O dia mal começara quando fui despertado pelo incômodo ruído dos sacos plásticos sendo manuseados pelos peregrinos arrumando suas mochilas. Isso é uma das coisas irritantes quando nos hospedamos em albergues e temos que compartilhar do mesmo dormitório. É impossível alguém querer dormir mais uns quinze minutinhos, simplesmente não dá.
Um casal de italianos se esforçava para falar baixo, mas não conseguia. O homem reclamava com a mulher dizendo ter certeza de que havia dado a ela sua capa de chuva para guardar.
- Agora vamos ter que ficar aqui em Belorado até essa droga de chuva passar, dizia ele.
A mulher não fez por menos: pegou a mochila dele e esvaziou-a sobre o colchão da cama beliche, encontrando finalmente a tal capa grudada no fundo dela.
- Está vendo? Aqui está a tua bendita capa. Acho bom você consultar um oculista imediatamente – disse ela num tom de sarcasmo ao mesmo tempo em que o encarava de forma desafiadora, como alguém que tivesse acabado de vencer uma grande batalha e aguardasse o reconhecimento do inimigo.
Eu estava com sorte. Já havia caminhado exatos 240 km até ali sem ter sido incomodado pela chuva, exceto nos Pirineus quando saí de Saint-Jean-Pied-de-Port para Roncesvalles.
A cozinha do albergue estava entupida de gente tomando café. Ninguém queria sair caminhando debaixo daquele aguaceiro. Depois de tomar uma caneca de leite quente e comer alguns biscoitos, resolvi ir à luta colocando minha capa de chuva.
A capa nos tolhe os movimentos, força a transpiração e ainda por cima faz com que a mochila fique deslizando nas costas sobre ela se não estiver bem afivelada.
Finalmente deixei Belorado em direção a San Juan de Ortega, minha próxima parada. A trilha estava bastante escorregadia e cheia de poças. A chuva aumentava a cada minuto e, para piorar, o vento tinha vindo fazer-lhe companhia.
Meus pensamentos começaram a voar rumo ao infinito como pássaros em busca de um abrigo seguro. Eu tentava compreender e encontrar uma explicação para o fato de estar exatamente ali naquele lugar, enfrentando a fúria dos elementos. Pra que e por quê?
Pra piorar as coisas, o vento era gélido e impiedoso. Provavelmente vinha das montanhas próximas a León que costumam permanecer com seus picos nevados mesmo durante a primavera. O que me havia feito estar ali? O que buscava? Aonde eu queria chegar?
Qual o significado de tudo aquilo? Meus pensamentos agora iam e vinham aos borbotões, como ondas frias e indecifráveis. Eu estava absolutamente solitário na trilha, exatamente como queria.
Para vencer o momento, olhava para um ponto fixo bem à frente, como por exemplo, uma árvore, e dizia a mim mesmo que aquele era o meu objetivo. Ao chegar lá, elegia outro mais adiante e assim sucessivamente. Deu certo - esqueci-me completamente do tempo.
De repente, como num passe de mágica, o vento começou a abrandar até parar de vez. A chuva, achando que não seria justo ficar sozinha na brincadeira de testar minhas forças, resolveu igualmente sair do jogo.
O sol apareceu e ofereceu-se a mim como um troféu pela paciência e insistência. Comecei a suar como um cavalo por causa do plástico da capa de chuva. Despojei-me imediatamente dela e recoloquei a mochila com certa dificuldade. Detesto suar!!!! Prefiro a chuva, o vento e o frio.
Passei por Tosantos, Villambistia e Espinosa del Camino que estavam absolutamente desertas. É curioso, mas a gente mal vê algum habitante quando atravessamos essas pequenas cidades do Caminho.
Mesmo nos dias de sol, as ruas são normalmente desertas, muito embora haja vida dentro das casas. Outra curiosidade é a inexistência de marquises na Espanha: se você quiser se abrigar da chuva, não vai dar. Aliás, também na Itália, onde morei alguns anos, eu não havia visto marquises por lá. Por que será?
Já no caminho entre Espinosa del Camino e Villafranca Montes de Oca, o sol desapareceu novamente encoberto por grossas nuvens, mas pelo menos parecia que não iria chover mais.
Subitamente tive minha atenção despertada por um objeto caído no chão logo à minha frente. Era um par de óculos de sol. Algum peregrino deve tê-lo deixado cair na operação de retirar sua capa de chuva como eu, pensei.
Ao chegar a Villafranca Montes de Oca, entrei no bar “El Pájaro” onde havia vários peregrinos tomando café. Peguei os óculos e comecei a indagar se alguém ali era seu dono. Em um certo momento, resolvi levantar o objeto e perguntar de uma só vez a todos que estavam nas mesas. Ninguém se manifestou positivamente. Os peregrinos são pessoas honestas, pensei enquanto guardava os óculos na bolsinha da minha mochila.
Retomei então a caminhada. Eu já havia percorrido 12 km até ali e teria que andar outros 12 até San Juan de Ortega. Depois de uma grande subida, fui direcionado pelas setas amarelas a uma trilha bem paralela à “Carretera N-120”, num sobe e desce que mais parecia uma montanha-russa.
