O talismã

Fazia mais de três horas que eu não conseguia uma boa mão. Aliás, minha sorte vinha decli-nando havia cerca de um mês. Pensei em trocar de mesa, mas acabei reconhecendo que meu talismã, uma pedra de ametista idêntica em tamanho e formato a um ovo de codorna, havia perdido todo o poder. Com profundo pesar deixei o jogo e fui me instalar na banqueta do bar. Pedi um uísque ao barman enquanto observava os demais jogadores profissionais. Aquelas pessoas, como eu, tinham domínio na ciência das cartas, mas assim mesmo traziam consigo os seus amuletos. Alguns jogadores não os mostravam a ninguém. Outros faziam questão de colocá-los à vista. Só para exemplificar: Cris Soraia dispunha sobre a mesa, à sua esquerda, uma pantera em ouro oxidado pesando uns 60 gramas. Plínio Leite calçava um par de luvas de couro sem as pontas dos dedos, que, afirmava, havia pertencido a Tom Cruise. Nero Wilson trazia no bolso do paletó uma imagem de Dom Bosco emoldurada entre duas lâminas de vi-dro, o que permitia que se lesse, no verso, sua famosa profecia que, dizem, inspirou Juscelino Kubistchek na construção da capital do Brasil.

Nero Wilson era o homem mais impressionante que eu já havia conhecido. Além de ser o su-jeito mais sortudo do circuito de cassinos clandestinos de vários Estados do país, usava ternos sob medida, sapatos de cromo alemão, relógio Patek Philippe e gravata Hermès. Havia mais: desprendia de seu corpo uma densa nuvem de perfume feminino; falava baixo; sorria com todos os dentes; as unhas das mãos eram esmaltadas de grená e usava no dedo mindinho um anel de brilhantes. Não tenho a veleidade de julgar alguém apenas por sua aparência, mas, naquele momento, seria de suma importância que eu soubesse a orientação sexual de Nero Wilson, uma vez que planejava usar da sedução para roubar-lhe o amuleto. Pertenço àquela minoria que acredita que um talismã dê sorte não a um indivíduo específico, mas àquele que o está portando na ocasião. Meu ovo de ametista, por exemplo. Antes de mim havia pertencido a uma exímia jogadora que desapareceu misteriosamente logo depois de nos conhecermos em Chattanooga, no Tennessee. Com a posse da peça, por três anos fui a mais implacável adver-sária no jogo de pôquer e acumulei uma fortuna de prender a respiração.

Chamei o barman, confidente de ganhadores e perdedores ao longo das noites de jogatinas.

– Diga-me uma coisa, Ricardo... o Nero Wilson é homossexual?

– Ele é hétero, dona Angel.

Agradeci a informação, girei o corpo na banqueta do balcão e coloquei o jogador em meu foco. Em determinado momento ele ergueu os olhos das cartas e me encarou. Cruzei as pernas à maneira de Sharon Stone em Instinto Selvagem, filme clássico de 1992 – ano do meu nas-cimento. Nero Wilson amontoou a enormidade de fichas, trocou-as por dinheiro vivo no caixa e veio sentar-se ao meu lado. Ficamos conversando até alta madrugada. Então tomamos um táxi e fomos para a suíte do apart-hotel às margens do Lago Paranoá, onde Nero se hospedava.

Da suíte se podia observar o Palácio da Alvorada em todo o seu esplendor. Enquanto bebía-mos acomodados no sofá da sala, completamente vestidos, Nero contou-me que a escolha daqueles aposentos não fora acidente – é que adorava observar a residência presidencial. E segredou: num período de sua vida havia sonhado em se meter na política. Primeiro seria ve-reador em sua cidade natal. Depois deputado Estadual, em seguida deputado Federal, senador e, por fim, presidente da República. No pleito para a vereança tivera 16 votos. Começou a rir, riu tanto que sentiu calor. Tirou o paletó, a camisa, jogou-os ao chão. Então eu vi o sino tatu-ado em seu peito. Um sino grande, do tamanho de uma mão masculina espalmada. Ante meus olhos indagadores, Nero Wilson revelou que dos 13 aos 17 anos havia sido o sineiro da Igreja Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, Minas Gerais. Fizera a tatuagem para se lembrar, sempre, dos mais puros anos de sua vida.

Fiquei tão sensibilizada com aquelas confissões que me despi e avancei sobre Nero. Alguns poderiam dizer que praticamente o estuprei – não fosse a energia voluptuosa com que ele res-pondeu ao meu ataque. Depois nos lavamos sob o chuveiro; ele encheu a banheira e brincamos como crianças espadanando água um no outro; enxugamo-nos e fomos para o quarto. Transamos de novo, desta vez com carícias estudadas, movimentos rítmicos sincronizados, nós dois repletos de ternura, pensando, sobretudo, no gozo do parceiro. Ao fim do ato, nos abraçamos exaustos e minutos após estávamos dormindo.

Acordei por volta das sete da manhã. Dirigi-me à sala e vistoriei o paletó de Nero Wilson. Encontrei o santinho de Dom Bosco, meti-o em minha bolsa e fui ao banheiro. Após a higiene pessoal, dei uma penteada nos cabelos e, de volta à sala, vesti minhas roupas, calcei meus sapatos e caí fora do flat. Chamei um carro do Uber pelo aplicativo. Só quando cheguei ao meu hotel no centro de Brasília é que respirei aliviada. Tomei o café da manhã, li os jornais, e às dez horas telefonei ao aeroporto para saber os horários de voos para Curitiba. Ao meio dia me ligaram, alguém disse "blue velvet" e desligou. Era a senha daquela noite para a entrada no cassino. Nero Wilson estaria lá, com certeza. Como seria a reação dele ao nos depararmos? Resolvi pagar pra ver.

Naquela noite, à mesa de pôquer, sentamo-nos frente a frente. Eu estava com o santinho de Dom Bosco na bolsa, mas Nero Wilson começou a ganhar todas. Como é que podia aquilo? – perguntei-me vendo meu monte de fichas cada vez mais baixo. Em dado instante encarei-o exasperada. Nero Wilson sorriu-me e acariciou o anel de brilhantes em seu dedo mindinho. Compreendi: ali estava o seu único e verdadeiro talismã.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 09/10/2017
Código do texto: T6137213
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