasticidade absurda, Filomena coçou o calcanhar que estava apoiado no chão, mantendo a outra perna dobrada descansando sobre o joelho. Suspirou após uns minutos naquela posição esdrúxula, falou pra si mesma: Mais um dia de cão. Porra!

Na segunda feira seguinte, as coisas continuavam as mesmas, menos as caimbras em Felipe. A esposa sentia algo a lhe queimar o estomago, algo que destilava no estomago e queimava dentro de sua barriga, às vezes, algo liquido e gelatinoso escorria dos rins e do fígado, castigando as tripas, ou destilava no fígado e queimava no estomago e nos rins.

Quanto mais essa coisa amarga e etílica queimava dentro dela, um não sei o quê, crescia proporcionalmente as horas que passavam.

Era ódio! Odiava e tinha uma aversão pelo bairro inexplicável, em seguida passou a fustigar a cidade, posteriormente o mundo, por fim, aturava o filho e o marido por um motivo de força maior.

Na quarta-feira, Felipe acordou como uma criança que ganha um doce. Levantou da cama como um adolescente no seu primeiro dia de namoro. O filho ainda dormia, a esposa havia feito o café, distribuiu o pão de cada dia para cada um da família, esperava sorridente pelo marido sentada no lado oposto da cabeceira da mesa.

O casal tomou o café da manhã juntos. Senhor de seus ímpetos, Felipe retornou ao banheiro, escovou os dentes, lavou as mãos com sabão liquido Rita Jardim, passou pela esposa, entrementes, lascou lhe um beijo na boca. Mordeu os lábios dela sensualmente e seguiu para sua tão esperada entrevista.

Chegou às oito horas, sua entrevista estava agendada para às oito horas e quarenta e cinco minutos. Se identificou na portaria, teve o acesso liberado à empresa, foi acompanhado por um segurança até a porta da sala de entrevistas do RH. Guardinha desconfiado, uma mão no revólver e os olhos em Felipe.

Atravessou o portal da sala, cumprimentou a recepcionista, uma mulher na casa dos trinta anos de idade, mas parecia uma mulher cansada e aborrecida com a vida. Sentou em uma poltrona confortável, mas manca, se apoiasse o braço direito no descanso da cadeira, a poltrona inclinava levemente. Vergava o suficiente para criar um clima de olhares entre a recepcionista e ele.

Após se adaptar à poltrona e se sentir confortável, sentiu algumas contrações no abdômen, alguns solavancos, seria nas tripas? Um desconforto no assento da poltrona. Tentou se levantar, mas uma fisgada forte no abdômen fez Felipe mudar de ideia por um momento. Aquietou-se.

Na mesma velocidade em que uma quantidade enorme de gotículas de suor brotava-lhe no rosto, na nuca, no pescoço e no peito, retirou o lenço do bolso da calça e enxugou-as. Com muita determinação levantou se da poltrona, mas quando estava com o corpo ereto e pronto para seguir até ... A porta ao lado da recepcionista se abriu, uma senhora morena de estatura média, lhe convidou para entrar.

O futuro entrevistado, olhou para as mulheres com um sorriso tão singelo, tão desprovido de motivação, que a entrevistadora lhe perguntou:

__ O senhor está se sentindo bem? Quer mudar o dia da entrevista?

Numa fração de segundos, coisa de milionésimos de segundo, um fato lhe aflorou na mente, num facho de luz, sua consciência lhe dizia timidamente: o aluguel e o gás era fiado; a estampa do filho e da esposa esvoaçavam em sua mente, parecia um filme três D. Boca seca, as mãos de tão úmidas, que gotejavam as bicas.

__ Estou bem, estou ótimo. Respondeu Felipe.
Marinalva, a psicóloga que entrevistaria Felipe, convidou-lhe a entrar na sala, justificando a antecipação. O candidato das oito horas não tinha comparecido.

Duas horas após entrar na sala, Felipe despediu-se de Marinalva como funcionário da empresa. Apesar do sofrimento, apertou as duas mãos da entrevistadora, mantendo todos os músculos do corpo contraídos e enrijecidos no limite. Sorriu sem aliviar a tensão dos nervos.

