Fixação
Pela janela, Pedro via pouco daquela figura estranha que olhava fixamente para a janela da sua casa, parada na calçada do outro lado da rua. Estava ali há um bom tempo se esgueirando entre as frestas das árvores, com olhos bem atentos.
Pedro se perguntava no que diabos aquilo estava tão interessado, a ponto de despender tanto tempo ali, plantado ao relento, o vigiando.
Infelizmente Pedro não tinha uma luneta para ver melhor o seu vigilante e com o pouco campo de visão disponível, apenas conseguia enxergar vislumbres das roupas que aquela figura usava. Com nitidez apenas via o branco dos olhos vidrados entre as frestas das árvores.
Uma dúvida pairava em sua consciência. Não sabia se confrontava a situação ou ficava ali, parado e escondido, olhando por entre a cortina da janela, aguardando qualquer ação de seu perseguidor.
Nesse embate, uma, duas, três, quatro horas se passaram e a claridade começou a se esvair, dando espaço para a noite e todas as incertezas que trazia.
Não diferente, Pedro continuava petrificado ali, observando. Faltou, inclusive, com todos os seus compromissos daquele dia.
A lua já estava alta no céu, escondida atrás de carregadas nuvens, e cada vez mais o branco dos olhos do seu algoz se destacava em meio a escuridão, que tomava conta apenas entre uma e outra piscadela.
Pessoas e carros passavam pela rua, mas ninguém parecia notar a sua presença.
Pedro não entendia aquela fixação e, sem encontrar respostas para suas perguntas, continuava ali, inerte, na esperança de que a estranha figura fosse embora e ele pudesse voltar para a sua rotina.
Seu pequeno cachorro já começara a latir aos seus pés, incessantemente.
Pedro não se importava. Não sabia porque, mas simplesmente não se importava.
Nesse ínterim, o impasse de olhares correu madrugada a dentro, e tão rápido quanto a noite chegara, ela se fora.
O dia nasceu nublado, uma manhã cinzenta. Aos poucos os primeiros corajosos apareciam para cumprir com seus afazeres.
Pedro notou que seus vizinhos, mesmo muito cedo, saíram às ruas em direção ao seu quintal e, de forma curiosa e inquieta, ficaram ali, por algum tempo, murmurando um com o outro e direcionando olhares para sua casa.
Com certeza era o barulho incessante dos latidos do cachorro durante toda a noite que os atraiu.
Mais e mais pessoas se aglomeravam em frente ao seu jardim e Pedro dividia sua atenção entre o par de olhos que o vigiava atrás das árvores e os muitos olhares curiosos da vizinhança.
Não suficiente, não conseguia ouvir as conversas do lado de fora, pois estavam abafadas pelo estridente latido de seu cachorro, mas, ao contrário, do lado de dentro, entre um e outro latido, Pedro pode ouvir o ding dong da campainha e as batidas na porta clamando seu nome.
Deixou bater, não lhe interessava quem fosse ou o que quisesse àquela hora da manhã.
Sobrepondo todos os sons, ouviu o barulho crescente de sirenes e, tão logo, percebeu a chegada de viaturas da polícia e bombeiros.
Naquele momento, sentiu uma tontura, de modo que suas vistas se embaraçaram e escureceram, sendo que a última cena que vira foram os malditos olhos o fitando por de trás das árvores.
Já mergulhado em completa escuridão, ouviu um estrondo, como se sua porta houvesse sido arrombada.
Quando despertou, estava parado, em pé, de trás das árvores, olhando por entre as frestas a multidão de curiosos que se formou em frente ao jardim enquanto os paramédicos retiravam seu corpo de dentro da casa. Seu cachorro seguia o dono latindo, chorando e pulando em direção a maca que era carregada por dois enfermeiros.
Olhou para a janela, especificamente para o vácuo entre as cortinas existente no local onde seu corpo físico esteve encostado durante as últimas horas e, finalmente, conseguiu partir, sabendo que não mais existiam amarras que o prendiam àquela vida.