JURO POR DEUS QUE NUNCA MAIS
Tudo, até então, calmo. Até mesmo porque confirmava o ritual. Correr, apressado, para o ponto. Torcer para que o ônibus assomasse no alto do morro. Sim. Porque, volta-e-meia, ele não aparece, deixando todos nós no vácuo. Assim que o seu teto apareceu no alto do morro, veio o alívio: graças a Deus. Agora, é a disputa silenciosa, mas não menos ferrenha, pra entrar primeiro e, assim, garantir um assento vago. Caso haja, o que é raro.
O truque é, assim que colocar os pés no degrau do ônibus, fazer uma parada estratégica. Momento de escanear o ambiente, farejando um lugar vago. Se não houver, partir pra detectar aquele que vai ser desocupado logo. Um verdadeiro assédio àqueles que tiveram a ousadia de se sentar, ocupando a sua vaga. Quase stalkeando o invasor, ficar ao seu lado, como se dissesse, ainda que apenas com os olhos e a presença: olha o que você fez; por sua causa, estou aqui, de pé! Mas, milagrosamente, eis que vejo um mísero assento vago, mais ou menos no meio do balaio, no corredor. Prefiro a janela, mas... que seja.
Caminho até o local, tentando não deixar transparecer a minha alegria. Comecei bem o meu dia. Coração cheio de boas intenções, em agradecimento ao presente. Mais ou menos uma hora, uma hora e meia de viagem comodamente sentado!!! Pego meu telefone novo e coloco o fone de ouvidos. Música pra relaxar e pra não ouvir a conversa constante e sem sentido dos outros. Aquelas risadas insanas e despropositadas têm o estranho efeito de fazer desaparecer o meu humor.
Mas hoje é diferente. Estar assentado me deixa de bem com a vida. Estou disposto a, até mesmo, fazer uma boa ação. Como carregar a bolsa da passageira que está de pé. Ofereço-me para tal, com pompa, para que ela perceba a honra que estou lhe concedendo. Oferta aceita, acomodo bem a bolsa da colega de viagem no colo e me concentro em minha leitura diária no celular. Adoro ler os contos e as notícias on line. A bolsa intrusa ameaça cair e eu, cuidadosamente, a posiciono melhor. Ela não ocupa muito espaço, mas, sinceramente, preferia que não estivesse ali. Entretanto, mercantilista, penso que, se fizer esse sacrifício, posso garantir, em reconhecimento divino, um lugarzinho vago todas as vezes que entrar nesse ônibus. Aprendi, desde criança, que Papai do Céu premia os bons meninos.
A viagem continua, lenta como sempre. Mas, como estou bem acomodado, não me importo. Passageiros entram e saem. Mais entram que saem. Não me importo: estou bem acomodado. Passageiros reclamam do estado do ônibus. Não me importo: estou bem acomodado. Passageiros se acotovelam, em busca de espaço. Não me importo: estou bem acomodado.
Num certo local meio ermo, ao longo do trajeto, percebo, pelo canto dos olhos, que a colega de viagem agraciada com a minha boa ação do dia dá sinais de que vai nos deixar. Percebo a sua mudança de posição do corpo, ainda que sutil. Também sutilmente, me preparo para lhe restituir seus pertences, que já começavam a me fazer desistir de ser bonzinho. Também começo a planejar como receber, de forma elegante, os agradecimentos. Vejo que ela, realmente, aperta a campainha do ônibus, sinalizando ao condutor que deseja abdicar de nossa companhia. Esboço meu melhor sorriso discreto, tentando deixar claro que fazer o bem é natural em mim, e lhe devolvo a bolsa. Percebo que está um pouco desgastada, meio esgarçada na alça, além de uns pontos aqui e acolá, onde a costura se desfez. Também há algumas manchas de sujeira. Meu coração se enternece – um pouco – e me constranjo – também um pouco – de observar detalhes tão insignificantes.
Certo de ter retribuído a dádiva do assento, concentro-me em minha leitura, com a paz daqueles que conseguiram pagar a fatura do cartão de crédito, sem parcelar. De repente, vem aquilo que odeio: um cutucão, ainda que suave. Concedo um breve olhar para trás, na esperança de que o ser em questão perceba que não gostei da atitude. Era a colega da bolsa:
_ Moço, por favor, o meu celular.
Inicialmente, não entendi nada. Pelo fato de ainda estar com o fone de ouvido. Mas também pelo inusitado do pedido. Fazer cara de paisagem não vai adiantar. É melhor retirar o fone e dar atenção.
_ Não entendi.
_ Meu celular, moço. Preciso dele.
_ Continuo não entendendo. De que celular você fala?
_ Moço, por favor, eu tenho de descer. O ônibus tá parado e eu tenho horário.
_ Tudo bem. Mas eu ainda não entendi. De que celular você tá falando?
Percebi, agora, que ela se irritou. Realmente a coisa é séria e preciso tomar outra postura. Talvez, se eu me levantar, ficando da mesma altura que ela, melhore a minha situação. Assim faço, mas tomando o cuidado para não sair da frente do assento, para não perdê-lo.
_ Olha, moço, fico grata pela ajuda, mas pegar o meu celular na minha bolsa não tá certo. O senhor fez de propósito. Armou pra cima de mim. Se fez de bonzinho, pra me roubar. É um celular pobrinho, mas é meu. Além do mais, foi presente do meu marido.
A discussão então esquenta. Não tenho celular comigo, exceto o meu, que não cederei em hipótese alguma. Afinal, é meu e é novo!!! O caso fica pior quando os demais passageiros começam a entrar no caso. Uns por estarem atrasados; outros, por solidariedade à mulher; mais alguns, simplesmente por adorarem um furdunço. Só sei que ninguém está do meu lado!!! Será que verei, ao vivo, até que enfim, aquilo que tanto vi nos jornais e tevês, um linchamento? Mas precisava ser eu a vítima?
Começo a suar frio, as palavras me faltam. As poucas que saem não podem ser ouvidas em meio à gritaria. Alguém tem a brilhante idéia de chamar a polícia. Polícia!!! Por que não? Vou pedir arrego. Mas... não sei como, no meio de tanta confusão, me lembro de que meu celular é novo, ainda não coloquei nada pessoal nele e não tenho como provar que o comprei. Meu Deus... Nem entrada dei. Parcelei em 10 vezes!!! Ainda assim, tento pegá-lo, porém os defensores de minha adversária tentam me impedir. Quando coloco a mão no aparelho, ouço a sirene da polícia. É hoje. Meu dia de aparecer nas capas dos jornais. Aperto meu celular com angústia, como se ele fosse a minha salvação. Sinto-o vibrar, enquanto ouço, insistente, a sirene da polícia. Olho para a tela, para os lados e... cadê todo aquele pessoal? Por que a sirene da polícia toca no meu celular? Até que enfim entendo: é o meu despertador. Estava sonhando. Pior: estou em cima da hora de tomar um banho e recomeçar mais um dia de trabalho na sala de aula. Epa... isso significa que terei de pegar um ônibus!!!
Cláudio Silva – setembro/2017