Quando Felipe ganhou a rua, pensava em cada detalhe do rosto de Marinalva: enclausurou os rostos da esposa e de Marinalva numa mesma moldura em sua mente, comparou as. Antes de chegar em casa sentenciou: sou mais a minha patroa, mesmo com suas posições esdrúxulas no portal da cozinha.

A entrevista aconteceu na quarta feira, começou a trabalhar na quinta feira, aos sábados não trabalharia, pela primeira vez na vida não trabalharia aos sábados e domingos. Felipe se sentia no céu.

Naquele primeiro sábado, acordou as dez e meia da manhã, não penteou os cabelos com as mãos, não jogou nada da cama no chão, levantou calmamente, deu um piparote de leve na cabeça do filho, uns tapinhas nas ancas da esposa, sentou no sofá, ligou a tv, esticou os braços no encosto do sofá, bocejou várias vezes olhando para o teto, percebeu que havia uma telha rachada.

Filomena sentou ao lado do marido, alisou a perna esquerda dele e lhe avisou em forma de intimação:

__ Paixão! Temos uma festinha pra hoje à noite, é na casa de uma amiga que canta na noite, ela vai cantar as músicas do seu novo CD que será lançado semana que vem. Olha! Vai estar bufando de gente lá viu, você se prepara, vai ser o “Ó do borogodó”.

Enquanto a esposa fazia o almoço, o marido saboreava uma cerveja geladíssima, com um olho na tv e o outro na mistura do almoço:

__ Amorzinho! Você traz uns pedacinhos dessa costelinha de porco pra mim?

A esposa nem pestanejou, levou rapidão. Ela sabia que levar aquelas costelinhas pra ele era seu passaporte, a sua garantia que à noite a ida à festa estava garantida.

Felipe tomou seis cervejas, aquelas do casco verde, três doses de pinga de Salinas. Deitou no sofá e dormiu, dormiu tão serenamente que roncou alto e constante durante as três horas que ficou todo dilatado no sofá.

Às sete horas da noite foi acordado na base de empurrões e chiliques da esposa:

__ Acorda! Seu manso! Já são sete horas, vá tomar banho, fazer a barba e se vestir pra festa da minha amiga!

A mulher não bufava ainda, mas os lábios trêmulos e a mão agitada nos cabelos, era um sinal claro.  Deveria levantar rápidin, ou a mulher teria um ataque de histeria ali em poucos segundos.

Felipe levantou bem calmo e devagar, numa atitude como um aviso pra esposa: tudo bem, mas você não manda em mim, confabulava consigo mesmo.

Tomou banho, barbeou-se e seguiu para o quarto para se vestir. Experimentou uma, duas, três calças, todas apertadas. Matutou por um tempo, lembrou de uma calça que uma irmã lhe deu de presente, apesar de muito larga, às vezes serviria, e não é que serviu!

Calçou seu sapato mocassim azul marinho, sua meia verde favorita, a calça de cor verde oceânico e camisa verde água.

Às nove horas, a esposa estava pronta, vestido longo preto cheio de lantejoulas de cor prata, os cabelos amarrados no topo da cabeça formando um coque enorme. Parecia que os cabelos estavam todos embaralhados, mas não, entre as mulheres aquele penteado é chique, fino, é de arrasar.

__ Felipe! Você está ridículo com essa roupa, que palhaçada é essa? E essa calça! Sua irmã trouxe para o seu pai, seu palhaço!

__ Felipe, nós vamos passar na casa da minha mãe para deixar o Valtinho lá, nós não temos hora pra voltar.

Os três saíram de casa às nove e meia da noite, quinze para as dez chegaram na casa da amiga cantora.

Juliana, a amiga e cantora era albina, mas os amigos lhe chamavam de Preta. Sua casa ficava num bairro residencial, comércio lá, nem pensar, só residência.

A casa era simples, mas grande, bem distribuídos os cômodos, entre a casa e uma meia água no final do terreno que servia de dispensa, havia uma piscina muito sinuosa, não havia nenhuma reta na piscina.

Na meia água, haviam três portas, todas voltadas para a casa grande, e um banheiro. Entre a dispensa e a piscina, foram montados os instrumentos da banda, bem próximo da porta do banheiro.

Mariana cumprimentou todas as amigas, colegas e principalmente a cantora. Felipe, como quem não queria nada, sentou-se perto da banda, quase ao lado do banheiro.

