A MULHER INTERROMPIDA
A MULHER INTERROMPIDA
Ela estava sentada. E me olhava. Eu via traços de mim. Ali. A me olharem nus. As almas não se vestem. Seus olhos me falavam de amor. Amor ausente. Eles eram vítreos. E me espelhavam. Entregavam de um jeito covarde a súplica indecente. O que faria com a solicitação dela? Havia um tom de coragem naquela forma de olhar? Havia a possibilidade das coisas não serem como se apresentavam? Descobriria isso logo depois. E da maneira mais estúpida.
Carolina estava com quinze anos. Olhou-se no reflexo daquela vitrine. Não se reconhecia menina. Algo havia mudado. Quando? Ela nem se deu conta. Agora estava perplexa com o que via. Ficou frente a si mesma. Sem saber o que dizer. Detestou o que via. Não era aquilo. Tomou para si a tarefa de odiar-se. E faria isso por dezoito anos.
Voltou seu olhar para a rua onde estava. Pessoas passavam por ela em suas pressas. Tudo nelas era urgente. Pra ontem. E em todos estes anos, Carolina viveu a pressa de ser.
“Minha vida não caminha. Meu interesse pelas coisas é apenas fingimento. Vivo situações que invento viver. Parece que sou estranha de mim”. E estas seriam as palavras que eu ouviria desde sempre.
Por anos a fio esta ladainha a alimentava. Nutrição tóxica. Mas ela não se importava. Queria resultados satisfatórios. Queria encaixar o adulto onde a criança nela não permitia.
Ficamos ausentes uma da outra por algum tempo. O suficiente para que Carolina me procurasse de novo. E desta vez os danos pareciam ser irreversíveis.
Conheceu Alfredo. Num piscar de olhos se viu grávida. Estava arrependida. Seu filho existiria. E ela, não! Quisera terminar com aquilo. Alfredo fora irredutível. “Vai nascer. Vamos nos casar. Vamos cuidar dele. Constituiremos nossa família”. Ela não queria. Como constituir família se ainda estava presa à de origem? Não podia ser. Nada podia ser. Ela era um nada.
Alfredo morria um pouco. A cada negação de Carolina.
Assim foram os meses de Felipe dentro da mãe.
E ele veio à luz. Em meio aos perfumes dos sabores de outono. Alfredo o acolheu.
As palavras de Carolina foram tapas no sorriso dele. “Nossa relação não tem razão de ser. Quero meu fiho. Não quero você. É meu direito. Direito de mãe. Você não tem nenhum.”
Ela era raiva. Nada mais. E ele sentira o peso daquele vazio em que ela o colocara.
Carolina deixou Alfredo. Deixou a possibilidade de começar a vida. De novo. Mas não deixou Felipe.
Naquela manhã, o pedido de Carolina colocava em risco minha lealdade para com ela. “Você pode me abrigar em sua casa? Não por muito tempo. O suficiente para dar um rumo legal na minha vida”.
Perguntei-lhe: “E o Felipe?”
Carolina fora pega de surpresa. Interrompeu-se. Percebeu naquele exato instante o quanto perdera. Durante toda a vida. Seu corpo ficou imóvel. Como estátua. Num esforço sobrenatural deixava que as palavras saíssem. Como se separadas em sílabas. Uma a uma. E o que ela diz me envolve num insuportável silêncio.
“Felipe está assim. Como eu. Não é assim que se morre?”
Mírian Cerqueira Leite