Cena e Desfecho

Por pouco ela não o viu de imediato. Estava um pouco distraída, de mãos dadas com aquele que veio em seguida... Ao vê-la, algo nele o disse que ela jamais esteve tão linda... Sempre tão linda.

Ele mudou de mesa rapidamente, foi pra uma que se escondia por trás de uma pilastra, dessa forma ele poderia proteger dela a possibilidade de que ela visse o que dele restou quando ele viu a mão dela na dele... E ele nunca viu aquele ele. Aquele que agora a tinha porque ele em algum fatídico momento preferiu perder do que vencer...de alguma forma ele acreditou que se tivesse de ter mas não aprendesse antes a perder, de nada lhe valeria o que sendo dele também não seria. Não se perde o que se tem...Não...Na verdade deixamos que aconteça. Permitimos uma chance à perdição. Ele havia deixado. Era isso que ele via, vendo-a passar sorrindo pelo outro lado da rua. Com ele. Outro que não era ele...

Como se tudo realmente conspirasse pra que ele se torturasse, ela e ele pararam em frente a uma vitrine de frente onde ele, sozinho, conversando com um copo e um maço de cigarros baratos, reencontrava à força o que ele pensou já ter superado, só que uma superação significaria qualquer coisa menos estar ali onde ele estava, superar talvez fosse parecido com continuar, mas pra ele foi como se a si mesmo dissesse “É preciso parar”. Só que ele não conseguia. Não conseguiu e certamente não conseguiria. Parar de ser ele era algo que ele ainda não sabia, mas tanto queria. Até porque não sabia o que era. Por não saber agora sabia que tudo poderia ter sido diferente. Tudo acontecia no agora, e assim que passasse, esse agora se esconderia por trás de outro agora, e ele certamente permitiria que lhe fosse concedido apenas um cálice de dúvida, não toda a garrafa, tudo que ele havia projetado estava agora ali completamente estilhaçado... decepado... irreparável era o que seus olhos viam, ela lhe parecia tão feliz...tão feliz que ele ainda não havia percebido o que por trás do vidro a fazia sorrir; era um vestido branco; O manequim usava um véu...

Ele contemplou a cena.

E como se admirasse uma fotografia ou um quadro que o remetesse a bons tempos, com embargo ele olhou ao redor, viu outros como ele, copos pela metade, garrafas vazias debaixo das mesas, rostos que transpareciam dores ocultas porém veladas, o casal que se beijava e se pegava sem pudor aproveitando a luz baixa, a música ironicamente tocava e de maneira não menos que clichê falava sobre um amor perdido...perdido...mesmo que estivesse a poucos metros, seria só atravessar a rua pra ter por um suplicante momento aqueles olhos nos dele...ter qualquer coisa que o fizesse entender que as falhas não estão nos planos, e sim em quem os planejam. Ele sabia que antes não lhe foi possível sequer mensurar o que seria deixar acontecer, por acreditar no som de sua voz ele agora não tinha a quem culpar por brindar ao futuro com uma taça vazia. Mas já havia se passado tanto tempo...Mas o que seria o tempo a não ser ele mesmo? Ele estava passando sem perceber e se não entendesse logo o que era essa sua necessidade de parar...ele continuaria e as coisas apenas seriam. Ela apontava o vestido com a mesma doçura que em tempos antes ela o olhava e o pedia pra acreditar mais em si...daria pra fazer diferente se ele ao menos tentasse...só que ele precisava querer e entender tanto quanto ela, só que...ele jamais se entenderia. Talvez aquele outro se entendesse e a entendesse... Que viesse o tempo ou que ele mesmo o fosse, talvez o que estava sendo precisasse ser e nada mais. Sim...ficaria lindo nela...aquele vestido... Ela sempre combinou com tudo, ela combinava com ter fé...e ele, acrescentando mais uma guimba no cinzeiro abarrotado, combinava com...nada.

Mas ele também tinha fé. E agora? De que valeu a fé que ambos acreditaram ter? Quem venceu o duelo entre amores? Qual era a forma certa de amar?

Alguém teria que estar melhor do que antes... Se fé fosse algo realmente plausível diante da realidade, então ainda fosse possível esperar... Só que ele não tinha uma mão para segurar, não sentia que precisava de uma outra que não fosse aquela que segurava aquela outra mão, aquela outra mão fria de tantas coisas que ele jamais saberia, o que ele tinha que ele não tinha? Ou melhor, por que ele permitiu que ela encontrasse nele o ele que ele mesmo poderia oferecê-la se ao menos ela soubesse que ele sabia que ela erraria...? Sem desejá-la mal ele sentia que muitas vezes a falta que destrói um sonho acaba por alimentar uma possível ilusão, a questão é com quem se decide partilhar do possível sonho ou ilusão, e olhando aquele a quem agora pertencia o tesouro que ele deixou que encontrassem, ele desejou que ele fizesse o melhor possível e que fosse tudo que a ele não foi permitido ser... Por ela... Por ela. Ela que por ele também precisou morrer, e agora renascida merecia reviver e quem sabe até morrer outra vez, ter morrido várias vezes foi o que já havia acontecido à ele, por isso entendia que não podia lamentar o sorriso no olhar dela, ela que já lhe fizera sorrir quando só lágrimas o entendiam... Ela só cansou porque percebeu. Ela acertou o melhor que pôde. Mas percebeu que ele precisava errar. Todos precisamos. Pra quem sabe entender o acerto. O certo. O errado. Será sempre nossa maneira, a forma de ver só a nós dirá o que ninguém mais poderá dizer. Ver significava aceitar.

