MORTO VIVO (Cap. 1)

Luana acordou com a tempestade batendo forte na sua janela. Era sábado, próximo das nove horas da manhã. Não precisava sair cedo naquele dia e o melhor que tinha a fazer era ficar debaixo do lençol e curtir os raros momentos de descanso.

Mas dez minutos depois Luana estava em pé, vestida com uma camisetona olhando para fora. A chuva não diminuíra. A água corria pelo asfalto, transbordando bueiros, acumulando em alguns pontos. Era dia para ficar em casa. Dia para pessoas normais ficarem em casa.

Definitivamente Kauê não era uma pessoa normal. Luana ainda estava na janela olhando a tempestade através da vidraça quando viu seu namorado passar pela rua acompanhado de mais três amigos, todos com pranchas debaixo dos braços. Percebeu que Kauê ainda olhou para a casa da namorada como se esperasse vê-la. Mas a chuvarada era tanta que o rapaz não enxergou Luana lhe fazendo gestos desesperados para que ele não fosse para o mar. Não naquele dia. De preferência nunca mais.

Kauê tinha 19 anos, dois a menos que Luana, e era a pessoa mais inconsequente que ela já havia conhecido na vida. No início, um ano antes, Luana não queria nada com Kauê. A fama de ousado e doido era demais para ela, tão certinha. Mas Kauê, encantado com a beleza suave de Luana e com seu jeito maduro, fizera de tudo para conquistá-la e chegou um momento que ela mesma não conseguiu resistir, apesar da extensa fila de namoradas que Kauê tinha e que, jurava ele, não queria mais saber.

Naquele rápido um ano Luana teve que conviver com as loucuras de Kauê e com todo aquele amor tão intenso. Não havia sido fácil. O rapaz era ingovernável. O surfe era a vida dele e por este esporte daria sua vida. Isto explicava porque naquela manhã Kauê se dirigia em passadas firmes até o mar a apenas duas quadras dali. Quantas vezes Kauê não lhe dissera que se fosse para morrer, seria surfando a melhor onda da sua vida? Luana se arrepiava e suava frio cada vez que ele dizia aquilo. E agora, justo quando o namorado passava frente a sua casa abraçado à prancha de surfe, os piores pensamentos vieram à mente dela.

Luana vestiu rapidamente um biquíni e uma camiseta por cima. Não se deu ao trabalho de pentear os cabelos. O vento forte lá fora não permitiria que ficasse um único fio no lugar. Quando abriu a porta do quarto bruscamente, a irmãzinha de três anos começou a chorar. A mãe quase ralhou com a filha mais velha, porém ao ver seu semblante preocupado percebeu que algo estava errado.

- O que houve? Que cara é esta? Só pode ser com o Kauê.

O ar meio que lhe faltou enquanto Luana procurava se articular para responder:

- Ele está indo para o mar.

Alice tentou contemporizar:

- Lu, Kauê conhece o mar. Sabe todas aquelas ondas de cor.

Mas Luana balançou a cabeça, quase que desesperada.

- Não, mãe. Hoje não – ela pôs a mão na altura do coração. - Sinto que… eu sinto algo diferente.

Chuva e vento entraram na casa quando Luana abriu a porta, assustando novamente a criança.

- Pare com esta loucura, Lu. Você não pretende ir até a praia com um tempo destes!

Mas Luana não deu ouvidos a sua mãe. A chuva continuava forte quando ela saiu para a rua, ficando ensopada em questão de segundos. O vento era terrível e aliado a sua aflição parecia intransponível. Não havia ninguém nas ruas, todo mundo estava recolhido nas suas casas esperando a tormenta passar. Luana também adoraria estar quietinha debaixo das suas cobertas, senão fosse pela loucura de Kauê em enfrentar as ondas fortes da praia naquele dia de tempestade.

Apesar de tudo Luana conseguiu chegar lá em menos de dez minutos. A chuva continuava forte, porém havia diminuído um pouco de intensidade. O vento lhe açoitava os cabelos e a areia machucava o rosto. Os garotos estavam na beira do mar, com as pranchas aos pés. Luana se permitiu dar um suspiro aliviado. Talvez estivessem avaliando a decisão de entrar no mar. Ela rezou para que desistissem daquilo.

Ela se aproximou lutando contra o vento, ainda que o coração não estivesse mais aos saltos. Os meninos olharam para trás e a observaram com o cenho franzido. A garota ensaiou um sorriso, o sorriso doce com que presenteava Kauê toda vez que estavam juntos. Porém, o alívio que sentia desapareceu em seguida e sua expressão tornou-se séria e preocupada. Kauê não estava ali com os garotos.

Não foi preciso uma única palavra para Luana saber onde o namorado estava. Os olhos azuis e atormentados dela se fixaram nas ondas do mar. Lá adiante, em meio às ondas fortes, ela conseguiu visualizar os cabelos louros de Kauê desbravando o mar. A prancha deslizava como se tivesse vida própria. Luana bem sabia que o namorado deveria estar se sentindo com asas.

- O que você está fazendo aqui? – perguntou um dos amigos, mal acreditando que Luana estivesse ali com eles.

- Vim tentar demover Kauê de entrar no mar – respondeu ela gritando para ser ouvida. Sentia a areia batendo e arranhando seu rosto. - Mas cheguei tarde demais.

Luana torceu e retorceu as mãos observando as manobras de Kauê. Ele parecia tão seguro de si que era praticamente impossível achar que alguma coisa fosse dar errado. Um dos meninos, porém, comentou:

- Nós não tivemos coragem de entrar na água. O mar está puxando muito. Insistimos para que o Kauê não entrasse também, mas… Bem, você o conhece.

A garota deu alguns passos para frente e as ondas alcançaram as canelas. Ela acenou os dois braços tentando ser vista.

