Ariranha

O que podem ter a ver a ariranha e a diplomacia? Há coisa de quarenta e dois anos tiveram, sim, um ponto de convergência. E fui testemunha ocular e auricular do fato, que narro a seguir, recorrendo à memória tão-somente, e tão-semente, se não mente:

Numa sala de aula no Instituto Rio Branco, que funcionava em seu ano inaugural em Brasília, DF, no sétimo andar do Anexo-I do Palácio do Itamaraty, sob a regência do professsor Hugo Ortêncio, Coronel Reformado dos Quadros do então SNI, recebíamos ao mesmo tempo aulas do idioma russo, que era matéria optativa, e doutrinação anti-comunista, que, naturalmente, nas circunstâncias em que vivíamos, em 1976, era doutrina de fé.

Além dos alunos regulares que haviam optado por aquela disciplina - as demais optativas eram alemão, árabe e espanhol - havia uns poucos, já diplomatas em exercício, que se valiam daquela oportunidade para ah largar seus horizontes linguísticos.

Desses poucos, a lembrança que tenho mais presente é a de Maria Aparecida Lopes Nahú, recém-empossada Terceira Secretária na classe inicial da carreira onde havia ingressado por concurso direto, que não só prescindia como equivalia aos dois anos de Rio Branco que teríamos pela frente. Os diplomatas do direto eram assim muito admirados por haverem enfrentado aquela maratona de provas que os livrava da chatice acadêmica de dois anos e, naturalmente causavam inveja.

E para agravar o sentimento de nossa menor capacidade, Nahú era a mais jovem da classe e espinhas ainda lhe realçavam o ar de adolescente. E mais, havia sido muito bem classificada em sua turma de concurso direto.

Sem muita chance, contudo, de exibirmos proezas verbais, pois tropeçávamos ainda na cortina de ferro do alfabeto, com o miak snak inclusive, atínhamos-nos mais no ouvir. E o Coronel Ortêncio, cearense de boa ce(are)pa, era figura que fulgurava nas suas divagações meta-linguísticas. Um ponto em que batia sempre era o da "frialdade" de Lenin. E não era para menos, eu considerava sem ousar palpitar, pois o homem estava mumificado no permafrost de seu mausoléu havia mais de meio século então, sem ao menos esboçar um sorriso para as multidões que lhe visitavam o túmulo.

Lenin a parte, surgiu em Brasília um fato de heróica tristeza nesse meio tempo: um Sargento havia se precipitado no fosso do zoológico para salvar uma criança da morte certa. E a morte coube ao salvador, mordido dezenas de vezes pela feroz mãe na defesa do filhote. O fato foi proclamado em primeira página da imprensa local e honras fúnebres - sem embalsamamento, contudo - ao Sargento-Herói.

Quando o Professor Ortêncio comentou conosco o assunto, naquele day-after, Nahú, que era proveniente do Mato Grosso, imperturbável, sem tirar os olhos do caderno onde fazia anotações, perguntou:

- Professor Hugo, o que é ariranha?

O mestre, utchitel, em russo, respondeu sem tergiversar:

- É o amálgama de Ari Barroso com Osvaldo Aranha...minha querida discípula

Ao que Nahú interpelou-o, ainda hiperfocada em seu amanuense métier:

- Devagar, professor, repete por favor, que estou anotando...!

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 10/11/2017
Reeditado em 23/02/2022
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