DO OUTRO LADO DA PORTA
DO OUTRO LADO DA PORTA
DEOLINDA
Ela era angulosa. A pele seca e manchada cobria o corpo ossudo. Cabelos magros cacheavam a cabeça oval. Sem brilho nas faces o riso escancarava nervoso. Vinha alto, quase berro. Mediana em estatura. As mãos compridas pareciam ter vida independente. Se torciam e retorciam o tempo todo.
De seu mesmo, Deolinda nada possuía. Nem pai. Nem mãe. Parecia até que nem era nascida.
Ela era a esperança transformada numa rotina maçante. Esperança de se saber existente.
Levantava cedo. Trocava de roupa. Ia pro trabalho na casa de Dona Úrsula.
DONA ÚRSULA
Aos setenta e oito anos, Úrsula era cheia de manias e recalques. Bibliotecária aposentada. Sozinha de tudo. Apegara-se à Deolinda de um jeito grudento. E para ela, a velha tinha planos. Quase diabólicos. A intenção era fazê-la sofrer. Como se ela mesma precisasse que o mundo sofresse seu próprio sofrimento.
Nunca havia se casado. Quando era adolescente arrumou um namoradinho. Estava com catorze anos. E ele, dezessete. Deram um único beijo. No ano seguinte ele ingressou no exército. Ela se lembrava: “Foi servir a Pátria!” Tinha orgulho disso.
E nunca mais voltou.
Vestiu a roupa da amargura. Por muito mais tempo que queria. E nunca mais a tirou.
Tinha horror por quem havia se tornado. Peito gelado abrigando um coração de mármore.
Nunca ouvira palavras de carinho. Nunca percebera gesto algum que a fizesse ter gosto pela vida. O silêncio da biblioteca era o falatório. Que assustava seus fantasmas. Lembranças de quando ainda era menina-moça.
A VISITA
Deolinda chegara esbaforida naquela manhã. O celular não a despertou como de costume. Teve que correr ladeira abaixo. Fingia que não estava cansada, só para não dar o gostinho para a velha.
Dona Úrsula grita nervosa - Pensei que não viria hoje. Isso são horas?
“Cala a boca, velha dos diabos” - Deolinda disse por dentro em meio ao fogo que lhe queimava as parcas carnes.
–Hoje teremos visita. Então, se apresse.
Quem haveria de ser? Jamais alguém sequer tocou a campainha naquela casa. Deolinda matutava imobilizada.
-De braços cruzados, ainda, cadela sem dono?!
A calma domina os impulsos destrutivos de Deolinda. Se põe a varrer os tapetes puídos da sala. “Santo Expedito das Causas Impossíveis! Valei-me! Mais uma passada de vassoura por aqui e este tapete vira um monte de fiapos” – Pensa enquanto varre.
A velha se põe à cozinhar. Aquele cheiro de comida se mistura ao pó. Deolinda tosse e a campainha, soa rouca. Ninguém aparece. Alguém bate palmas.
O HOMEM MISTERIOSO
Dona Úrsula grita da cozinha:
- Atende a porta, infeliz. Virou aleijão?
Deolinda percebe a maçaneta girando. Antes mesmo de chegar à porta.
Garimpava pontos de interrogação que ficavam sem respostas. Quem estaria do outro lado?
Larga a vassoura. Destranca a fechadura.
Venenos invisíveis penetravam seus olhos. Aquele rosto era expressivo. Mas ela não soube interpretar o que o coração dele sentia. Não sabia explicar o arrepio na espinha.
Queria se fazer anônima perante aquele homem. Queria ser apenas uma mesa. Para isso teria que se desapegar da forma humana. Deveria ficar imóvel. Convencer-se de que era madeira de cedro. Exalar o perfume do lustra móveis que, por vezes sem conta utilizara.
Ela fechou os olhos na hora H. Soltou um suspiro quase interminável.
A realidade fluía lentamente. E tudo se transformou de um jeito misterioso.
Sentia-se impotente. E isso a devorou. E acabou com ela.
Nem sentiu o metal frio perpassando seu peito.
Ventos fortes varriam os últimos dias de outono.
Mírian Cerqueira Leite