- Mesmo que veja você – disse um dos garotos com os olhos fixos em Kauê, - ele não vai voltar. Não enquanto não pegar a onda perfeita.

- Que onda perfeita? – berrou ela. - Ele fala em onda perfeita desde que nasceu!

- Você tem certeza que quer mesmo ficar aqui?

Luana não respondeu. Se sentia angustiada e com uma bola na garganta que a impedia até que a respiração saísse normal.

- Kauê! – ela berrou, sabendo que o nome do namorado era levado pelo vento. - Kauê, volte!

Os amigos de Kauê ficaram em silêncio e Luana teve a nítida impressão que eles a achavam uma ridícula. Kauê não iria voltar. Se tivesse que ficar no mar por horas a fio esperando a sua onda, era isto que ele faria.

- Fique tranquila, Lu – falou um deles. - Kauê sabe o que está fazendo.

Luana não tinha esta certeza. Sim, Kauê era um excelente surfista, mas também era um sem noção. Decidiu que não iria para casa enquanto não o visse são e salvo na areia. Mais pessoas chegaram à praia, apesar da chuvarada, já alertados que havia um surfista na água. Estavam todos assombrados com o tamanho das ondas e com a ousadia de Kauê. Será que os bombeiros não poderiam fazer alguma coisa? Tipo, tirar Kauê à força do mar?

A hipótese de ir até o Corpo de Bombeiros e avisar que havia um surfista na água começou a tomar forma na mente de Luana. Um grupo de vinte pessoas já se aglomerava ali, debaixo de guarda-chuvas ou simplesmente tomando banho de chuva somente para observar as manobras arriscadas de Kauê. Será que ele ouvia os aplausos e os gritos de incentivo? Luana tremeu de raiva por dentro. Aquelas pessoas estimulavam que Kauê permanecesse mais tempo no mar, o palco que ele tanto adorava.

Quando Luana se voltou para ir embora dali e correr até os bombeiros, um grito de assombro surgiu em meio às pessoas. Ao mesmo tempo em que ela novamente se virava para o mar, começou a ocorrer uma movimentação na areia. Os olhos de Luana buscaram Kauê no mar.

Ele havia sumido.

Luana se pendurou no braço de um dos amigos, pálida, as pernas mal lhe sustentavam. Apertou os olhos mais uma vez, talvez Kauê tivesse ido um pouco mais para o fundo. Mas a agitação tomou conta das pessoas que lá estavam presentes. Havia algo errado. Muito errado. Antes que perguntasse qualquer coisa, um dos rapazes olhou para ela e confirmou, tão pálido quanto a garota estava:

- Uma onda o engoliu.

O pânico tomou conta de Luana. Ela deu alguns passos em direção ao mar, descontrolada, sem saber ao certo o que iria fazer. Alguém a segurou pela cintura, talvez temendo que Luana estivesse disposta a entrar água adentro para salvar Kauê. Luana se sentiu arrastada pela areia e mesmo que se debatesse não conseguiu se soltar. Alguns rapazes passaram correndo por ela, saindo da praia, talvez indo chamar os bombeiros ou seja lá o que fosse que pudesse tirar Kauê do mar. Luana foi carregada até um quiosque, fechado devido ao horário e à ação da tempestade. Ali, mal protegida pela chuva, Luana foi sentada à força no chão. Um dos amigos de Kauê agachou-se para ficar à altura dela. Ele tentou passar alguma tranquilidade, mas Luana percebeu que o rapaz parecia tão apavorado quanto ela:

- Já aconteceu isto outras vezes e ele voltou, entendeu bem? Agora nós vamos levar você para casa. Espere as notícias lá.

- Eu vou ficar! – conseguiu berrar ela em meio ao terror que lhe consumia as entranhas. - Não posso sair daqui e deixar Kauê perdido no mar!

- Luana, escute – o rapaz segurou forte os ombros dela. - É pior se você ficar aqui. Estamos todos nervosos. Não podemos cuidar de você.

- Eu cuido de mim – implorou ela. - Mas me deixe ficar! Como você quer que eu vá para casa sem saber o que está acontecendo com ele?

O choro mal deixava Luana terminar as frases e ela já não sabia o que eram lágrimas ou chuva molhando o rosto. De repente houve mais movimentação na areia. Um grupo de quatro bombeiros passou correndo por eles em direção ao mar, munidos de boias e cordas.

- Olha ali, os caras chegaram – alertou ele, com um tom de esperança na voz. - Daqui a pouco tudo irá terminar. Você vai ver. Volte para casa. Será melhor.

Mesmo que quisesse, Luana não tinha a menor condição de ir para casa. Sentia as pernas moles, quase que paralisadas. Sentada no chão molhado do quiosque vazio, ondas de medo iam e vinham lhe sufocando. Com o olhar vazio, ela observou os homens entrarem na água enquanto mais gente se aglomerava na areia. A notícia de que Kauê desaparecera no mar ganhou alcance sem que Luana imaginasse como.

Luana não soube quanto tempo ficou ali. No início o amigo do namorado permaneceu ao seu lado, com um olho grudado no mar e outro nas reações dela. Aos poucos ela resvalou para um mundo só seu, onde não chovia, não ventava e não havia ninguém. O rapaz se permitiu deixá-la sozinha por alguns minutos quando viu que Luana parecia um tanto catatônica.

Então um grito rompeu o ar em meio à chuva que já estava bem mais fraca naquele momento. Luana levou um tempo até se dar conta que era ela mesma quem berrava. O corpo de Kauê foi trazido pelos homens depois de mais de uma hora de busca. O silêncio foi quebrado pelos lamentos de Luana.

E depois ela não se lembrou de mais nada.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 29/09/2017
Reeditado em 06/10/2017
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