O Barão da noite - Cap. 2

A solidão, caracterizada pela ausência de alguém, pode ser causada por dois motivos: morte ou morte parcial. Quando o indíviduo não está mais presente por vontade da natureza, é obrigado a deixar pra trás seu companheiro sem despedidas muitas vezes, e sem escrever poemas. Mas, quando a que sempre vem, não reeinvindica sua posse, e a pessoa abandona o outro, ela aos poucos está morrendo na mamória de quem deixa em casa, e matando aos poucos quem espera, essa é a morte parcial.

Já habituada com esta sensação, Manuela, já não esperava mais a chegada de seu marido até a alvorada. Sentada no sofá carmin, que ganhará de presente de casamento atrasado de sua tia-avó Sophia, esperava pacientemente com um bule de café quente e uma xícara de café de porcelana na mesa de centro da pequena sala. Assitia os canais na TV antiga até saírem do ar por falta de programação, e os via voltar ao vivo no primeiro jornal da manhã, sempre olhando para a maçaneta esperando a porta se abrir. Fazia tricô, as vezes errava um ponto propositalmente só para ter que refazer uma peça e ver o tempo passar. Perdêra a conta das vezes em que limpou a mesma estante.

Nos últimos meses, percebeu que vivia mais só. As noitadas naturais dos homens, afinal todas as suas amigas já passaram por semelhantes situações, estavam em excesso. Pois às três da manhã, o Antônio marido da Raquel já estava em casa. E o Júlio que trabalhava com o José, segundo a Marilda, vizinha de infância, não demorava muito nas madrugadas.

Manuela lembrava dos dias em que seu amado chegava em casa com um buquê de lírios brancos, ou com uma caixa daquele doce de abóbora que vendia no Mercado Municipal. Chorava tanto que nem lembrava por que chorava. Certo dia se pegou chorando por que deixou um ovo cair no chão.

Quando finalmente chegava em casa, Zé não respondia nenhuma de suas interrogações, dava de ombros, tomava um banho e dormia umas duas ou três horas. Acordava, tomava seu café, saía cedo e se despedia. Próximo encontro, talvez amanhã as seis horas da manhã.

“Manu” era muito bela. Com cabelos curtos um pouco abaixo das orelhas, castanhos, que ao reflexo da luz pareciam louro escuro, olhos grandes castanhos. Não gostava muito de maquilagem, nem de joias, mas não dispensava seu batom cor de boca, nem os brincos de esmeralda que seu pai deu, com muitas horas extras na fabrica de ferragens, de aniversário aos dezoito anos. Ultimamente não mais perdia alguns minutos na frente do espelho, se caso por acidente se refletisse na penteadeira, parava apenas para se perguntar em voz alta, o por que deste abandono. E denovo chorava.

José tinha o relacionamento que queria, ou seja, não tinha. E Manuela ainda o amava, sempre o amou.

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José fazia o percurso de sempre na volta pro lar, sentia o cair da fina garoa na palma de suas mãos, enquanto observava o céu noturno e dizendo:

- Senti sua falta durante o dia. Do seu sopro na minha fronte, do calado som ao meu ouvido. Me beije de novo minha amada.

Falava em voz alta como se alguém o escutasse. E escutava. Em sua vida de noites de encanto, acostumou-se com a vida de ilusões, e com o passar dos anos perdeu seu coração e viciou-se em alguém que nunca o desapontou. Sua musa e fascinação, o homem do chapéu, pela Noite se apaixonou.

A gotas grossas de suor delineavam-se em direção aos ombros do paletó, a respiração curta e o coração descompassado turveavam-no a visão. A cada quatro passos o diafragma expulsava o ar de seus pulmões, já não eram fluído surfactante ou catarro escuro e sangue que suas vias exalavam, agora era puro sangue. Em um beco próximo à estação de trem, José buscava em socorro nas paredes úmidas e desgastadas as apalpadelas, enquanto a outra mão aliviava a gola do terno alinhado, apoiou sua mão direita na parede, que sem força foi vencida pelo peso do corpo, e bruscamente bateu o ombro contra a parede. No impacto seu chapéu caiu no chão e suas vestes se mancharam perante a umidade do muro embolorado e lodado da ruela. Mãos trêmulas, visão difusa, as pernas não obedecem as ordens da vontade, enquanto outra crise de tosse fere suas vísceras. No chão observa em meio à poça hemorrágica, pedaços sólidos do que parecia ser de seus pulmões.