Chegando em “La Pedraja”, município de Burgos, avistei ao longe algo que me pareceu ser um monumento qualquer. Deve ser em homenagem aos peregrinos, pensei. Mas à medida que me aproximava dele ia sentindo um desconforto por dentro, um incômodo, algo realmente difícil de explicar. Senti vontade de evitar o lugar, mas não havia como.
Lá chegando, descobri ser um marco de pedra assinalando o local exato onde 135 pessoas foram fuziladas e enterradas ali por ordem do Generalíssimo Franco, simplesmente porque não compactuavam com suas ideias ditatoriais. Havia um quê de injustiça, covardia, desespero e angústia permeando o ar, tornando-o difícil de ser respirado. A atmosfera era pesada e carregada de fluidos extremamente negativos. A morte ainda parecia estar por ali bem presente, espreitando silenciosamente à espera de uma nova oportunidade.
Em minha mente ainda podia ouvir os tiros dos carrascos e os gritos daqueles pobres inocentes. Os espíritos de muitos deles ainda estavam certamente naquele lugar, talvez ainda sem conseguir entender direito o que lhes havia acontecido. Presos a um momento cruel no tempo e no espaço, aguardavam por paz e liberdade. Apressei-me em sair dali, pois o lugar me incomodava terrivelmente. Podia sentir minhas forças sendo drenadas e um grande desânimo tomando conta de mim. Fui ficando sufocado por um nó na garganta e com vontade de chorar.
Finalmente deixei o local para trás e alguns quilômetros depois, encontrei uma larga estrada de barro cortando um bosque. Ali, num passado distante, vários peregrinos foram pilhados e mortos quando se dirigiam a Santiago de Compostela. Eram tomados de assalto por bandoleiros dispostos a roubar-lhes o pouco que carregavam. Uma das alternativas encontrada foi alargar esse trecho do Caminho para evitar a surpresa das emboscadas. Assim permanece até hoje.
Repentinamente me dei conta de que a palavra “emboscada” significa literalmente “sofrer ataque no bosque” que normalmente era o lugar preferido pelos facínoras que podiam esconder-se atrás das árvores e dissimular-se entre a vegetação à espera de suas vítimas. As coisas não mudaram muito: hoje ainda sofremos emboscadas, mas nos caminhos asfaltados das grandes cidades.
Com esses pensamentos povoando minha mente, cheguei finalmente ao meu destino. O sol já havia voltado a brilhar e os pássaros retomaram seus cantos numa louca algazarra com alegres e vigorosos trinados. San Juan de Ortega, um pequeno povoado com apenas 23 habitantes se revelava diante dos meus olhos e me dava as boas-vindas.
Um casal de italianos se esforçava para falar baixo, mas não conseguia. O homem reclamava com a mulher dizendo ter certeza de que havia dado a ela sua capa de chuva para guardar.
- Agora vamos ter que ficar aqui em Belorado até essa droga de chuva passar, dizia ele.
A mulher não fez por menos: pegou a mochila dele e esvaziou-a sobre o colchão da cama beliche, encontrando finalmente a tal capa grudada no fundo dela.
- Está vendo? Aqui está a tua bendita capa. Acho bom você consultar um oculista imediatamente – disse ela num tom de sarcasmo ao mesmo tempo em que o encarava de forma desafiadora, como alguém que tivesse acabado de vencer uma grande batalha e aguardasse o reconhecimento do inimigo.
Eu estava com sorte. Já havia caminhado exatos 240 km até ali sem ter sido incomodado pela chuva, exceto nos Pirineus quando saí de Saint-Jean-Pied-de-Port para Roncesvalles.
A cozinha do albergue estava entupida de gente tomando café. Ninguém queria sair caminhando debaixo daquele aguaceiro. Depois de tomar uma caneca de leite quente e comer alguns biscoitos, resolvi ir à luta colocando minha capa de chuva.
A capa nos tolhe os movimentos, força a transpiração e ainda por cima faz com que a mochila fique deslizando nas costas sobre ela se não estiver bem afivelada.
Finalmente deixei Belorado em direção a San Juan de Ortega, minha próxima parada. A trilha estava bastante escorregadia e cheia de poças. A chuva aumentava a cada minuto e, para piorar, o vento tinha vindo fazer-lhe companhia.
Meus pensamentos começaram a voar rumo ao infinito como pássaros em busca de um abrigo seguro. Eu tentava compreender e encontrar uma explicação para o fato de estar exatamente ali naquele lugar, enfrentando a fúria dos elementos. Pra que e por quê?
Pra piorar as coisas, o vento era gélido e impiedoso. Provavelmente vinha das montanhas próximas a León que costumam permanecer com seus picos nevados mesmo durante a primavera. O que me havia feito estar ali? O que buscava? Aonde eu queria chegar?
Qual o significado de tudo aquilo? Meus pensamentos agora iam e vinham aos borbotões, como ondas frias e indecifráveis. Eu estava absolutamente solitário na trilha, exatamente como queria.