E ela parecia ter aceitado. Teria tido escolha? Ele escolheu por ela?

Ele não esperava que de uma hora pra outra seus pensamentos fossem assaltados por aquela imagem que já durava uma eternidade, congelada por lembranças, ela realmente parecia interessada pelo branco pérola do vestido, as esmeraldas, certamente entraria e o provaria se a loja não já estivesse fechada, ou talvez eles ainda nem pensassem nisso ainda mas ela por certamente sonhar e saber que o que desejava seria sempre algo bom para ela e para quem ela escolhesse dividir, já cogitasse a possibilidade de um futuro feliz, pois sempre foi isso que ela disse-lhe um dia desejar... Nada além de acordar ao lado daquele a quem ela queria dedicar a vida, em troca apenas a mesma dedicação ela pedia, tão simples como saber do fim e nada poder fazer para impedi-lo, nada poder fazer pra não ter que sangrar pela lâmina da experiência. Oferece-se o sangue e em troca recebe-se algo que de valor só terá o nosso. Tantas foram as lições de um para o outro...mas nenhuma ensinava a ser só. Somente ele agora estava só. Ela talvez não tenha aprendido também, talvez o certo fosse que nenhum dos dois tivessem aprendido, aprende-se como se pode, naquele momento ele estava aprendendo e deixaria pra si a lição assim que ela seguisse seu trajeto rumo às coisas que ele não queria pensar; “A vida segue”. Siga também, ele dizia pra si enquanto seus olhos estranhamente brilhavam e algo parecia vir do fundo de um arrependimento evitável...lágrimas tardias que de nada lhe valeriam agora que estava feito. A perdera. Confirmado o fim de qualquer esperança em qualquer coisa que o fizesse mudar. Parar. Mudar. Parar. Lutar. Derrotado talvez estivesse por estar naquela mesa naquele lugar fétido onde se vendia ilusões em diversos frascos, paliativos contra um mal congênito, um mal que por dentro, silencioso, pode consumir a vida de qualquer homem... a solidão...em vez de estar com ela...

Não.

Ele sabia o que precisava fazer.

Levantou-se da cadeira e andou para a porta do bar, foi até a calçada, dentro do peito uma sensação de calor aqueceu a frieza de tudo que sentira observando aquilo que havia perdido e que tanto amara, sim...amara e ainda amava o que lembrava dela. Ele só precisava de uma coisa...pra seguir acreditando. Ele sabia que aquilo tudo passaria, a vida sempre continua, não esqueceria que o momento pedia perda...ele queria apenas um olhar...um olhar... nada além de poder sonhar...

Ela virou-se e antes que o olhar dela encontrasse o dele ela fitou o homem ao seu lado que distraído olhava o celular e que não parecia nada interessado no vestido branco que vestia uma réplica fria com um sorriso artificial. A expressão dela era de irônica paixão por carência. Os olhos deles então se encontraram, a rua os separava, e foi como se uma ponte fosse estirada sobre um abismo de insolúveis mistérios que são as crenças nas verdades vividas. Eles olharam no fundo dos olhos um do outro e suas almas pareceram tocar-se com a angústia de um beijo negado... Eles se conheciam bem demais... Ela pareceu desfalecer mantendo a expressão séria de uma mulher que aprendera seu valor, e ele teve acesa a certeza que o fez sentir uma triste felicidade indescritível diante daquela dor que feria-o com um tipo de carinho que só os pais entenderiam... ainda não estava perdido. Não. Tinha certeza. Existia algo verdadeiro entre eles. Sempre houve.

Eles seguiram e sumiram virando à esquina e ele voltou para a mesa, pagou a conta e tentou seguir andando o casal que se distanciava mas decidiu voltar. Não era justo, pra nenhum dos dois. Ou dos três. Só que em meio ao que ele não entendia e que lhe acontecia enquanto seu coração palpitava e seus sentidos entorpecidos lhe confundiam como num jogo de espelhos, ele sentia uma felicidade tomar-lhe e ele desejou entender o que era o que sentia. Caminhou pensativo até perceber que estava outra vez em frente ao bar onde horas antes sentara sem a mínima perspectiva à respeito de futuro, já que vivia apenas o presente e se negava muitas vezes a aceitar o que via. Só que estava do outro lado da rua, em frente à vitrine, perto do manequim, vendo o... vestido.

Ele mirou cada detalhe do bordado, as pedras que enfeitavam com elegância artística os cortes feitos por quem realmente amava o que fazia, percebeu que todos os anos ao lado daquela mulher que seguira em frente com outro homem o haviam feito conhece-la melhor que qualquer outro, até mesmo melhor que ela, porque sabia que ela também o conhecia melhor que ele mesmo. Ele entendia que era precisa estar como estava. Agora. Depois, nunca se saberia até que se desejasse. O vestido imediatamente preencheu todo o ser dele com a imagem daquele rosto que ele sentia que veria outra vez. Outra vez. Sem saber. Ele sabia. E usaria esse vestido, seria dele, ele dela, seriam um do outro sem precisar ser de ninguém, livres, como deveria ter sido mas precisou não ser pra vir a ser outra vez... E a cena precisava se encerrar... e feliz ele soube como se encerraria... feliz ele sabia que a teria...

“Até que a morte os separe?”

“Sim”.

No altar ele relembrava tudo... Aquele dia... aquele olhar...

Esse olhar... esse vestido...

E juntos rumaram ao que fosse o desfecho...

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 08/07/2017
Reeditado em 08/07/2017
Código do texto: T6049230
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