Em vez de afago, disparou dardos venenosos contra aquele que poderia ajudá-lo a voltar para casa. E se a onça matar Vintém? Só pele e osso, para que uma onça quer aquele traste? Nem carne tem! Tentação do diacho... Bicho mau, a onça. Animal matando animal... matando gente! Será que os bichos vão para o céu? Agonizante, Baleia sonhava com um mundo de preás gordos. Enormes!... Estaria ela no céu? E Fabiano? Ele viveu a miséria da pobreza e da fome. Pode ter tido a sorte de ir pelo menos para o purgatório. Direto para o céu é difícil! Melhor purgatório do que inferno. Quem está no purgatório, só sai de lá para o céu. Até as borboletas entregam seu espírito de borboleta ao Criador. Baleia entregou o seu. João Velho estava prestes também a fazer sua entrega. Se existe inferno, deve estar cheio de onça, leão, e esses bichos todos que matam com brutalidade. A onça vai matar Vintém. Ele não aguenta um chouto!...É um desafortunado, mata camundongos como se fossem preás. Ou, amedrontado, foge de rato pensando que é canguru. Também o homem mata. Muitas vezes, o homem mata sem derramar sangue. Mata com o veneno da tinta que suja o papel em forma de Lei, ou mata em seu coração com a desvirtude da indiferença. Vintém é bom. Para os bichos bons, deve haver um lugar no céu. Mas como saber se o lobo é mau ou é bom? A onça que matou José Lino é má. E pode voltar para matar o pai de sua presa. Se ela comeu o cabrito voltará para comer também bode.
João se lembrou das cantorias no alpendre da fazenda, quando Tunico Oliveira, recitava cordel ao som da viola: ‘Camarada cachorro, se você nunca mentiu. Eu peço que minta hoje pra dizer que não me viu...’ —‘Para quê essa prosopopeia, João Velho? Quem já ouviu dizer que onça pede a cachorro alguma coisa? E onça tem medo de cachorro? Para de pensar asneira!’
— Né não! Antigamente os bichos falavam. E todos os homens conversavam numa mesma língua. Agora, cachorro que nasce na Inglaterra, late em inglês. Os nascidos no Brasil, latem em português...Não se entendem mais... Tem cachorro rico latindo em francês e com dinheiro guardado em banco. Tudo virou uma Torre de Babel, depois que Eva comeu a maçã e deu a Adão.
— Nhô Velho, a Torre de Babel foi muito depois do pecado de Adão e Eva no Paraíso.
— Pois que seja, mas nos tempos de antanho, nem precisava mover os lábios, bastava pensar, e o outro já entendia. Até voar, o homem voava. Perdeu asas do entendimento, quando Eva comeu a maçã e deu a Adão.
— O homem não pode mais voar, senão, em sonho.
— O homem voa, João! Voa dentro de uma máquina de voar.
— A máquina voa. O homem não! O homem viaja como escravo no porão de um navio que voa.
— Conversando sozinho, João?...
Por um momento, João Velho imaginou-se louco. Estava, realmente, conversando só.
As horas passavam devagar. João andava devagar, um cão magro e faminto andava devagar, farejando carne para comer, mesmo que fosse um minúsculo grilo. João esqueceu a dor no ombro e pensou nas dores do coração: não deixaria posteridade. Não podia mais ter filhos com Euzébia. Ela guardara as ferramentas de fazer cria nos alforjes da idade. Ele também não era mais menino. Morreriam sem deixar posteridade. Passou novamente no local onde vira o sangue de José Lino, agora coberto de moscas. Sentiu um arrepio. ‘É agora que a alma do Jô vai aparecer.’ Não sabia se parava, se andava. O ombro doía muito...
Parou.
Aguçou os ouvidos... — Quem pode mais que Deus?— disse com voz de requerer alma — Ninguém, responde ele mesmo — O barulho na mata parecia muito próximo. A cada fração de minuto, ficava mais perto. — ‘É agora!...’
