Lírio Branco

Sentado na esquina do bar, Eugênio coça o queixo a procura de respostas para amenizar suas dores mais recentes. Ainda remoía a perda de sua esposa numa doença drástica e fulminante há dois anos, sua solidão trazia um vazio difícil de ser acomodado na sua existência. Entorna o copo num rápido movimento para os lábios, e o líquido dourado flui pela goela. Outro pequeno copo de cachaça está junto à mesa, acompanhado por uma garrafa de cerveja já pela metade.

A chuva que caía torrencialmente sobre a cidade, depois de três ou quatro semanas de seca, não dava trégua. Já haviam jorrado mais do que oitenta milímetros, segundo o anúncio da moça da previsão do tempo na televisão ligada no canto do balcão. O álcool já enturva a sua visão e abala sua memória. Quanto tempo já gastara sozinho naquela mesa? Os bêbados chatos e os constantes habitués naquele pardieiro não apareceram até então. A chuva na cidade tropical traz o vento fresco e a vontade de não arredar o pé de onde se encontra.

Eugênio sabia que estava mais exausto agora do que antes de sua aposentaria. O alto cargo na Secretaria Tributária do Estado, gerente do setor jurídico, foi uma meta estabelecido no alvorecer dos seus trinta anos. O tempo passou, ele comprou seu apartamento, arrumou um carro do ano a cada meia década e sentiu-se confiante para ter seu primeiro filho com sua esposa depois de casados. Os filhos vieram com diferença de dois anos cada um. Eram três meninos. Todos os três fizeram suas vidas, seguindo pelos estudos, as carreiras e os casamentos. Dois deles foram para fora do país, e o mais novo se distanciou da família por causa de uma briga besta de final de ano.

Eugênio não declinou de uma opinião em definitivo: as férias da família, em que ele participaria, seriam muito mais interessantes do ponto de vista do aprendizado que eles teriam nos passeios culturais nas principais capitais europeias ante o desejo irrefreável da sua nora de levá-los à Disney nos Estados Unidos. A discussão elevou-se a um tom fora de propósito, seguido a um embate agressivo com troca de xingamentos, até seu filho intervir e defender a intransigência da esposa. Ela também reclamou das intromissões de Eugênio na escolha da escola para a neta, além dos programas de quase todos os finais de semana da família. Há cinco anos ele não os via.

Virou o último copo do líquido incolor e, numa tacada, jogou para a garganta um copo quase inteiro de cerveja. O prédio onde mora fica a poucos passos do bar da esquina. Há dois anos ele se encontra absolutamente solitário. Depois da morte da esposa foi a vez de Bud, seu companheiro canino, falecer devido a sua idade avançada. Sentia-se como o velho Bud, um Cocker de cor caramelo, preguiçoso e sem vontade de acordar no outro dia. Festejara a aposentaria como se estivesse entrando numa nova idade da razão. Com tempo, dinheiro e recursos materiais, Eugênio viveria feliz, fazendo mil projetos, desempenhando grandes obras sociais e conhecendo o mundo como sonhara. Ledo engano. Pouco saía do bairro, acordava tarde e quando tentava participar de associações para trabalhos voluntários contestava sempre as direções e conselhos das entidades, para ele, corruptas e pouco profissionais. Suas atividades mais corriqueiras eram assistir a quase todos os jogos de futebol da tevê a cabo, saborear os pratos que se repetiam do buffet no mais concorrido restaurante do bairro e discutir seus projetos políticos para um país melhor com o porteiro noturno.

Está cansado e bastante tonto pelo álcool como de costume nas primeiras horas da noite. Paga a conta para o garçom com uma nota de cinquenta e deixa o troco para o jovem atendente. Sobe lentamente as poucas escadas do hall do prédio e entra no elevador sem dar papo ao porteiro. Chegara ao seu limite. Sabia que toda a espera tem seu destino, e ele estava cansado de cada recomeço, cada manhã sem objetivos, nem ao menos uma justificativa. Lutou tanto para chegar ao dia em que não deveria dar satisfações a ninguém... Esse dia havia chegado, mas não fazia mais sentido não ter com quem, nem com o que, se importar. “Que todos vão para o inferno”, reflete com uma raiva silenciosa que o faz apertar os dentes contra a mandíbula.

Abre a porta do apartamento com alguma dificuldade, lembrava que o velho 38 com cano longo estava na gaveta do armário da sala. Tenta ir rápido para o móvel perto da entrada, e ao se mover rapidamente para dentro do ambiente, com apenas as luzes do corredor do prédio acesas, chuta com força um dos pés de madeira da mesa de centro e se estatela no chão. Dá um grito abafado de dor que não ecoa naquela penumbra. Levanta-se com rapidez, abre a gaveta almejada e agarra pelo cabo o que cobiça. O objeto estava ali. Sente o ferro frio do revólver. Apoia-se com uma das mãos na parede perto da entrada e acende a luz da sala. Logo em seguida, encosta a porta da entrada do apartamento passando uma volta com a chave no lado de dentro. Em segundos, desiste de chavear a porta, vira a chave no sentido contrário pensando que após o grande estampido da arma alguns vizinhos correriam para encontrá-lo sem vida. Em seu último ato, ele facilitaria o trabalho para a remoção do seu próprio corpo.

Dá um passo para trás. A poucos centímetros da fresta da porta, uma folha dobrada está deitada no tapete verde musgo. Eugênio agarra-a, e a abre na dobra pela sua metade. Lê em voz baixa a mensagem curta que o bilhete trazia.

“Amigo Eugênio,

Não tenho nem como agradecer a ajuda do vizinho pelos dias, nessas duas semanas que estou fora, em que você cuidou de minha casa na minha ausência.

As reuniões na capital federal foram ótimas. Fiz alguns passeios e festas animadas. Depois lhe conto os detalhes bebendo uma gelada no nosso bar de esquina.

Os gatos receberam as rações devidas (sim e estão gordos!) e o lírio que estava praticamente morto quando viajei, ressuscitou. Você tem mão boa, sabia? Ele está fortalecido, robusto e com o poder milagroso de sua rega um pequeno broto vem nascendo entre as folhas. E isso que estamos entrando no inverno. Dará uma bonita flor de lírio na cor branca.

Saudações,

Afonso

P.s.: amanhã eu passo na sua casa pra pegar a cópia da chave de volta, não se preocupe. Tenha uma boa noite”.

Eugênio enxuga os olhos cobertos de lágrimas e senta no sofá para raciocinar com calma, com a arma em punho. Depois de alguns minutos de meditação, deita o revólver novamente na gaveta, tira as balas do tambor e o embrulha num pano de seda. Logo depois, joga as munições na lata de lixo na cozinha. Olha para a rua pela larga janela do ambiente ao lado da geladeira, a enxurrada ainda toma conta das calçadas e começa a inundar a rua. As gotas grossas que caíam dos céus ensopavam as copas das árvores que ficavam mais verdinhas e lustrosas, como se elas estivessem se sentindo abençoadas pelo poder arrebatador da natureza em forma de chuva.

Ulisses Duarte
Enviado por Ulisses Duarte em 11/07/2017
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