O cortejo fúnebre

Bebel, eu e Beu não arredamos o pé de nosso alvitre: ir à missa das cinco da matina. As tias, vizinhas e frequentadoras de igreja, de preferência a missa das sete, achavam estapafúrdia aquela nossa idéia de sair de casa no breu da madrugada. E papai e mamãe teriam vetado nosso plano ab ovo.

Mas arquitetamos e cumprimos tudo naquela noite de sábado, com a idéia inicial de darmos uma arrumação de regra na cozinha, que além de uma boa ação, espantaria nosso sono. Com papai na terceira turma, que ia das 10 da noite às seis da manhã, e mamãe com algum pequerrucho ao leito, o caminho parecia aberto e ainda mais tentador à realização de nosso sonho.

E foi preciso inventar muita tarefa para que as horas passassem sem perturbarmos os que estavam dormindo. Íamos dar mais um passo rumo à salvação da alma e, mais importante, a nossa inclusão junto à sociedade sequi-bicentenária pitanguiense. Havíamos chegado a coisa de um ano ou dois do povoado operário do Brumado, e nossas movimentações ascensionais, de frequentar funções religiosas, escola, quermesses e enterros eram ainda muito tímidas. Algo mais ousado estava por vir. Demais, a missa era ainda celebrada em latim, o que adicionava à magia de se sentir mais próximo do Divino.

A ansiedade venceu a sonolência e a hora chegou de sairmos, devidamente enfarpelados. E o fizemos pela janela clarabóia da copa, que ficava a uma boa altura. Mas o que não se faz pela fé, até mesmo antes do matinal café?

Quatro e meia na rua, e nenhum sinal de vivalma. Alma vai ver até que vivia, nos via, e vigiava, mas que é de que a gente se importava? E apenas dobramos a esquina de nosso Beco-sem-Saída, ganhando a Rua São José, em descida, seguida duma subida íngreme, uma virada à esquerda, também na ascensional na altura da casa e comércio do Vinício, dali, subida mais leve, até a chegada à praça da matriz. Percurso de 15 minutos, folgadamente.

Havia iluminação pública, fraca mas suficiente para nossa jornada daquela hora. O que nos perturbou contudo foi a passagem de um cortejo, com velas à mão, que mais célere caminhava e que aparentemente carregavam um caixão. No que nossas impressões variam, ao rememorar aquele fato é se o cortejo estava à nossa frente, ou se vinha atrás. Ponto pacífico contudo é que vimos aquele féretro.

A chegada à matriz, foi um alívio e deslumbramento. Silêncio é o que predominava com a chegada dos fiéis em atitude circunspecta e contemplativa. Pareciam todos acostumados àquele ritual. Éramos exceções. E crianças, cujas idades, juntadas pouco passavam de duas dúzias... Olhados com suspeição ou descaso, mantivemo-nos firmes, até diante dalgum resmungo ou cochicho reprovador. A fé tarcísia venceria. In hoc signo vinces...

Mal a função eclesial começou, Morfeu atacou-nos com força. Os cochilos davam dó, e nó. E não só. Acordar, só reforçava o mal-estar.

E o retorno, com a aurora já rompida, deu-nos novo alento. Para contar a história e receber alguma repreensão em casa - que não houve, substituida que foi pelo ar de espanto diante de nossa intrepidez. Mas bastava aquela vez.

Quanto ao cortejo...por dias, meses, anos a fio, continua a nos desafiar, de modo sobejo...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 22/02/2018
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