Agradeço a quem devo
Acordou no leito hospitalar ainda sob o efeito das drogas injetáveis que o mantiveram em sono profundo. Balbuciou algumas palavras à família sentada no sofá destinado às visitas, ao que os parentes, atestando o despertar do moribundo, gritaram em felicidade, agradecendo aos céus a pronta recuperação. A mãe não se conteve e chorou copiosamente, alisando o rosto do filho da forma com a qual somente as mães sabem fazer. Duas tias e um primo distante completavam o séquito de plantão no quarto do hospital. Esta era a quinta vez que aquela cena se repetia, a segunda em menos de um ano. A despeito dos apelos de quem se importava com ele, nunca deixou a moto de lado; gostava de se arriscar por entre os carros nas avenidas da vida. Dava mais emoção à sua existência. Passou a se sentir protegido por entidades sobrenaturais logo após a terceira queda de graves consequências. Não ligou para o braço direito esfacelado, bem como não deu bola aos pinos e parafusos necessários à recuperação dos movimentos da mão. Protegido por quem quer que fosse, sentia-se imortal.
Desta vez, a última lembrança era a aproximação de um infeliz num carro que mudou de faixa sem dar seta. Ele também não colaborou com a sorte - justiça seja feita -, pois trafegava a pelo menos cento e sessenta quilômetros por hora. Não houve tempo para desvios, apenas uma breve oração aprendida na infância saiu de seus lábios enquanto esperava o impacto com o chão. Depois, o vazio. Estava vivo, e isso era o importante naquele momento. Sem saber a quem agradecer, rezou dois terços inteiros enquanto a mãe e as tias resmungavam as desaprovações a seu meio de transporte sobre duas rodas. O primo apenas o observava de soslaio, sem dizer palavra.
- É muito perigoso, meu filho… Todo dia a gente vê um motoqueiro morto na rua. É muito perigoso…
- Eu sei, mãe - disse, fingindo atenção aos argumentos maternos.
- Jure que vai parar - implorou a mãe, sentada ao pé da cama, o dedo em riste - jure que foi a última vez.
-Eu juro, mãe.
Promessa frágil como seda n’agua.
Mal o diálogo chegou ao fim, alguém bateu três vezes à porta. Sem esperar resposta, uma enfermeira entra no quarto sorrindo.
- Mas vejam quem voltou dos mortos - exclamou a mulher, a pele de ébano contrastando com a alvura do uniforme.
As três vigilantes se benzeram veementemente. O primo apenas devorou as pernas da funcionária com olhos nada cristãos.
- Bom - disse a mulher em direção aos visitantes -, agora que vocês testemunharam este milagre, que tal deixar nosso Belo Adormecido descansar um pouco?
O homem aprovou a ideia. Dormira por dias a fio, mas sentia o corpo pesado e mente exaurida. Todos consentiram e deixaram o quarto. A mãe não sem uma última promessa do filho; o primo não sem uma derradeira espiada no belo par de coxas. A enfermeira fechou a porta e se virou ao paciente. Sua expressão, antes singela e bondosa, agora transpassava desprezo e certo nojo.
- Ok, seu ingrato - sibilou, abrindo novamente a porta, sem deixar de fuzilá-lo com o olhar - você tem mais uma visita.
O quê? - retesou-se o hospitalizado, sem entender a mudança repentina - Que cheiro é esse?
Um forte odor de enxofre e colônia masculina preencheu o quarto. Pela porta, uma figura de terno preto entrou como se flutuasse acima do chão. Atravessou rapidamente o cômodo e sentou-se numa poltrona até então despercebida. Por um instante os dois se olharam; um, sentado na maca, ainda sem reação; o outro com expressão que ia da calmaria à severidade. Os olhos do estranho cintilavam entre o castanho e o vermelho-fogo.
- Como vai, Alex? - o recém-chegado quebrou o silêncio. A voz era, ao mesmo tempo, calma e aterrorizante. Parecia ressoar em todo o prédio.
- Quem é você?
- Você sabe muito bem quem eu sou, mas vamos direto ao assunto.
Tirou um cigarro do paletó e acendeu. Alex engoliu um seco e olhou à enfermeira. Como ela nada fez, pigarreou:
- Não acho que seja permitido fumar aq…
O estranhou levantou-se num rompante.
- Cale sua boca! - a cama e os objetos ao redor dela tremeram - Você não passa de um ingrato miserável, seu verme. Quem vai falar sou eu!
Os gritos do visitante reverberavam na caixa craniana de Alex, que segurava a cabeça com as duas mãos, apavorado.
- Como você se sentiria, verme, se salvasse a vida de alguém, sei lá, por cinco vezes - mostrou a mão com os dedos abertos - e ela agradecesse sempre a outra pessoa? Como seria, Alex?
O paciente resumia-se a dúvida e medo.
- Você salvou minha vida? - balbuciou.
A visita se acalmou e sentou novamente na poltrona. O cigarro não diminuíra um milímetro; a enfermeira observava tudo encostada à porta, os cantos dos lábios maliciosamente voltados para cima.
- Alex, Alex… - continuou o estranhou, balançando a cabeça em reprovação - Você acha mesmo que meu pai presta atenção nesta porra de mundo? Você realmente acredita que meia dúzia de baboseira decorada te salva de um caminhão, de quebrar o pescoço, de perder um braço?!
Levantou-se de novo, a expressão mais uma vez maligna e voraz. Alex se encolheu na maca.
- Não, Alex, não salva.
Caminhou até o pé da cama, apoiou-se na barra de ferro do móvel e olhou o enfermo, os olhos transbordando ira.
- Fui eu, tudo eu! - berrou, balançando a maca com força tectônica - Fui eu quem te salvei, Alex! Mas você reconhece? Não!
E chutou o móvel, que cedeu e jogou Alex aos seus pés. Este, curvado, já tinha o rosto encharcado e tomado de pavor. Ajoelhou-se em súplica.
- Para, por favor - a voz era de choro e desespero - Me desculpa, me desculpa!
- Desculpa? Não, não. Eu não vim atrás de desculpas. Só subi aqui para informar que, daqui pra frente, você está por conta própria - e sorriu melancolicamente, a expressão perdida em desilusão - Eu te fiz imortal, Alex. E você sequer foi capaz de agradecer.
Terminou a fala, botou novamente o cigarro - ainda inteiro, apesar da brasa acesa - entre os dedos e dirigiu-se à porta.
De joelhos, Alex perguntou, a voz trêmula:
- Mas quem diabos é você?!
O estranho parou, de costas, e olhou-o por sobre o ombro, um sorriso formado no canto da boca e uma sobrancelha erguida.
- Finalmente tá chegando perto.
E saiu acompanhado da enfermeira, deixando o doente em posição fetal, pela primeira vez em muito tempo repleto de medo no coração.