Não demorou muito e a banda começou a tocar e a cantora soltou a voz, uma linda voz. Cantava músicas tipo bossa nova.

Música boa, cerveja gelada, tira-gosto ótimo, a noite estava perfeita. Mariana conversava e ria pra chuchu, até aquela dor abdominal surgir de repente. Exatamente como no dia da entrevista, era ela mesmo, mas agora a dor era indecente de forte, muito forte, sentiu as tripas esticando e encolhendo, uma golfada intensa na barriga lhe fez ficar antenado, preocupado.

Olhou para direita, para esquerda, para frente, o suor descia frio e abundante no rego da espinha, calculou a distância de onde estava até a casa grande, não daria tempo, apesar de desconfiar do que se passava, não tinha certeza absoluta, apenas um palpite.

A mãe da cantora passou quase lhe roçando, aproveitou a oportunidade e perguntou à mãe de Preta:

__ Dona Cacilda, por favor, onde fica o banheiro?
__ Atrás do senhor, essa porta aí ó, vermelha.

Com uma certa dificuldade, levantou cuidadosamente, girou em torno de si mesmo e adentrou no banheiro.

O banheiro era pequeno, um basculante voltado para o lado onde a banda tocava, arejava o mesmo, um lavatório antigo e pequeno, o piso era de vermelhão, as louças eram antigas.

Quando Felipe arriou as calças junto com a cueca e sentou no vaso, sentiu coisas estranhas se mexendo na sua barriga, um verdadeiro reboliço no intestino.

Após matutar o passado recente, começou a suar frio, havia dezessete dias que não ia ao banheiro. Recostou na parede e olhou para cima, a caixa de descarga era daquelas que ficam a um metro e setenta de altura, olhou para a esquerda, não viu papel higiênico, olhou para a direita, o baldinho de lixo estava vazio.

Felipe ficou dentro do banheiro por 45 minutos.  Deu dezessete descargas para se livrar daquela maçaroca que depositou dentro do vaso. Na quinta descarga, percebeu que alguns músicos não estavam tocando, na décima terceira descarga, foi o auge da sua vergonha, alguém falou alto:

__ Assim não dá! Está insuportável Preta, que futum é esse? Tem um cadáver dentro desse banheiro!

Na falta de papel higiênico, improvisou as meias, mas não foi suficiente. Com lagrimas lhe cortando a face, não teve outra alternativa além da cueca. Onde colocar as meias e a cueca? Pensava como uma mulher num ataque de histeria durante a menopausa.

O marido de Filomena decidiu: atrás da caixa-d’água, e lá deixou. Sungou as calças, mas essas estavam largas. Sem cinto, um novo drama lhe apresentava, mas diante de tanta vergonha, nem ligou, saiu do banheiro segurando as calças com a mão direita.

A esposa lhe esperava no carro, passou por todos de cabeça em pé, o zum-zum-zum era alto, uns defendiam - gente, essas coisas não têm hora, aconteceu, outros contra - é uma vergonha, falta de respeito, fazer um papelão desses na casa dos outros!

Ao entrar no carro, Mariana não falou um a. Quando chegaram em casa, permaneceram como estavam no carro. Os dois foram para o quarto, despiram suas roupas, Felipe foi até o banheiro, tomou banho e retornou. Deitou ao lado da esposa que parecia que já dormia, quando Felipe ajeitou no seu lado pra dormir, Mariana disse:

__ Boa noite! Cagão desgraçado!

Quinze dias depois, ao chegar do trabalho, Felipe encontrou uma caixa em sua caixa postal que ficava no jardim, entre a cerca de madeira e a casa. Sem remetente, a caixa era pequena, leve e bem embrulhada.

Entrou em casa, chamou a esposa e lhe mostrou o embrulho, olharam vidrados para o pacote.

__ O que está esperando! Abre logo essa coisa logo, cacete!

Felipe abriu cuidadosamente o embrulho, ao se livrar do papel, viu que era uma caixa de isopor bem lacrada com fita adesiva larga. Pegou um estilete, cortou todas as fitas que lacravam a tampa da caixa, ao remover a tampa, uma catinga de bicho morto infestou a casa toda. Era a cueca e o par de meias.