A FERA E PRINCESA

PRINCESA

Estou beirando sessenta anos de idade. Desde os doze anos fui criado nas ruas. A rua foi a minha mãe e a minha mestra; das ruas eu tirava o meu sustento e a satisfação dos meus instintos mais sórdidos e libertinos. Sou o que sou graças às ruas.

Hoje faz trinta anos que estou encarcerado, dez anos por cada crime que cometi. Pouco tempo para quitar a minha pena. Acho que mereceria prisão perpetua, pois só eu sei quantas mulheres violentei, quantos lares destrocei e quantas vidas dilacerei. A minha consciência me acusa diariamente o quanto fui cruel e desumano, posso dizer que sou uma prova de que a “justiças dos homens é cega”. Felizmente ou infelizmente a maioria das vítimas mesmo me reconhecendo, talvez por piedade ou vergonha de se expor, não ousaram a me incriminar.

Trinta anos encarcerado; trinta anos da minha vida jogados ao léu; trinta anos de torturas, solidão e sofrimento; trinta anos que o meu instinto animal foi castrado e eu fui as duras penas humanizado.

Amanhã receberei a minha liberdade, eu poderia estou eufórico, feliz, mas estou tão infeliz como no dia que eu entrei aqui. Trinta anos de prisão não foi a minha condenação, a minha condenação será quando estas se abrirem e eu me ver sem amigos, sem parentes, sem lar, visto pela sociedade como um animal asqueroso, impuro e repulsivo. Sei que será em vão dizer que sou um cidadão redimido; que mudei em todos os aspectos ; que sou um homem fisicamente impotente. Mas, apesar das minhas frustrações, agruras e pecados os meus dias nebulosos são iluminados pelas lembranças de um anjo chamado Maria da Glória.

Foi numa manha de setembro que a vi pela primeira vez, ela deveria ter uns dezesseis para dezessete anos de idade. Estava na frente da escola junto com outras normalistas da mesma idade. Era esguia, cabelos castanhos, fartos e cacheados, tinha lindos olhos azuis e covinhas na face quando sorria. Apertava graciosamente contra o peito livros e cadernos como se fossem algo muito precioso. Eu era vendedor ambulante, não que eu gostasse de trabalhar, mas usava desta artimanha para atrair as minhas presas. Não tinha preferência, não importava os atributos físicos, o único pré-requisito era ser fêmea, quanto mais frágil e vulnerável mais atraente seria.

Naquela fatídica manha, ao ver aquele anjo de olhos azuis, passei a distinguir o belo das outras coisas. Ela se destacava entre todos os seres humanos que eu conheci, era translúcida, cristalina, leve. Tinha um magnetismo que me deixou hipnotizado. Fiquei estático olhando para ela. Saí da orbita do meu mundo de imundície e descobri que eu era capaz de amar.

Naquele dia por um acaso parei em frente aquela escola para vender os meus doces no intuito de atrair alguma presa que pudesse saciar a minha lascívia. Quando percebi que uma das estudantes a me ver, olhando para a amiga, franziu o nariz olhando para mim com desdém e repugnância devido a minha aparência maltrapilha. E para me humilhar na frente das outras meninas pediu que eu me retirasse pois estava enfeando os muros do colégio , mas o meu anjo de olhos azuis olhou meigamente para mim e sorrindo falou:

- não lhe dê importância moço, ela não faz isto por mal.

Em seguida repreendeu a colega e a fez me pedir desculpas.

Não lembro se algum dia na minha vida alguém se dirigiu a mim com tanta gentileza. Naquele momento o mundo ganhou contornos diferentes e a minha vida ganhou um novo sentido. Fiquei obcecado por ela, não era uma obsessão carnal, era uma espécie de adoração. Passei a segui-la secretamente. Sabia de todos os seus passos. Descobri que se chamava Maria da Gloria; que era a única filha de um casal sexagenário; que tinha dezessete anos; que ensinava catecismo numa paróquia do bairro onde morava e que nunca tivera um namorado. Era recatada, amável, muito religiosa e muita querida na comunidade onde morava. Chamavam-na de princesa.

Um dia os meus instintos mais insanos afloraram de tal forma por ela que fui incapaz de me conter e numa noite chuvosa, inconsequentemente dirigi-me ate a sua casa e sem que ninguém percebesse pulei o muro da frente e fiquei escondido por traz de um arbusto que ficava nos fundos do jardim. Esperei pacientemente que todos se recolhessem. Quando as vozes cessaram e uma parte das luzes foram apagadas, deduzi que a família já estava dormindo, então, sem muito esforço consegui entrar na casa pela porta dos fundos. Achei o corredor onde ficavam os quartos. Parei uns vinte centímetro diante de um dos quartos cuja porta estava entreaberta. E, iluminada pela luz frouxa de um abajur a minha amada dormia docemente. Vestia uma camisola branca com botões cor de rosa, os longos cabelos presos com um laço de fita dava-lhe um ar de pureza e inocência. Contive o ímpeto, para não avançar sobre ela e devorá-la como um animal faminto, mordi meus braços até sangrarem, arranquei meu cabelos, friccionei meu corpo contra a parede para controlar a minha ereção. Mas nada disto conseguiu-me por um freio, então entrei no quarto, fui ate ela. Inexplicavelmente consegui me controlar e delicadamente sem que ela despertasse, abrir-lhe a camisola. Eu queria possuí-la, não como uma fera que deseja a presa só para satisfazer os seus instintos. Pela primeira vez na vida fui racional, mesmo assim não me contive e deitei-me ao sei lado e comecei a afagar-lhe os cabelos, beijei suavemente o seu rosto, porem ao chegar perto dos seus lábios ela despertou. Ao perceber-se semi nua, cobri os seios com as mãos. Não falou nada, apenas olhou-me enigmaticamente, até hoje não consegui desvendar aquele olhar. Senti vergonha de mim, perdi as minhas forças e sai do quarto frustrado. Mas ao pular o muro para a rua, a fera que habitava em mim despertou com toda sua fúria. Então a primeira criatura que passou por mim, foi arrastada para uma praça perto dali. Eu a seviciei com resquícios de crueldade, ainda sinto as carnes rijas em meus dentes e o sangue quente escorrendo pela minha boca. Estava tão cego, que não notei que a minha insanidade estava sendo praticada num lugar publico. Fui preso em flagrante.

Amanha finalmente serei um homem livre. Mas livre do quê se estou preso num passado nebuloso?

Como será que está o mundo lá fora? Onde andará Maria da Glória?

Minutos atrás eu acreditava que a fera estava adormecida, mas ela acabou de me segredar que está com fome. Quando sair daqui eu vou precisar vender doces para alimentá-la.

jambo
Enviado por jambo em 14/07/2017
Reeditado em 20/03/2019
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