Missão (ou Menina - II parte)

- Vossa reverendíssima… já estamos chegando?

- Ssshhhiu…! Tenha cautela, meu jovem. Muita cautela.

Esgueirando-se pelas vielas escuras da cidade, dois religiosos caminhavam pé-ante-pé, preservando máxima discrição. O mais velho ia à frente, mancando resoluto sobre os pés calejados nas sandálias, seguido pelo mais novo, este visivelmente apreensivo. Estavam em território abertamente hostil, e sua segurança dependia da total invisibilidade de sua presença.

Estavam em missão. Mas não era uma missão qualquer.

Era uma missão de exorcismo.

Mas era um ritual diferente dos exorcismos tradicionais e dos estereotipados pela cultura pop; era uma missão de exorcismo de um demônio que lançava sombras sobre um povo inteiro.

Deixe-me explicar melhor.

Há alguns meses, uma estranha e antiga força sobrenatural fora libertada nalgum lugar, e migrou para a Capital. Essa força era tão potente, que personificara-se em matéria e raciocínio: um demônio tomara forma visível e tangível, e seu poder dominou rapidamente as terras por ele alcançadas. Seu objetivo era aquele ambicionado pelos seres de sua espécie: corromper as almas dos homens e mulheres.

E ele estava conseguindo.

Na Capital e arredores, corpos jaziam pelas ruas desertas e silenciosas; mas não estavam mortos. Pelo menos, não completamente. A alma livre de cada um daqueles indivíduos não podia ser roubada pelo Mal, porém podia ser sequestrada. O modo de vida laicista daquela sociedade deixou cada um dos seus homens e mulheres - agora tombados aos milhares nos caminhos e nas casas - expostos às forças malignas, sem que fizessem a menor ideia. Sem mais, nem menos, quando o Demônio foi libertado, não tinham defesas contra seu poder, e ele os sequestrou para o Inferno, onde sofriam antecipadamente as agruras daquele lugar terrível. E não havia nada que pudessem fazer para escapar deste estado.

Não a menos que alguém os ajudasse.

Vindos dos antigos territórios, um clérigo e seu discípulo marcharam dia e noite, atravessando os interiores ermos até o centro da tragédia. O velho quase nada dissera ao jovem sobre as causas daquilo tudo, nem sobre o objetivo da viagem deles; porém, este imaginava que tal sigilo se devia ao fato do velho pouco saber do que se tratava, tampouco em como atacar o problema. Prudente, manteve o silêncio obediente e seguiu seu mestre pelas veredas tortas que os conduziram à Capital.

Vagar pelas ruas da cidade emudecida era pitoresco: aquele cenário naturalmente barulhento da metrópole agora repousava etéreo em um sono forçado. Os altos e cinzentos prédios tornavam o ambiente opressivo e sombrio. As ruas estavam apinhadas dos transeuntes entorpecidos, apanhados de surpresa pela tragédia demoníaca. Filas de carros em congestionamentos imóveis, com motoristas debruçados sobre os volantes; ônibus lotados de passageiros amontoados uns sobre os outros; cães vagavam desorientados, farejando corpos encardidos pelo tempo ao qual estavam expostos. O vento esvoaçava os vestidos das moças e os cabelos dos rapazes tombados aos montes, e tudo era uma grande desolação.

Assustado, o discípulo não desgarrava de seu tutor. A fortaleza daquele velho decrépito lhe mantia uma pequenina chama de esperança acesa, e impedia que ele também desabasse no solo, face ao terror da atmosfera sinistra. Respirar era um esforço naquele lugar. O ar parecia denso, quase pastoso: o jovem inalava maldição e expirava temor, num ciclo venenoso.

- S… senhor… me perdoe, mas não faço ideia....

- Calado! Lá está.

Dedo em riste, o velho padre apontava uma imponente estrutura no centro de uma grande praça aberta: a bela silhueta de uma catedral desenhava-se sob a forte névoa, não muito distante no horizonte.

- Temos de ir até lá. Como te disse, mantenha-se em silêncio e cautela. A partir de agora estaremos totalmente expostos. - Sussurrou o velho. Seu discípulo passou os arredores em revista, apavorado com a tensão que parecia escalar sem fim. Ao longe, viu algo que lhe chamou a atenção:

- Padre… Veja que ali há…

- Sim. Já vi. Um homem. Acordado.

Perto dali, um homem vigiava-os, parcialmente escondido detrás dum velho muro de tijolos. O velho fez menção de defesa, logo imitado pelo jovem, que não fazia a menor ideia de como proceder. Seu coração pareceu querer sair pela boca quando aquele desconhecido avançou furiosamente em sua direção:

- P… padre! Corra!

