Tinturas
Depois de uma temporada fora de Londres resolvendo seus afazeres profissionais, Mr. Sanderson retornou com seu típico mau humor. Destratava todos os empregados, castigando-os com freqüência com pesados abatimentos em seus salários e gritando uma verborragia de impropérios a todos que passavam por ele.
Era um homem muito temido. Os cabelos quase exterminados pela calvície, deixando somente a cabeça contornada por uma coroa grisalha e a barriga protuberante que tremulava sob o terno conforme ele berrava com sua boca emoldurada por um cavanhaque, tudo o dava um ar ainda mais ameaçador.
Naquele dia, após retornar da missa das sete na catedral, Sanderson, que se intitulava um homem de Deus e bondade – a despeito de seus atos hediondos, como trair a mulher e agredi-la, fato este que denominamos ‘hipocrisia’, passara no boticário e comprara um pequeno frasco contendo uma tintura.
O boticário havia preparado especialmente para ele. Era um frasco vermelho, contido num estojo também vermelho. “Para controle emocional, e também do estresse. Irá se sentir mais bem disposto para os afazeres do trabalho” havia lhe dito o médico sobre o composto.
Mr Sanderson chegou em casa ainda mais nervoso naquele dia. Além de não poder ver sua amante a tarde devido ao horário da missa, deparara-se com a ausência da mulher em casa e uma grande mancha azul que se estendia pelo papel de parede até o carpete.
“Mas que MERDA é essa?” ele berrava, mas nenhum empregado o respondia de volta. Até que um homem de sobretudo muito comprido, portando uma maleta e usando uma cartola entrou na casa. O vento frio que entrou pela porta fez a luz dos lampiões a óleo oscilarem a ponto de quase apagarem. A sala de estar, adornada com orgulhosos quadros e móveis importados foi atirada na penumbra.
“Mr Sanderson, eu presumo?” ele disse. Seu anfitrião com os olhos semicerrados de ódio pela repentina e mau educada invasão.
“E quem diabos é você? Não sabe bater em portas, homem!”
“Perdoe minha intromissão” – disse o homem, enquanto pousava sua valise no chão e limpava seus pequenos óculos circulares, que apoiou novamente sobre seu nariz curvo como um bico de corvo. – “É que sua esposa encontrou-me mais cedo e pediu que eu viesse examinar e tratar a respeito da mancha na parede e no chão. É esta não é?
“Sim, pelo visto deve ser óbvio. Mas o que aconteceu aqui? Cadê minha mulher? E meus empregados? Onde estão todos nessa droga de casa? E o que é essa mancha azul de MERDA na porra da minha parede?”
Neste instante, o homem retirou a cartola e deslizou as mãos pelos seus cabelos brancos e cacheados. Havia nele um certo ar de preocupação.
“Mr. Sanderson, sinto informá-lo, mas esta mancha é vermelha. E não azul.
“Vermelha?” Sanderson riu. Aquele homem visivelmente era um idiota ou deficiente. “Claro que não. Olhe, ela é completamente azul!”
“Sinto ser obrigado a discordar. Mas ela é tão rubra quanto o frasco da tintura em seu bolso.”
“Mas como você sabe do meu remédio...?” Sanderson disse, pegando o pequeno estojo no bolso. Mas agora ele se encontrava completamente azul, bem como o frasco em seu interior. E ao passo que percebeu isso, ele também percebeu o estranho cheiro ferruginoso que lhe invadia as narinas provindo do chão e da parede de sua casa, concentrado especialmente na imensa mancha vermelha que se estendia do papel de parede até o carpete.
E também percebeu que o misterioso homem alto e de cartola agora retirava uma comprida e serrilhada faca de seu sobretudo, com a lâmina brilhando manchada com uma estranha tintura que oscilava entre o vermelho e o azul e caminhava em sua direção.
No fim, a única tintura que importa é aquela a ser derramada de suas veias.