À ESPERA DE UM CORPO
À ESPERA DE UM CORPO
Severiana era a própria morte. Cansada de sempre morrer. Dia após dia. Nas noites de suspiros profundos. Abismando vida somada. Socada num estoque sem uso próprio.
Espelho, não tinha. Pra quê? Sabia, por intuição, que as pessoas eram espelhos umas das outras. E sabia, também, que o silêncio bafejava. Embaciava. Turvava. E ninguém nela se espelhava.
Seria a outra de si mesma? Seria sombra à espera de um corpo? Teria que findar-se naquela vida de nunca nascida?
Ficava assim de desencanto em desencanto. Contava os desgastes dos dias. Ouvia cantigas de bocas fechadas. Os tremores das águas desbrotadas nas sargetas.
Vida que ia. Vida que não voltava. O ar parecia que entrava em pulmões de papelão. Feito foles. Surrados e moles. Respirando cada vez como se fosse a última. E o ar escapando pelos furos em rasgos de assobios.
Severiana negociava consigo mesma. “Só por hoje vou redesenhar meu sonho.” E saía pra rua. Olhava com olhos de vidro as vielas sujas. As cantinas e os botecos escuros. Cismava sobre a arquitetura das poeiras nas calçadas desiguais. Nos carros. Nos ônibus. No intenso vai-e-vem das pessoas.
Ora escrava. Ora bailarina. De dia borboleta. De noite vagalume. Arqueando as peles sobre os ossos, ela se vestia de colmeias. E gotejava mel. Sim. Ela era doce.
Seu caminhar era um poema para a morte. E ela estava bem ali. No dobrar daquela esquina.
Genilson era a própria lambança vivendo de lero-lero. Sorrizinho tatuado de canto de boca, capturava olhares vesgos de mulheres súbitas. E elas se atraíam. Feito abelhas na flor. E se traíam. Feito sonhos desfeitos. Desconformavam a legitimidade da vida.
Severiana foi serpenteada pelo olhar encantador de Genilson. Sentia-se vista. Amada.
Como se estivessem num corpo seus olhos vibraram. Sentia uma espécie de arrepio. Quase fantasmagórico. Boca entreaberta ávida de beijo. Calor suado percorrendo gordurosos poros. Súditos daquele pseudo-corpo. Crateras de um vulcão, extintamente, natimorto.
“Nossa! Como é cheiroso esse gato!” Cheiros, ela os sentia. Era um nariz em pessoa. E Genilson cheirava à madeira. Sândalo. Imaginava que a fala macia soprava palavras feito dedos tocando-a por dentro. As cordas desafinadas dos nervos afinavam seus ossos. Matrizes de marfim. E Genilson, o encantador de quimeras faria sua espetacular apresentação.
Severiana nunca se preparava para coisa alguma. Dizia-se ser despreparada para a vida. E o que aconteceria a seguir seria obra autêntica do acaso.
Poucos passos a separavam de seu lúgubre destino. A esperança de finalmente nascer caía-lhe do céu em flocos de finitude. Fim de uma busca por um corpo que não fosse translúcido. Um corpo que projetasse uma sombra.
Genilson sabia que ela viria ao seu encontro. Era só atravessar a rua. Esta seria sua última oportunidade para se dar bem no amor. E iria lutar para isso. Veio-lhe das profundezas da alma a certeza. Seriam o par perfeito.
O semáforo tingiu-se de vermelho. Sobre a faixa de pedestre um corpo turvava as listras brancas. Dava-lhes um tom de rosa magnífico. E sobre o tão sonhado corpo estava Genilson. E Severiana sentiu o cheiro mais doce do mundo. O cheiro de sândalo e sal. Percorrendo seu corpo. Sim. Um corpo com sombras escarlates.
Mírian Cerqueira Leite