A garoa engrossa no exato instante, como um chuveiro de água gélida e poluída pelo ar da capital. A água se mistura ao seu próprio sangue enquando sua roupa se impregna dos líquidos misturados no chão. Tenta apoiar os cotovelos no chão em uma fração de força, e consegue apoiar-se de costas a parede do beco fétido. A tosse insessante dispara o que parece restar de seus alvéolos e atingem seus sapatos lameados. Seus olhos em resgate ao corpo buscam no fim do beco algum transeunte para socorrê-lo do momento crucial. Nenhuma alma viva no nadir de sua visão. Em sua mente passam lapsos de imagens de sua vida como um filme em “stop-motion”, de sua infância no interior de São Paulo, suas visitas a sua Avó Matilde no Litoral, à morte de seu pai na UTI do Hospital das Clínicas, seu casamento com sua Manuela. Mas de todas as imagens rápidas, que duram “frames” de três segundos, uma cena como plano sequência ressoa em seu pensamento, uma vista da noite sob a cobertura de um edíficio no centro de São Paulo, aquela era sua vista preferida do seu amor, onde jurou amá-la até os seus últimos suspiros. E se engasgando com seus próprios flúidos, quando seus braços já não tinham mais forças para se sustentarem, e sua cabeça usava a parede como travesseiro,olhando para à noite, José pela última vez falou:

- É a minha hora – sussurrando com dificuldades – Te jurei meu amor, minha sanidade, meus olhos e minha mente, agora te dou a minha vida.

E escorrendo dos cantos de sua boca a sua vida em líquido vital, cerrou os labios, e suas pálpebras fitando o luar fecharam-se aos poucos, sua fronte caiu sobre seu peito exaurindo pela última vez o ar quente de seus pulmões.

A chuva se acalmava aos poucos como se esperasse o repouso final do Bohêmio apaixonado. As nuvens escuras formadas no céu aos poucos se dissipavam e o cadáver esguio na parede daquele beco era iluminado agora diretamente pela luz do luar. Quando as últimas gotas caiam sobre as poças da água como goteiras de uma velha torneira aberta na calada noite, em um instante os sons da fina garoa cessaram, o vento da madrugada gélida que movimentava restos de papéis e folhas secas parou, suspensas no ar algumas gotículas ficaram, por um momento o próprio tempo parou. O silêncio reinava no local, não se sentia mais a temperatura, não se sentia mais nada, quando o tempo para parece que a vida em si estaciona.

Quando surge da mesma maneira repentina no fim do beco uma figura, como se remove-se de si um manto transparente aos olhos comuns, e revelava por baixo um ser antes oculto por sua própria vontade. Com silhueta humana, essa persona se aproximava lentamente do corpo úmido encostado, e ao passo que caminhava parecia que a luz do luar lhe servia de farol, pois obedecia os seus passos como um servo. As pequenas bolhas suspensas no ar se afastavam à medida que aquela figura marchava. Distônicamente ouvia-se agora o som do caminhar daquilo, passos ecônicos e secos, quando pode-se ouvir quase que uma melodia sem som no recinto. Um coro de vozes femininas em sussurro se sobrepondo, repetindo a mesma frase:

- José...José...Zé. Meu amado...José.

