Um pouco tarde
A notícia havia lhe chegado como uma bomba. Estrondosa. Arrasadora. O próprio portador, amigo de ambos desde a juventude, havia vindo disposto a conduzi-la até hospital. Pela primeira vez na vida não confiara totalmente naquele quase parente. Estava agitado demais. Nervoso demais para que o que acontecera fosse apenas um incidente como ele dissera. Era algo muito grave, ela sabia.
_ Diga-me a verdade, Bola. Você sabe que sou capaz segurar a onda.
_ Eu disse a verdade e você me conhece o suficiente pra saber que não sou de fazer rodeios. Ele tá lascado, mas ainda vive. E cala a boca que já tô nervoso demais pra dirigir e escutar mulher histérica.
Idiota! Tratava-a como de costume, com fingida incivilidade. No meio da gravidade da situação, manter a mesma atitude das horas mais felizes era indício de que estava mentindo. Quando ao invés de conduzir o veículo para o centro da pequena cidade pegou a rodovia ela entrou de vez em parafuso:
_ Que coisa é essa, Bola? Onde estamos indo?
_ Pra capital. Cale a boca e se segure. Ele foi transferido de helicóptero. Se ficasse aqui morria.
Sentiu-se de repente reconfortada. Não haveria necessidade de tais riscos se ele não mais vivesse. Fechou os olhos e tentou pensar no quanto tinha para pedir-lhe perdão antes que resolvesse definitivamente mudar de plano...
Vivera com ela mais da metade de sua vida. Fizera tudo para protegê-la por todo esse tempo e o seu maior medo agora, neste momento delicado, era de, com os seus cuidados tê-la tornado criatura frágil demais para prosseguir sozinha.
É esquisito como coisas antigas voltam à mente nos momentos de medo extremo. Quando tinha dezesseis anos apaixonara-se por uma mulher mais velha. Ela tinha vinte e dois e estava com o casamento marcado com um empresário bem sucedido, portanto suas chances eram zero, mesmo assim ele um dia teve a coragem de dizer-lhe: “se eu um dia merecesse uma mulher como você, faria dela a mulher mais feliz do mundo”. Ela sorriu docemente e disse: “você encontrará a mulher que mereça tal atenção”. Encontrou e fez tudo o que podia para fazê-la feliz, tiveram filhos que ficaram adultos e se foram, voltaram a ficar a sós e passaram a experimentar uma terrível solidão a dois. Continuou fazendo tudo para que ela fosse feliz. Faltava adivinhar seus pensamentos. Se ela mencionava um desejo qualquer ele se desdobrava para realizá-lo. Na intimidade ela o rejeitava, não com as falsas e conhecidas desculpas das matronas sem libido, mas com palavras duras, injustas, difíceis de tolerar calado. Nas raras vezes que o aceitava agia como se estivesse lhe fazendo um favor que deixava na poeira toda a sua devoção. Ele, sempre fiel, apoiava-se no seu profundo amor, para evitar aliviar as tensões da natureza masculina a não ser com ela. Mas o temperamento da mulher piorava com o passar do tempo. Espicaçava-lhe por coisas ínfimas, uma palavra, um gesto mal pensado, um objeto fora do lugar. Tinha necessidade de diminui-lo. Era como se reconhecê-lo bom e atencioso a fizesse sentir-se cruel...
Outras imagens surgiram-lhe na mente. Os filhos ainda pequenos, o amigo Bola Sete, negro gordo e fleumático, metido num terno azul marinho, casando-se aos dezoito anos, o velório do pai há mais de três décadas, a primeira comunhão, a zombaria da molecada na festa junina da escola, quando sentou-se no estojo abaulado do acordeom e caiu de costas com um prato de canjica sobre o peito da camisa de uniforme...
Vozes familiares no corredor e... De repente um profundo silêncio. Uma paz infinita...