Enquanto o discípulo se agarrava aos tropeços à parede mais próxima dali, o velho padre botou a mão dentro de sua batina e sacou um crucifixo gasto e enegrecido. Beijando-o, apertou-o contra o peito e logo tratou de agarrar o jovem pela mão, com força. O inimigo se acercava velozmente.

“O que será que este velho louco imagina fazer…?” - Pensou o jovem, embasbacado com a reação pétrea de seu condutor perante tal situação inusitada. Sua mão doía com toda a pressão sofrida pelo aperto do velho, que o arrastava em frente, na direção da catedral.

Assim que aquele homem tresloucado os alcançou, viu-o desferir um soco potentíssimo contra a cabeça do padre, que sequer vacilou. Ficou abismado com o que via: o velho parecia não ter sido impactado pelo golpe! Logo o homem desferiu mais um e mais outro, e agarrava-se ao velho com uma força ensandecida, que em nada abalava aquele religioso.

Apertou a mão do padre e foram encaminhando-se em marcha acelerada pela praça, arrastando com eles o inimigo que vociferava e golpeava sem piedade. Logo o discípulo virou alvo, mas cada impacto parecia ressoar fora de si - algo parecido com os sons de um portão de ferro atingido por golpes ecoando no interior do abrigo que protege: era assim que se sentia. Nenhuma dor corporal. Não fazia ideia do milagre que presenciava, mas logo tratou de acompanhar uma oração em latim iniciada pelo padre assim que atingiram o sopé da porta de entrada do templo.

A oração, recitada em voz alta por ambos os religiosos acalmaram aquele homem enlouquecido, paralisando seu vigor e lançando-o ao solo, em sono profundo.

Assim que cruzaram o batente, o padre soltou sua mão; o velho cambaleou levemente.

- Padre! O senhor está bem?

- Calma, garoto. Estou bem.

Mas não parecia. Um pouco cansado, talvez pelo esforço silencioso que fizera pouco antes, o velho teve que se apoiar num banco por alguns segundos, antes de retomar sua costumeira e resoluta marcha.

O interior da catedral era magnífico, mas o ambiente ali era singularmente terrível. O discípulo teve vontade de vomitar, pois mesmo o ar que se respirava era nauseabundo. Suas vistas embaralhavam levemente, como se os arredores que os cercavam fossem uma miragem. A cabeça pesava sobre o pescoço, numa sensação de queda de pressão. Salivava demais, e quando engolia parecia sentir uma bola de tênis escorregar garganta abaixo. Seus lábios secos tremiam, e sentia muito frio. Por tudo isso, se surpreendia por ainda estar de pé. Olhou para o velho, preocupado; mas este, totalmente alheio às suas agruras, parecia agora bem melhor do que ele. O jovem, então, sentiu-se envergonhado por sua aparente invalidez, e tratou de disfarçar o incômodo que o atingia.

Fixou as vistas ao redor de si, e a penumbra do lugar pouco revelava de seus segredos. Notou que o padre paramentava-se, em silente oração. Logo este elevou sua voz, que ecoava pelo ambiente, evocando uma oração de exorcismo. O calor no local subitamente aumentou, e o discípulo apoiou-se numa das colunas entalhadas em estilo neogótico, acompanhando a oração com o máximo esforço que conseguia fazer. Sua cabeça doía, e tudo ao redor parecia reverberar, como num terremoto.

Logo ela apareceu.

Uma doce menina surgiu detrás do altar profanado, revelando-se à dupla de religiosos. Do alto das grandes paredes, poeira caía e pombos fugiam pelos vitrais que estilhaçavam-se ruidosamente. Os sinos das torres ecoavam pela abóbada, badalando descompassados, cujo balanço era estimulado pelo tremor.

A garotinha veio descendo pelos degraus do presbitério, envolta em sombras, pelo corredor, na direção dos religiosos. O padre elevava sua voz senil acima da profusão dos sons terríveis causados pela perturbação do ambiente, que tendia a crescer à medida que a menina se acercava. Os bancos deslizavam no chão de pedra, vibrando sem parar. Pedriscos caíam por todos os lugares, e a construção parecia ruir a qualquer momento.

