Um Estranho à Porta
“Cê vai tê qui cumê sim sinhora!”, Melina estava dando mais uma lição de bons modos à mesa à Lulu, a boneca sempre se recusava a comer a papinha que Melina preparava com papel molhado e um pouquinho de pó de bolacha. Jéssica olhava de longe os diálogos intermináveis da irmã caçula. Ela já não brincava mais de boneca, já era uma moça, assim disse a tia Luiza, quando pediu que ela se desfizesse das bonecas dando-as à irmã e acabando assim com chorosas arengas em quase todos os fins de tarde, quando as duas se reencontravam em casa depois das aulas. Mas naquela tarde era feriado, não haveria aula, a mãe foi no supermercado comprar ingredientes para o bolo de feriado e Jéssica lembrava da ordem mais repetida entre todas as ordens repetidas: “Não abram a porta pra ninguém. NINGUÉM! Só para a tia Luiza”, por isso ela saiu sem trancar a porta com a chave, pedindo para Jéssica fechar por dentro com o ferrolho da parte de baixo da porta, a mãe só tinha uma chave da casa, não poderia deixar em casa e provavelmente sua irmã Luiza passaria pra ajudar em alguma coisa como sempre. O pai só chegaria à noite. E não era a primeira vez que ela ouvia as ordens de cuidado da mãe, Jéssica com sete anos já sabia que não poderia só brincar de boneca porque tinha que cuidar de uma que não parava um segundo, reclamava que estava com fome a cada 30 minutos e chorava se você fizesse qualquer coisa com ela. Melina era três anos mais nova que ela mas era tão manipuladora quanto uma irmã de quinze, muitas vezes a mãe a castigou devido a astúcia de Melina e de seus dotes artísticos teatrais. “Mãe a Zéssica me bateu!” “Mãe a Zéssica cumeu meu bolo!”, e a mãe dedicada Patrícia fazia o possível para intervir de maneira justa e imparcial. Só que ser mais nova tinha suas vantagens.
Jéssica assistia ao seu seriado favorito, “Garotas Mandonas”, e cantava as músicas de suas personagens favoritas, a mãe disse que era pra ela fazer o dever de casa, que queria ver ele pronto quando chegasse, mas ela não levaria mais que dez minutos para resolver a tarefa, a professora de Matemática disse que ela poderia ser como Einstein se continuasse como estava, ela perguntou à mãe quem era esse tal de Einstein e a mãe lhe disse que foi o homem que inventou o celular e o tablet. “Uau!” , então ela queria dizer que isso era uma coisa boa, mas ela não gostava de Matemática, acertava todas as contas só para passar o tempo, o que Jéssica gostava mesmo era das aulas de Português. Ler. Lia revistas de vampiros e também as da “Mulher Maravilha”, e nas aulas, arrasava na hora da leitura em voz alta que o professor Júlio sempre pedia em todas as aulas. Corava um pouco porque Marcelo olhava pra ela toda vez que ela lia. Marcelo foi seu par na quadrilha do ano passado. Antes da família se mudar pra o condomínio em que agora moravam, Marcelo morava na rua logo depois da de Jéssica, e sempre que ela ia com a mãe comprar pão na padaria do Seu Paulo, ela passava em frente à casa dele e ficava olhando na esperança de lhe acenar. Só que ela nunca o via.
De repente o som de batidas na porta ecoou cobrindo os diálogos de etiqueta de Melina e as músicas rebeldes de Jéssica, alguém batia à porta com força, batia no vidro da porta que já abria para a rua, no condomínio não haviam muros, e com os vidros das janelas fechados, um vulto disforme era visto de pé do lado de fora da casa, continuava batendo, talvez por ouvir o som da TV vindo da casa insistia como na urgência de ser atendido.
