Encontro na ponte.
Aquela era só mais uma madrugada, em que Salete precisa percorrer as ruas antigas da cidade de Goiás para chegar em casa. Morava na rua do Beco Estreito, o caminho que a deixava com um pouco de medo era a ponte do rio vermelho onde ficava a casa que pertenceu a poetisa Cora Coralina, apesar da iluminação dos lampiões amarelos, Salete tinha sempre a impressão de ser observada durante a travessia da ponte. O bar onde trabalhava como auxiliar de cozinha funcionava entre 18 h até 24 h e isso permitia que Salete pudesse no decorrer do dia seguir seus trabalhos de costura como fazia há um longo tempo, assim podia sustentar a casa deixada como herança de uma tia falecida há oito meses.
Salete tinha 29 anos, era magra, muito longe de um perfil atraente, tinha olhos castanhos claros, quase verdes, sua pele era pálida e seus cabelos longos, sempre amarrados e despenteados, mostravam várias mechas douradas feitas pelo sol, era uma mulher reservada de emoções superficiais, mas sabia ser gentil.
Naquela noite durante o caminho para casa. Saiu do bar e ao passar pela praça do Coreto, viu alguns turistas ainda se embebedando nas mesas dos bares locais, um casal de namorados abraçados passaram por Salete e trocaram apenas olhares, na certa o casal deve ter se perguntado o que fazia uma mulher àquelas horas sozinha no meio da noite. Salete caminhava em passos rápidos, ao chegar na ponte do rio vermelho, a conhecida sensação de ser observada tomou conta, mas dessa vez ela realmente estava sendo observada! Encostado no poste em frente a casa onde é o museu, um homem vestido com roupas escuras, fumando um cigarro encara Salete e caminha em sua direção.
Com o coração saltando pela boca, Salete tenta passar pelo homem com passos mais rápidos mas ao cruzarem-se em frente, ele a segura pelo braço.
__ Salete!- disse o homem agarrando-a pelo braço.
__ Heitor? – Salete estava trêmula, não pelo susto da abordagem do homem e sim, por quem era o homem.
___ O que faz aqui?
___ Salete, há tempos que eu estou lhe procurando, já se passaram dois anos que sumiu e não me deu mais notícias. Precisamos conversar.
___ Não! Não tenho nada pra falar com você, me deixe ir, por favor. – dizendo isso Salete se soltou de Heitor e foi em direção a sua casa.
Entrou no beco correndo, ainda bem que calçava sapatos baixos e fechados, é o que se tem que usar quando se mora em uma rua calçada de pedras. Chegando em casa, Salete tratou de olhar pelo beco e ter certeza que Heitor não a havia seguido, subiu o degrau de piso vermelho que dá acesso ao interior da casa, girou a chave na fechadura e entrou rapidamente em casa. Não acendeu as luzes, não queria que Heitor descobrisse onde morava, mas, se ele a estava aguardando na ponte, como descobriu que seu caminho era aquele? E mais, como descobriu que estava morando na cidade de Goiás?
Heitor ficou ali parado no meio da ponte tentando entender o que acabara de acontecer, sabia que Salete havia fugido dele, mas precisava conversar com ela. Mas Salete parecia não estar interessada em ouvir. Tinha tido muito trabalho para encontra-la desde que ela o abandonou, só conseguiu porque Leda, sua vizinha que era amiga de Salete, lhe contou que ela havia recebido uma carta de uma tia que estava muito doente e que Salete pensava em ir cuidar desta tia. Mas isso foi antes de tudo acontecer. Acendeu mais um cigarro e olhou para o céu estrelado, precisava convencer Salete a ouvi-lo.
Quando o dia amanheceu, Salete não havia nem sequer conseguido cochilar um pouco, as lembranças do passado, não muito distantes a pertubaram mais do que imaginava, droga! Estava indo tão bem em casa, por que Heitor tinha que me achar? Salete ainda estava magoada, tinha medo de Heitor, tudo o que queria era esquecer que viveu com ele durante quatro anos. Mas, Heitor não a deixaria viver em paz enquanto ela não decidisse falar com ele, foi até a gaveta do criado-mudo e pegou o revolver, se Heitor aparecesse, ela estaria preparada.
Heitor levantou cedo no quarto onde estava hospedado, tinha tido uma semana difícil, foi preciso descobrir o local de trabalho de Salete, seu caminho de rotina, não iria se arriscar indo até sua casa, não sabia se ela havia conhecido outro homem e se casado novamente e também não sabia o que Salete havia contado para a tia sobre o afastamento deles. Estava decidido convencer Salete da verdade mas tinha medo de Salete acabar com tudo, afinal de contas, precisava também do divorcio para se tornar novamente um homem livre. Lembrou-se de como Salete costumava acorda-lo com uma xicara de café todas as manhãs, era tão dócil, as vezes era fria, temperamental mas isso nunca o incomodou, até o dia em que Salete o surpreendeu.
Foi até o local de trabalho de Salete, estava fechado, mas Heitor insistiu para falar com o dono que morava perto dali, perguntou como era Salete, como se comportava, se ela tinha muitos amigos na cidade além da sua tia e soube que a tia havia falecido repentinamente seis meses após Salete ir morar com ela, a mulher sofria do mal de parkison mas acabou morrendo por uma bactéria causada no estômago, Salete era muito educada, de pouca conversa mas sabia trabalhar muito bem. O dono ficou desconfiado de tantas perguntas e Heitor acabou dizendo que era o ex marido e que tentava encontrar Salete para um reconciliamento. Saiu dali mais preocupado com Salete do que com as desconfianças do homem.