O tempo parou. O coração disparou. Tinha os olhos fixos na vereda que mais parecia delicado risco de giz amarelado, em um quadro verde, que não cabia no mundo. Tremeu. Ele que contava estórias de assombração, para assustar os meninos, agora estava com medo de alma. Alma do próprio filho.
Soprou um vento vindo das profundezas da voçoroca. e lhe veio à memória lembrança das estórias que ele contava: quando a visagem se aproxima, traz um vendo quente, se provém do inferno; um vento morno se estiver no purgatório; e uma brisa suave, se vem do céu. Se o vento for quente, vem com cheiro de enxofre. Se for morno, provoca vômito. E se for uma brisa suave, enche o local de perfume.
João farejou o cheiro no focinho de Vintém. O vento não era quente, nem morno, nem frio. Nem tinha perfume algum. Não era vento soprado. Não havia vento. Estava com febre.
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.
João se lembrou das cantorias no alpendre da fazenda, quando Tunico Oliveira, recitava cordel ao som da viola: ‘Camarada cachorro, se você nunca mentiu. Eu peço que minta hoje pra dizer que não me viu...’ —‘Para quê essa prosopopeia, João Velho? Quem já ouviu dizer que onça pede a cachorro alguma coisa? E onça tem medo de cachorro? Para de pensar asneira!’
— Né não! Antigamente os bichos falavam. E todos os homens conversavam numa mesma língua. Agora, cachorro que nasce na Inglaterra, late em inglês. Os nascidos no Brasil, latem em português...Não se entendem mais... Tem cachorro rico latindo em francês e com dinheiro guardado em banco. Tudo virou uma Torre de Babel, depois que Eva comeu a maçã e deu a Adão.
— Nhô Velho, a Torre de Babel foi muito depois do pecado de Adão e Eva no Paraíso.
— Pois que seja, mas nos tempos de antanho, nem precisava mover os lábios, bastava pensar, e o outro já entendia. Até voar, o homem voava. Perdeu asas do entendimento, quando Eva comeu a maçã e deu a Adão.
— O homem não pode mais voar, senão, em sonho.
— O homem voa, João! Voa dentro de uma máquina de voar.
— A máquina voa. O homem não! O homem viaja como escravo no porão de um navio que voa.
— Conversando sozinho, João?...
Por um momento, João Velho imaginou-se louco. Estava, realmente, conversando só.
As horas passavam devagar. João andava devagar, um cão magro e faminto andava devagar, farejando carne para comer, mesmo que fosse um minúsculo grilo. João esqueceu a dor no ombro e pensou nas dores do coração: não deixaria posteridade. Não podia mais ter filhos com Euzébia. Ela guardara as ferramentas de fazer cria nos alforjes da idade. Ele também não era mais menino. Morreriam sem deixar posteridade. Passou novamente no local onde vira o sangue de José Lino, agora coberto de moscas. Sentiu um arrepio. ‘É agora que a alma do Jô vai aparecer.’ Não sabia se parava, se andava. O ombro doía muito...
Parou.
Aguçou os ouvidos... — Quem pode mais que Deus?— disse com voz de requerer alma — Ninguém, responde ele mesmo — O barulho na mata parecia muito próximo. A cada fração de minuto, ficava mais perto. — ‘É agora!...’
O tempo parou. O coração disparou. Tinha os olhos fixos na vereda que mais parecia delicado risco de giz amarelado, em um quadro verde, que não cabia no mundo. Tremeu. Ele que contava estórias de assombração, para assustar os meninos, agora estava com medo de alma. Alma do próprio filho.
Soprou um vento vindo das profundezas da voçoroca. e lhe veio à memória lembrança das estórias que ele contava: quando a visagem se aproxima, traz um vendo quente, se provém do inferno; um vento morno se estiver no purgatório; e uma brisa suave, se vem do céu. Se o vento for quente, vem com cheiro de enxofre. Se for morno, provoca vômito. E se for uma brisa suave, enche o local de perfume.
João farejou o cheiro no focinho de Vintém. O vento não era quente, nem morno, nem frio. Nem tinha perfume algum. Não era vento soprado. Não havia vento. Estava com febre.
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.