Quando finalmente estava diante do cadáver do homem do chapéu, pode-se observar integralmente aquela mulher. Aterrorizantemente bela. Mas não era uma beleza comum. Não era humana, apesar de parecer uma. Os seus cabelos negros como o mais escuro abismo, pareciam absorver qualquer luz que tentasse refletí-lo, e lisos escorriam até seus pés quase tocando o chão. Em contraste com sua pele tão alva e brilhante que em certos pontos se assemelhava a mais nobre prata. Os seus olhos grandes e sedutores traziam em sua íris a luz de muitas estrelas, e uma vez mergulhados no seu olhar deslumbrava-se o que parecia ser uma galaxía em tons de cores impossíveis de descrever. Lábios grandes e delineados em tom de rósea púrpura. Suas vestes eram de uma natureza estranha, finas como a mais pura seda e tranlúcida como um cristal. Que crobriam o corpo por de trás do pescoço até a altura dos calcanhares. Com o peitoral aberto até a extensão do abdômem e os braços nús envoltos em adereços de um metal desconhecido com aspecto dourado, como um fino cordão rodeando os membros superiores. Nas pernas semelhantes adereços nas panturilhas subindo em direção aos joelhos, que ficavam à mostra a medida que a figura caminhava, pois nas vestes aberturas nas pernas corriam na saia. Pés descalços mas sensíveis e macios como o algodão. Não existe fragância conhecida que possa traduzir o perfume inebriante que aquela pessoa exauria, nem ser consciente que não se hipnotizasse por aquela mulher.

Ela se aproximou do homem e sem abrir os lábios pronunciou com uma doce voz que ecoou sobre o recinto:

- Meu amado, tenho te observado durante esses anos em mim. E venho te dizer que seu amor me é de bom grado.

O tempo continuava estático, e com o olhar penetrante fixo no corpo ela movimentou os braços em direção ao ar e como se pegasse algo antes invisível, materializou entre o dedo polegar e indicador uma pequena esfera brilhante e colocando-a na palma da mão em frente ao rosto, soprou-a em direção ao rosto do caído, que deslocou-se com a leveza de uma pena até a fronte mórbida e pálida. E em seguida sussurrou:

- Você me prometeu sua vida, e agora te desperto da morte.

E em seguida a esfera adentrou a face do homem morto como se a pele o absorvesse aos poucos. O corpo extremesseu, e em um instante os olhos de José se abriram de repentino com um brilho diferente. Em torno de sua íris uma fina camada prateada brilhava, e com uma inspiração profunda de pulmões vívidos e limpídos José da Silva viveu outra vez. Porém não estava vivo, mas também não estava morto, estava no meio. Movimentando os dedos, e cada músculo do corpo como confirmação, ele observou suas mãos, abriu e fechou-a algumas vezes. Levantou a cabeça lentamente e fitou sua musa com atenção. Ficou ali estático como o tempo por alguns segundos, quando consegui alinhar seus pensamentos, falou:

- M... – respirou fundo – Minha Noite.

Ela sorriu. E abaixou para ficar na altura dos olhos dele. E acariciando o seu rosto acalmou-o:

- Agora você caminha entre os planos José. Preciso de alguém me ame pelo que sou, para cumprir minhas vontades.

Ele ouvirá aquilo como se entendesse a cada palavra, em sua mente tudo fazia sentido espontâneamente. Ela continuou:

- Te torno o que você agora é. Um mensageiro e sentinela de meus desejos.

Ele consentiu consentiu com a cebaça e com suas palavras:

- Existo para te servir Noite, e me sinto feliz por poder viver em você.

As palavras do Homem da Noite, não poderiam agradar mais sua amada. Ela ficou de pé e observou o luar, fez um movimento com a mão esquerda e agora estava com um chapéu diferente, igual o que seu servo tinha, mas diferente. Entregou-lhe e mentalmente falou:

- Quero você completo.

Ele sorriu e pegou o ornamento, colocando-o na cabeça com muito apreço, sentiu uma energia revigora-lhe o âmago e em um átimo estava disposto de pé. Surpreso, agradeceu o mimo afirmando:

- Você nunca esteve tão linda!

E assim a Noite movimentou seus braçou como quem pegasse um capuz de suas costas para cobrir sua cabeça, e ajeitando o que não parecia ser nada, se cobriu com seu manto transparente e desapareceu da presença do Homem do chapéu. As gotículas suspensas no ar, voltaram a cair, os barulhos da cidade voltaram a eclodir. Ele observou o céu sorrindo. Ajeitou suas vestes agora limpídas e de aspecto fino e segui caminhando com passos firmes pelo beco até chegar a via pública. Virou a esquina e segui caminhando e assoviando em direção a sua antiga casa, onde Manuela afoita aguardava seu amado.