Poderia ser um dia como qualquer outro em que Salete levantaria, faria seu café e começaria os trabalhos de costura, tinha três vestidos para dar acabamento e algumas roupas para concertar. Nesses dois anos, ela conquistou uma clientela fiel, graças a sua tia que era uma costureira conhecida na cidade, foi uma pena ter tido uma morte como aquela, a doença a enlouqueceu, também pudera, viveu tão só durante os últimos trinta anos, sem marido, sem filhos. Foi estranho como a sua doença mexeu com sua cabeça, Salete recordou que a tia cismava que alguém estava tentando envenená-la, coitada, quem faria mal a uma mulher já condenada a morte? Alguém bateu na porta.
___ Quem é?
___ Sou eu, Heitor, não vou embora daqui antes que abra a porta, se não abrir irei gritar.
Salete abriu a porta com o revolver coberto por um vestido, fingia estar terminando seu trabalho.
____ Costurando você? – perguntou Heitor desconfiado.
____ Sim, minha tia me ensinou antes de morrer, a coitadinha.
_____ Impressionante como uma mulher com parkison ainda consegue ensinar um trabalho desses para alguém.
Salete, arqueou as sombrancelhas, onde Heitor queria chegar?
___ O que quer de mim Heitor? Creio que não quer explicações para o motivo de minha partida, visto que já devia imaginar que depois do que você e Leda...
___ Eu e Leda? – Heitor estava horrorizado.- Salete, você precisa...
___ Preciso do quê? Heitor, como pode ser tão cínico? – descobriu o revolver e apontou para Heitor. – Teve sorte de eu sair e deixar o caminho livre para você e aquela prostituta que se dizia minha amiga.
___ Calma Salete, eu e Leda nunca tivemos nada, foi tudo uma confusão da sua cabeça, você precisa...
___ Heitor! Sabe por que não acabei com sua vida e a daquela vagabunda? Porque seria obvio demais a minha descoberta, eu precisava sair da cidade, como alguém que não quer mais contato contigo, uma mulher traída seria uma suspeita muito forte no assassinato de seu marido e a amante não acha? Mas alguém que já o abandonou há um tempo...
___ Abaixe essa arma Salete, me ouça, por favor! – Heitor estava decepcionado com a atitude e as palavras da mulher.- Então, você após ter matado friamente a dona Estela, calculou tudo isso de deixar todos achando que eu a traía e que por isso me abandonou para que ninguém suspeitasse de você? Ridículo seu plano, e sua tia! O que fez com ela, diga a verdade!
__ Eu a matei, envenenei a coitada!- Salete ria como se contasse uma piada. – Não podia passar o resto de minha vida cuidando de uma velha inútil!
__ Você é uma psicopata doente! Não tinha motivos para matar a dona Estela.
__ Tinha sim, ela cismou que eu andava estranha, olhando demais para ela. Depois queria me despedir com uma desculpa de que não precisava mais de uma empregada. Ora essa! Ela queria me deixar desempregada!
__ E veio para cá, matou sua tia e ainda pretendia voltar para me assassinar depois. Quando ia fazer isso? Porque parece estar muito bem estabilizada nesta cidade! Salete volte comigo para Goiânia, você tem que se entregar para a polícia, eles vão saber fazer um tratamento para você, eu consultei os advogados. Existe medicamentos e terapia que você pode fazer. Além do mais, até quando acha que ficará escondida por aqui?
__ Ficarei muito bem! Agora saia da minha casa, saia da minha vida, antes que eu acabe com você!
Heitor agarrou o braço de Salete tentando tomar a arma de sua mão, mas foi inútil, Salete apertou o gatilho, tinha tido o cuidado de colocar o silenciador, agora tudo que precisava fazer era se livrar do cadáver sangrando no chão de sua sala. Fazia dois anos que não sentia esta sensação desde quando atirou em dona Estela em Goiânia, era um alívio eliminar as pessoas que queriam prejudica-la. Heitor poderia estar vivo se não fosse sua teimosia em lhe procurar. Por que achar que se entregar a polícia seria uma boa ideia e mais essa de fazer tratamento, onde já se viu? Salete podia ser um pouco impaciente, mas louca não era.
As 18 h, Salete estava no bar, pronta para mais uma noite de trabalho, não havia terminado suas costuras durante o dia, teve outra ocupação, mas estava se sentindo muito bem.
___ Salete? – o dono do bar lhe dirigiu a palavra, coisa que não tinha o hábito de fazer. – Ontem, pela manhã um homem de Goiânia dizendo ser seu ex marido estava lhe procurando e fez muitas perguntas sobre você...
___ Ah sim, nos encontramos em casa, ele já foi embora, apenas veio tentar uma nova chance, porém, inútil. _ Salete sorriu com os olhos penetrados nos olhos do patrão. – Eu sinto muito pelo incomodo que ele pode ter causado ao senhor.
__ Não foi incomodo algum. – O patrão iria ter mais cautela com ela de agora em diante.
Salete seguiu para a cozinha de cabeça baixa, estava certa de que mais alguém iria ameaçar a sua tranquilidade novamente, mas ela sempre sabia o que fazer.