A VIZINHA
A VIZINHA
Chovia. Naquela noite a calha chorava sua condição esburacada. Aqueles gemidos excêntricos não deixavam Marina parar de pensar no seu dia.
Ainda era domingo. Os pensamentos eram como alucinações auditivas. Martelavam sua cabeça feito pregos fincando paredes. Inventava barulhos que não existiam. Algo deslizava no forro da casa. Só podiam ser ratos sorrateiros. Ela se enchia de certezas. E eram reais.
Preferia ter a cabeça oca. Talvez um enchimento cheio de nada. Queria ser empalhada viva. Seria um belo disfarce.
Sua vida durante o dia era apenas sussurro de si mesma. À noite a danada vinha com tudo. E a arrastava para o reino da morte. E fantasmas evaporados de cor atravessavam por ela. Sem sonhos. Sem desejos. Tudo em volta agonizava.
Morava há alguns anos no bairro. Comprara o terreno de Dona Cecília. A mulher devia estar com a corda no pescoço, como dizem quando alguém vende um imóvel bem abaixo do preço de mercado. Marina pagara uma bagatela por aquela “terrinha”. Nem se preocupara em passar escritura. Nem documentar a posse. E já começara a construir sua casinha. Bem simples. Não era chegada aos luxos. Demais a mais só conseguiu porque uma pessoa da igreja fez vaquinha com os irmãos. E pagaram pelos serviços de pedreiro de um outro membro de lá. Nomes e fisionomias Marina não guardou. Nunca mais os viu. Não frequentava aquela igreja. E nenhuma outra. Não entendia bem essa coisa de outro mundo. Diga-se de passagem, tinha medo das “coisas de cima”.
Amigos, Marina não tinha. Nem chegados. Nem distantes. Amigos gostavam de conversar. E de conversa ela não sabia nada. Política. Notícias. Manifestações. Tanta coisa acontecendo que ela se enrolava toda.
Amigos cursavam escolas disso, escolas daquilo. Ela? Só trabalhava. E nem disso, por vezes dava conta.
Estava prestes a dormir, finalmente, quando o barulho no teto começou a aumentar. De tal forma que Marina mal teve tempo de desmontar e guardar suas histórias fantásticas. E tudo virou uma enorme bagunça.
Pela manhã a escavadeira barulhenta começa a remoção de escombros perto dali. Marina faceira mal se reconhece. Está junto de Joseana. Sua vizinha da casa ao lado. Parecem conversar. Mas Joseana fala com alguém. Ela nunca vira aquele senhor de bigodes ralos. Enquanto conversam escreve numa prancheta.
-Desculpe a minha curiosidade, mas quem era ela?
-Não sei bem, aliás não sei nada sobre ela. Talvez esteja viajando. Não a vejo desde anteontem, foi a resposta de Joseana.
-Bem, a senhora sabe, apenas cumprimos ordens.
Mírian Cerqueira Leite