Chegada à frente dos dois, sua face não podia ser claramente divisada. Olhar para ela era como encarar uma foto desfocada. No lugar de seus olhos, uma mancha embaçada parecia encarar ambos ao mesmo tempo, bem no fundo de suas almas. O jovem sentia-se desnudado, envergonhado, como se todos seus segredos e medos mais recônditos fossem denunciados por aquele ser. Caindo em si, percebeu que estava no chão, quase prostrado, mas ainda rezava em uníssono com o padre. Este permanecia de pé, como uma rocha. A menina, avançando sem cessar, chegou aos dois homens. Parou em frente ao líder, que orava em voz grave e tenebrosa; seu discípulo nunca o tinha visto dessa forma. O ambiente ficava cada vez mais escuro, como se fossem transportados para um abismo muito profundo. Do corpo do velho, uma luz aclarava tudo ao redor, e refletia na menina. Esta, finalmente, parecia vacilar, mas mesmo assim estendeu sua mão na direção do homem, tencionando tocá-lo. Seus movimentos eram lentos e esforçados, como se uma mão invisível a impedisse. Após um tempo que parecia eterno, onde o som do terrível terremoto e a vigorosa oração do padre se confundiam em uma cacofonia impossível, ela conseguiu tocá-lo.

Tudo desapareceu em um lapso de luz.

***

Como recuperado de um forte golpe, o discípulo jazia no chão frio do templo de pedra. À volta de si, tudo estava revirado, como se um furioso tornado tivesse passado por ali. Bancos revirados, cacos coloridos dos vitrais no chão, pisos quebrados e arranhados, fragmentos de pedra e massa por todo lado… e uma pequena garota caída no chão, perto dele.

Assustado, arrastou-se até bater as costas contra uma das colunas que sustentavam o pesado teto. Buscou se recompor, e olhou ao redor, procurando pelo seu mestre.

Nada. Nem um sinal do velho homem.

Levantou-se e procurou-o ao redor, mas não o encontrou. Seu coração acelerava, e o temor de que a menina se levantasse e o atacasse crescia em sua mente. Como a enfrentaria? Não tinha chance! Nem sabia por onde começar… Foi daí que ouviu uma voz familiar, vinda de algum lugar que ele não sabia divisar:

- Não me procure… é um esforço inútil.

- Mestre! Onde está? Me diga, para que eu vá até você! - Respondeu, eufórico, o discípulo, ao ouvir o padre. Seu coração se encheu de alegria ao reconhecer aquela voz que lhe transmitia segurança e fortaleza. A voz lhe respondeu:

- Fui consumido pela batalha, meu jovem. O que restou de minha matéria está preso ao redor do corpo da menina.

Rapidamente o discípulo voltou-se para a garota, e viu que ao redor dela um rosário de ferro estava atado, bloqueando totalmente seus movimentos. Ela jazia, imóvel, em sono profundo. O discípulo, confuso, olhou para o alto e perguntou:

- Mestre! Por que isto aconteceu? Por que teve que acabar assim…?

- Meu filho, não se pergunta porque as coisas são como são… para simples criaturas como nós, não há explicação entendível para a realidade. Apenas posso contar como ela é: este mal não pode ser por nós destruído, porém pode ser contido e retardado. Vê este rosário? Vai mantê-la assim, desde que ele não seja removido. E é esta a tua missão: cuidar para que isso não ocorra.

- E como farei isso, meu mestre?

- Logo saberá onde achar as respostas. Por ora, vá-te logo daqui! As pessoas logo acordarão.

- E isto é ruim? Elas não deveriam ficar agradecidas…?

- Filho… Olhe para a cruz: lá você entenderá tudo.

Olhando para o negro crucifixo que pendia do rosário ao redor da menina, o jovem sentiu um baque no peito ao perceber algo novo… Aquela pequena imagem de Cristo pregado à Cruz lhe remeteu ao tempo da crucificação, e todo o ódio do povo pelo homem que dizia ser seu Salvador…

E o rapaz percebeu o ódio do povo.

E teve medo dele.

Mas percebeu também que no exemplo da Cruz encontraria a solução contra suas angústias. Encheu-se de uma fé sobrenatural que tirou a carga invisível do pânico e da dúvida de suas costas, e finalmente postou-se de forma ereta sobre seus pés. Como se fosse tomado por um fogo abrasador, finalmente sentia-se forte. Não perguntou mais nada ao mestre, pois não havia mais dúvidas. Caminhando ao altar, rezou pela alma de seu amo e, resoluto, tomou aquele frágil e terrível corpo da criança aos ombros e pôs-se para fora dali, o mais rápido que pôde. A noite caía enquanto ele fugia apressado pelas ruas e vielas escuras da cidade, desviando dos corpos caídos no chão úmido e gelado, que já davam seus primeiros sinais de vida. Antes que recobrassem totalmente a consciência de si, o jovem consagrado já estava bem longe, carregando aquele fardo tirado das costas daqueles muitos, que mal faziam ideia ao qual estavam subjugados.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 03/07/2017
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