Para vencer o momento, olhava para um ponto fixo bem à frente, como por exemplo, uma árvore, e dizia a mim mesmo que aquele era o meu objetivo. Ao chegar lá, elegia outro mais adiante e assim sucessivamente. Deu certo - esqueci-me completamente do tempo.
De repente, como num passe de mágica, o vento começou a abrandar até parar de vez. A chuva, achando que não seria justo ficar sozinha na brincadeira de testar minhas forças, resolveu igualmente sair do jogo.
O sol apareceu e ofereceu-se a mim como um troféu pela paciência e insistência. Comecei a suar como um cavalo por causa do plástico da capa de chuva. Despojei-me imediatamente dela e recoloquei a mochila com certa dificuldade. Detesto suar!!!! Prefiro a chuva, o vento e o frio.
Passei por Tosantos, Villambistia e Espinosa del Camino que estavam absolutamente desertas. É curioso, mas a gente mal vê algum habitante quando atravessamos essas pequenas cidades do Caminho.
Mesmo nos dias de sol, as ruas são normalmente desertas, muito embora haja vida dentro das casas. Outra curiosidade é a inexistência de marquises na Espanha: se você quiser se abrigar da chuva, não vai dar. Aliás, também na Itália, onde morei alguns anos, eu não havia visto marquises por lá. Por que será?
Já no caminho entre Espinosa del Camino e Villafranca Montes de Oca, o sol desapareceu novamente encoberto por grossas nuvens, mas pelo menos parecia que não iria chover mais.
Subitamente tive minha atenção despertada por um objeto caído no chão logo à minha frente. Era um par de óculos de sol. Algum peregrino deve tê-lo deixado cair na operação de retirar sua capa de chuva como eu, pensei.
Ao chegar a Villafranca Montes de Oca, entrei no bar “El Pájaro” onde havia vários peregrinos tomando café. Peguei os óculos e comecei a indagar se alguém ali era seu dono. Em um certo momento, resolvi levantar o objeto e perguntar de uma só vez a todos que estavam nas mesas. Ninguém se manifestou positivamente. Os peregrinos são pessoas honestas, pensei enquanto guardava os óculos na bolsinha da minha mochila.
Retomei então a caminhada. Eu já havia percorrido 12 km até ali e teria que andar outros 12 até San Juan de Ortega. Depois de uma grande subida, fui direcionado pelas setas amarelas a uma trilha bem paralela à “Carretera N-120”, num sobe e desce que mais parecia uma montanha-russa.
Chegando em “La Pedraja”, município de Burgos, avistei ao longe algo que me pareceu ser um monumento qualquer. Deve ser em homenagem aos peregrinos, pensei. Mas à medida que me aproximava dele ia sentindo um desconforto por dentro, um incômodo, algo realmente difícil de explicar. Senti vontade de evitar o lugar, mas não havia como.
Lá chegando, descobri ser um marco de pedra assinalando o local exato onde 135 pessoas foram fuziladas e enterradas ali por ordem do Generalíssimo Franco, simplesmente porque não compactuavam com suas ideias ditatoriais. Havia um quê de injustiça, covardia, desespero e angústia permeando o ar, tornando-o difícil de ser respirado. A atmosfera era pesada e carregada de fluidos extremamente negativos. A morte ainda parecia estar por ali bem presente, espreitando silenciosamente à espera de uma nova oportunidade.
Em minha mente ainda podia ouvir os tiros dos carrascos e os gritos daqueles pobres inocentes. Os espíritos de muitos deles ainda estavam certamente naquele lugar, talvez ainda sem conseguir entender direito o que lhes havia acontecido. Presos a um momento cruel no tempo e no espaço, aguardavam por paz e liberdade. Apressei-me em sair dali, pois o lugar me incomodava terrivelmente. Podia sentir minhas forças sendo drenadas e um grande desânimo tomando conta de mim. Fui ficando sufocado por um nó na garganta e com vontade de chorar.
Finalmente deixei o local para trás e alguns quilômetros depois, encontrei uma larga estrada de barro cortando um bosque. Ali, num passado distante, vários peregrinos foram pilhados e mortos quando se dirigiam a Santiago de Compostela. Eram tomados de assalto por bandoleiros dispostos a roubar-lhes o pouco que carregavam. Uma das alternativas encontrada foi alargar esse trecho do Caminho para evitar a surpresa das emboscadas. Assim permanece até hoje.
Repentinamente me dei conta de que a palavra “emboscada” significa literalmente “sofrer ataque no bosque” que normalmente era o lugar preferido pelos facínoras que podiam esconder-se atrás das árvores e dissimular-se entre a vegetação à espera de suas vítimas. As coisas não mudaram muito: hoje ainda sofremos emboscadas, mas nos caminhos asfaltados das grandes cidades.
Com esses pensamentos povoando minha mente, cheguei finalmente ao meu destino. O sol já havia voltado a brilhar e os pássaros retomaram seus cantos numa louca algazarra com alegres e vigorosos trinados. San Juan de Ortega, um pequeno povoado com apenas 23 habitantes se revelava diante dos meus olhos e me dava as boas-vindas.