A COLEÇÃO DO VELHO CARRASCO
A COLEÇÃO DO VELHO CARRASCO
Na vida de Edineuza tudo era fora de propósito. Tudo parasitava como unha-de-gato pregada nos muros. Tudo escorregava como pedras esverdinhadas de limbo. No amplo de si mesma um silêncio aquietava-lhe a alma.
Seus olhos eram do tipo que ninguém esquece. Olhos de névoa. Envoltos numa mendigação de amor. Era solicitação inútil. Mas um milagre sempre a espreitava. Meio às esquerdas de suas querências.
A fala. Ah, a fala! Esta era-lhe escassíssima. Parecia que a voz estrangulava-se. Por medo de estar solta. Mas estava lá . A roçar angústias. A pigarrear companhia.
De tudo isso, Edineuza dava um jeito ardente de aguentar. Mas tudo tem um começo. O que lhe foi áspero. Um meio. Que além da aspereza, preencheu de enganos sua existência. E um fim. Onde Edineuza estava prestes a adentrar. Mas ela não sabia disso.
Entrara naquele boteco como se entrasse num restaurante sofisticado. Ela nunca soube a diferença. Escolheu a mesinha de lata enferrujada, perto do banheiro. A cadeira estava meio bamba. Meio torta.
Vinha de algum canto um som. Um tanto quanto enroscado e agudo. Música sertaneja que saía quase sem música de um velho radinho de pilha.
Edineuza sentiu um olhar prendendo sua respiração. Aqueles olhos azuis penetravam nas suas grutas mais escondidas. Escancaravam suas grades. Chamavam-na para fora de um jeito nu. Desadormecidamente nu.
Sentia-se fustigada por ondas ventadas. De um mar profundamente sem fim. Passavam por ela o tempo e seus sonhos. Clamavam que voasse livre. Nem se dava conta da tempestade iminente. Nem da aproximação sorrateira do portador dos ingentes olhos azuis.
Ele sabia que ela estava só. Farejava a presa sem rumo, absorta e dispersa. Sabia que ela estava em busca do Infinito. E ele era a bonança após a tempestade.
Um velho sórdido. De olhar penetrantemente azul. Vibrando esperanças verdes. Dentro de corações desavisados do mal. Levaria consigo a bela sem futuro. A morna miserável nos devaneios mágicos. Dos contos de fadas. Daria a ela seu desejo realizado. A finitude dos seus sonhos. Poria fim ao mundo das ilusões. Ao romper do dia, o mundo de Edineuza seria sem amanhãs.
A música cessara. O som era outro, agora. Bem perto dos seus ouvidos. Quase dentro. Quente. Meio em sussurros o som agrupava-se em palavras: “Quero-te!”.
Docemente o apelo envolve Edineuza. E ela vai. Segue serena. Esperançosa. Em direção a uma vida melhor. Sua triste existência havia chegado até ali. De futuros ela não sabia. E o passado ficaria distante. De uma distância sem fronteiras.
Por alguns instantes Edineuza percebe a diferença mortal entre a tarde e o crepúsculo. Passou ao largo de si mesma. Nem se deu conta de onde estava. Seu coração pulsava sem saber se dentro ou fora.
Atendera ao apelo libidinoso e azul do velho indígno. Via-se manchada em seu límpido desejo. E suja em sua cristalina ingenuidade.
Ela que buscava a verdade do mundo. Estava no desaviso. Quase à beira da omissão.
Seria a mentira escrachada? Seria obra desinvestigada da criação? Quem era ela ali à mercê de um destino? Seria ela meia-obra de arte do Criador? Onde estava Ele que não viera terminar sua criatura?
Tudo era dissolvente em volta de Edineuza. A vileza do velho insano a remetera ao vácuo. Fora delegada à condição de corpo. Um corpo vilipendiado. Ultrajado. E ela ainda sentia. Porém, não estava mais ali. Era um peixe? Um cão? Um pássaro?
Apenas mais uma na coleção dos extermínios do velho carrasco.
Sem princípio. Nua e esquecida. Deslembrada, chegara ao fim. Mais nada.
Mírian Cerqueira Leite