Melina largou a papinha e a boneca Lulu e correu para perto de Jéssica, agarrou com os dois braços o braço esquerdo da irmã e ficou olhando para a porta com cara de quem viu algo que não deveria ter visto, Jéssica fez sinal com o dedo indicador em frente à boca e Melina balançou a cabeça afirmativamente, mas já mordia o lábio inferior com conhecida expressão de quem está pronta para chorar. Talvez tenha se assustado com as pancadas fortes e repentinas que nunca antes foram ouvidas por elas, só nos filmes estranhos que os pais assistiam comendo pipocas e bebendo aquela coisa com cheiro estranho. Sempre que alguém batia em alguma porta daquela maneira, as coisas ficavam feias. “Escuta só Melina: a gente fica calada que ele vai embora, vai pensar que não tem ninguém ou que tão dormindo, a mamãe disse que num era pra abrir pra ninguém, mas acho que falar também não né?”, e a irmã balançou a cabeça confiante na decisão da irmã, e quando parecia que ela não tinha nada a dizer, com a expressão um pouco mais aliviada, Melina disse “A gente tem qui sabê quem é pa dizê pa mamãe né Zéssica?”, e Jéssica pensou que se fosse bem colada à parede, poderia se aproximar e tentar ver por alguma brecha na parte de baixo da porta quem era que batia na porta como se quisesse derruba-la.
Como uma ninja Jéssica se abaixou e já fazia menção de saltar para trás do sofá quando depois de mais batidas ela ouviu “Correio!”, e só então como que com um sentimento de tranquilidade que levemente se espalha, Jéssica percebeu por trás do vidro as cores azul e amarelo do uniforme do carteiro. “ Num abre não Zéssica”, Melina falou, “Eu num vou abrir, só vou olhar tá?”. Se aproximou da porta certificando-se de que o ferrolho mais abaixo estava trancado, e abriu o vidro da janela superior. “ Olá boa tarde mocinha! Onde está sua mamãe Patrícia? O tio aqui tem uma encomenda pra ela, por isso que o tio tava batendo na porta, dá pra ouvir ‘Garotas Mandonas’ passando, né?”, e sorrindo o carteiro bigodudo falou olhando para Jéssica que mantinha certa distância da porta, já havia visto o carteiro várias vezes conversando com a mãe e o pai, sempre a mãe dava água pra ele quando ele ia deixar as cartas que a mãe tanto esperava todos os meses. As cartas vieram depois que a vovó morreu. Ele dava tchau à elas quando ia embora, o carteiro. Jéssica não sabia do que se tratava, só sabia que depois que o carteiro deixava as cartas a mãe ficava muito atenciosa e levava ela e a irmã pra tomarem sorvete ou para o cinema. “A minha mãe não tá, ela foi compra coisa e volta já já”, Jéssica falou olhando para o homem que sorria pra ela enquanto tirava o chapéu e passava a mão no rosto enxugando o suor. “Ô minha princesa, você não quer pegar água pra o tio não? Num precisa abrir a porta não, cê me dá por aqui mesmo pela janela, eu sei que a mamãe num quer vocês conversando com estranho né? E num pode mesmo não, eu acho que eu vou vê se venho depois, diga pra mamãe que o tio Gomes do Correio veio aqui tá?”, e nesse instante Melina se aproximou rompendo a barreira de medo que havia surgido com o som das batidas no vidro da janela, ela disse “ Zéssica hoje a mamãe vai compá sovêti?”, Jéssica lembrou, e então disse “Eu vou pegar água pra o sinhô viu?”, e o carteiro Gomes sorriu e pousou a bolsa gigante no chão com um som de “Ufa!” escapando com um suspiro.
Jéssica entrou e levou a irmã pelo braço até a cozinha onde encheu um copo grande de plástico com água do filtro, “Esse home não é um estranho Melina, ele é o carteiro, é amigo da mamãe, por isso eu vou dar água à ele, entendeu? Se algum dia eu num tiver aqui cê nunca faz isso tá?”, e Melina balançou a cabeça com veemência, a duas mãozinhas seguravam uma colher de plástico que ela usava pouco antes para forçar a dieta de Lulu. Quando Jéssica voltou para a sala, a porta estava aberta... Uma bolsa azul enorme estava na frente da porta. Parecia vazia... Jéssica soltou o copo no chão. O ferrolho ficava abaixo do vidro da janela inferior, porém só podia ser visto do lado de dentro de casa. Mas havia algo há muito planejado acontecendo naquele momento... Era feriado. Carteiros geralmente não trabalham no feriado...
Quando os corpos das meninas foram encontrados em pedaços putrefatos espalhados por quilômetros numa fazenda próxima, nenhuma resposta foi encontrada... Ninguém havia visto nada...nada... Não era um estranho quem à porta chamava...