MORTO VIVO (Cap. 7)
Micaela passou o dia inteiro em expectativa. A cidade estava em polvorosa, mas a ansiedade dela era diferente das demais pessoas. Micaela se sentia quase que exultante, como se a qualquer momento Kauê fosse bater na porta da sua casa e dizer que havia voltado somente para ela. A mãe percebeu que Micaela estava diferente. Era impossível não reparar que a filha circulava pela casa com um sorriso nos lábios. Algumas vezes flagrou a garota até cantarolando. Aquilo não podia ser normal. Uma amiga contara que Luana estava abaladíssima, trancada dentro do quarto, esperando as notícias chegarem. Bem ao contrário de Micaela.
A noite chegou e nada aconteceu. Ninguém encontrou o corpo de Kauê e muito menos ele apareceu na casa de Micaela. Ela foi dormir por volta da meia noite, não sem antes olhar através da janela para ver se o ex–namorado apontava na esquina. Se Kauê não aparecesse nas próximas vinte e quatro horas, Micaela iria fazer uma visitinha à bruxa.
A garota despertou por volta das três horas da manhã com um barulho vindo do quintal. A princípio ela achou que fosse um sonho, mas o ruído no balanço lá fora permaneceu mesmo quando Micaela já estava com os olhos bem arregalados. Lentamente, a garota vestiu uma camiseta sobre a camisola e abriu a janela do quarto. Um vulto estava sentado no balanço que parou de se mover quando Micaela o encarou.
– Meu amor...
Micaela não estava disposta a perder tempo. Saltou da janela com agilidade e caminhou apressada com os pés descalços na grama úmida até ele.
Mesmo assim pareceu que levou anos até parar frente a frente com Kauê. O rapaz a fitou, imóvel no balanço. O luar iluminou os cabelos muito loiros dele. Ela sorriu e estendeu a mão para tocá–lo. Mas Kauê recuou.
– Kauê, eu...
Não era exatamente o seu Kauê, aquele garoto fofo, lindo e carismático. A criatura que estava a sua frente trazia os olhos frios e a pele machucada. O rosto estava arranhado e os lábios um pouco inchados.
– Por que você fez isto, Micaela?
A voz era profunda e triste. Micaela sentiu como se tivesse sido golpeada. Ora, por que a pergunta? Era óbvio que fizera tudo aquilo para tê–lo novamente em seus braços!
– Meu amor... Eu... senti tanto a sua falta.
Ele olhou para baixo e sacudiu a cabeça como se não concordasse com aquilo. Depois olhou outra vez para Micaela e murmurou:
– Olha como eu estou. Olhe bem – a voz dele era tão triste que Micaela sentiu vontade de chorar. – Valeu a pena? Realmente valeu a pena me trazer de volta para que eu ficasse assim?
A garota começou a chorar baixinho. Sim, a bruxa a havia alertado para isto, mas jamais imaginara, de fato, o estado em que Kauê poderia voltar.
– Ela não cuidou de você, Kauê – soluçou Micaela. – Se você estivesse comigo, eu o teria protegido – a moça estendeu a mão e tocou na pele dele. Sentiu um arrepio. Ela estava gelada.
Kauê soltou uma risada. Não era a risada dele.
– Eu iria de qualquer jeito. Era a onda da minha vida. Entendeu bem? E eu realizei meu sonho naquele dia – Kauê balançou a cabeça como se não acreditasse no que estava lhe acontecendo. – Eu disse para mim mesmo que podia morrer depois de ter pego a onda. Já tinha feito tudo o que eu queria mesmo. Pois bem, eu morri. Você não precisava ter me trazido de volta – ele estendeu os braços machucados e apontou para o rosto. – Agora veja como eu estou. Que criatura sou eu? Era assim que você me queria?
– Kauê, por favor. Eu o amo. Eu o amo do jeito que for.
Kauê ficou em pé, agoniado. Atrás dele o balanço se moveu, rangendo, e Micaela o parou antes que acordasse a família.
– Eu sinto fome – gemeu ele. – Fome. Uma fome estranha.
– Olha, eu tenho comida lá dentro de casa – Micaela pegou no braço dele. A terra úmida se grudou nos dedos dela. – Lembra daquele sanduíche de atum que você adorava? – ela falava apressada. – Garanto que a Luana nunca preparou nenhum assim para você. Vamos lá dentro e…
Kauê se soltou dela bruscamente e Micaela perdeu o equilíbrio caindo no chão.
– Me deixe em paz – vociferou ele, baixinho.
O rapaz fez menção de sair dali, mas Micaela o segurou pela perna ferida.
– Não vá embora, Kauê – ela pediu. – Seu lugar é aqui comigo, para sempre! Juro, eu vou cuidar de você. Não vá, por favor, não vá.
Mas novamente Kauê se soltou de Micaela sem se importar com os sentimentos da ex–namorada. Com um caminhar estranho, Kauê se afastou da jovem e foi até a outra extremidade do quintal. Mesmo com os olhos em lágrimas, Micaela observou Kauê escalar o muro e desaparecer no escuro da noite. Ela não ousou chamá–lo. Ficou algum tempo sentada na relva, chorando e se lamentando. A bruxa avisara. Ela bem que avisara que Kauê poderia vir diferente. E agora? Para onde ele iria?
Estaria Kauê destinado a vagar sem rumo por toda a eternidade?