MORTO VIVO (Cap. 5)

O domingo amanheceu com sol, mas quando Micaela saiu para ir até a padaria no meio da manhã percebeu que a cidade estava silenciosa. O movimento era de um domingo normal, mas as pessoas traziam no olhar uma expressão triste. Alguns rapazes que Micaela identificou como amigos de Kauê se reuniam em grupos, os ombros caídos, conversando baixinho. Quando a garota passou por eles os meninos baixaram os olhos. Se fosse um domingo como qualquer outro eles estariam no mar, surfando. Porém, não havia ânimo para tal.

A noite fora recheada de sonhos com Kauê vivo e com Kauê se afogando no mar. Mesmo com um sono cheio de oscilações, Micaela não sentia cansaço. O coração batia descompassado. Aliás, desde que soubera da morte de Kauê ele batia violentamente dentro do peito, não lhe dando descanso. Se sentia inquieta. Não conseguia ficar sentada e muito menos deitada. Por fim, decidiu ir até a padaria comprar um doce para a avó e, quem sabe, tentar se acalmar. A mãe, a princípio, não queria deixar a filha sair. Micaela trazia no rosto uma expressão terrível e a mãe temeu que a filha surtasse no meio da rua. Mesmo assim, a garota saiu porta afora, o cabelo solto e sem pentear. Sabia que parecia uma louca, mas pouco se importava.

Será que a bruxa já tinha começado a fazer suas magias para trazer Kauê?

Na padaria o clima era o mesmo. A música ambiente que o seu José costumava colocar para alegrar os clientes naquele dia estava em silêncio. Micaela pediu o que queria para a atendente sem precisar abrir a boca. Apenas apontou para o doce. Na hora de pagar também tinha intenção de não falar nada. Mas seu José comentou com os olhos marejados:

– Muito triste o que aconteceu.

Comentário desnecessário, pensou Micaela pegando o dinheiro no bolso da calça para pagar. Porém, ele não estava falando com ela. A jovem sentiu uma presença atrás de si e se virou devagar. Luana estava a poucos passos de Micaela com os olhos vermelhos. A aparência das duas não estava muito diferente. Parecia que um caminhão havia passado por cima de ambas.

Luana não havia reconhecido Micaela e só se deu conta de quem era quando os olhos das duas se encontraram. Lentamente, Micaela pôs o doce que havia comprado para a avó sobre o balcão.

– A culpa foi sua.

Luana quase se encolheu. Estava vivendo um inferno e ter que enfrentar Micaela não estava nos seus planos. Assim como a rival, precisou sair de casa para respirar. Mas se soubesse que daria de cara com Micaela dentro da padaria, era preferível ter ficado dentro do quarto escuro.

– Cale a boca – sussurrou ela, tensa.

– Você – Micaela apontou o dedo para Luana, perdendo o pouco equilíbrio mental que tinha. – Você matou o Kauê.

– O quê? – Luana arregalou os olhos e fechou os punhos em uma espécie de defesa. – O que você está dizendo?

– Exatamente o que você ouviu – Micaela falava baixo, mas seu tom de voz era agressivo e frio. – Você não devia ter deixado Kauê ir surfar naquela tempestade.

– Eu… eu não podia impedi–lo! – Luana tentou se defender enquanto sentia o peso que trazia no peito aumentar. Será que… será que Micaela tinha razão?

– Podia, claro que podia. Eu teria impedido. Se Kauê estivesse comigo, ele teria preferido ficar na minha companhia a ir se aventurar no mar. Onde você estava naquela hora? Na sua cama quentinha?

Sim, disse Luana para si mesma, eu estava minha cama quentinha quando meu namorado decidiu se matar.

– Mas era a mim que ele amava.

A frase dita com tanta convicção bateu fundo no coração de Micaela. Tanto que ela chegou a recuar alguns passos até bater no balcão. Poderia ter dito para Luana que no final das contas era para ela que Kauê retornaria depois da sua curta viagem pelo mundo dos mortos. Afinal o empenho para trazê–lo de volta à vida era dela.

– Você é uma idiota – vociferou.

Luana respirou fundo, tentando ganhar tempo. Não podia perder o controle. A vida já estava difícil demais para sair no braço com uma louca como a Micaela. Já bastava tudo o que ela havia protagonizado no enterro do Kauê.

– Eu vou embora – avisou Luana baixinho, os lábios trêmulos. – Você não sabe o que está dizendo e está tão nervosa e triste quanto eu.

A jovem desistiu de comprar o que pretendia, jogando o produto sobre uma mesa. Mas Micaela não havia se dado por vencida. De repente todo o ódio e ressentimento que sentia por Luana veio à tona, mais forte do que nunca. Antes de ela chegar à porta, Micaela berrou:

– Desejo que você leve a culpa pela morte do Kauê pelo resto da sua vida!

Luana fechou os olhos brevemente ao ouvir aquilo. Talvez acontecesse isso mesmo. Talvez se fosse mais rápida ou mais decidida, conseguisse frear o impulso de Kauê em ir surfar. Contudo, não seria Micaela que afirmaria aquilo. Não ela. Não a ex do seu amor que durante todo o tempo em que estiveram juntos se portou como uma espécie de assombração.

– Cale a sua boca – repetiu Luana. A voz agora tremia de raiva. – Você não é ninguém para me acusar da morte do Kauê.

Micaela viu Luana se aproximar, decidida, e deu alguns passos para frente também. Não seria nada mal se acertasse um soco na cara de Luana e amassasse aquele narizinho intrometido dela.

– Tudo culpa sua! Kauê gostava mais da prancha que você!

Luana não suportou ouvir aquilo e antes que se desse conta já havia empurrado Micaela com toda força e violência que tinha sobre algumas mesas.

– Meninas, o que é isto?

Seu José saiu branco e assustado detrás do balcão. Alguns clientes que estavam ali também se aproximaram na tentativa de ajudar a apartar a confusão. Todos ali eram conhecidos e logo a briga das duas namoradas de Kauê seria assunto da pequena cidade.

Micaela se viu jogada no chão e ficou deitada por alguns segundos de olhos fechados tentando segurar as lágrimas pela humilhação e dor que sentia no ombro. Luana, em pé, observou, aterrorizada, o corpo imóvel de Micaela no piso frio, e seu José debruçando–se sobre ela. Por alguns segundos Luana pensou que tivesse matado a outra.

Alguém pôs a mão sobre o ombro de Luana. Era Vanda, uma amiga de longa data da sua mãe.

– Você está bem, Lu? Por que deu ouvidos a esta maluca?

– Eu acho... – Luana gemeu. – Acho que eu matei a Micaela.

Naquele momento seu José e outro cliente amparavam Micaela que se sentou gemendo por causa do ombro. Vanda comentou puxando Luana pelo braço:

– Não, ela está bem. Vamos embora daqui. Você já passou por coisa demais.

Antes de Luana dar meia volta, os olhos de Micaela encontraram os dela. Esta teve vontade de berrar que em breve Kauê seria dela para sempre, mas preferiu ficar quieta. O ombro doía demais e era melhor guardar segredo sobre algo tão, mas tão importante.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 11/10/2017
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