A casa
Era meados do século XX, quando a família Diniz resolveu se mudar para um local distante da civilização. Longe de tudo e de todos a família de origem italiana escolheu uma antiga fazenda para perpassar seus dias.
Maísa era a filha caçula, uma pequena bastante sapeca e até mesmo desobediente. Estava agora com sete anos de idade. Doce e mimada, por vezes também um pouco petulante. Tatá, sua irmã mais velha era absolutamente o oposto. No auge da juventude, aos seus quinze anos, não havia possibilidade de estar de acordo com a mudança. Sua vida agitada, seus amigos, a escola de boa qualidade a qual frequentava, tudo isso, já não fazia parte de sua realidade, o que em determinados momentos lhe causava uma grande revolta.
Dona Yeda, a mãe, era uma típica dona de casa de meia idade. Vivia seus dias em função da família, pensando em como fazer para satisfazer as necessidades de suas filhas e de seu marido, o senhor Pablo Diniz, um engenheiro aposentado que viveu os melhores anos de sua vida focado no trabalho, sem desfrutar da companhia de seus familiares.
A família, muito tradicional, gostava de tudo meticulosamente organizado, desde os objetos antigos que decoravam a sala de estar, como as ações e decisões que permeavam seus dias. Quando resolveram se mudar, muitos de seus antigos hábitos deixaram de ser prioridade.
O chá com as amigas, que era semanalmente organizado por Yeda, foi uma das perdas que a dona de casa mais lamentava. Já para o senhor Pablo, o poker com os amigos nas segundas lhe fazia muita falta. Tatá se encontrava de coração partido, pois havia deixado, forçadamente, aquele que seria ao seu ver, o grande amor de sua vida; seu nome: Ricardo, um menino rico e muito esnobe que frequentava o segundo ano na mesma escola de Tatá.
A única que não via problemas na súbita mudança de hábitos era Maísa, a filha caçula. A escola não lha agradava muito, se esforçava apenas para agradar aos seus pais, mas no fundo ela não se importava. Dessa forma para ela era indiferente o fato de mudar-se ou não de escola.
A mudança para a fazenda aconteceu em etapas. Quando finalmente chegou o dia em que poderiam adentrar o novo lar, todos estavam ansiosos, fosse pela concretização de um desejo, fosse por frustração de não poder mudar os fatos. Os últimos detalhes da decoração foram acertados por Yeda:
___ Não é porque vamos morar no meio do nada que precisamos abandonar o bom gosto!! Ponderava a dona de casa, enquanto seu marido desaprovava seu comportamento fazendo uma cara de pouco preocupado.
Enfim, o jantar foi servido, Yeda estava feliz, pois tudo havia saído conforme o planejado. A recordação da primeira refeição no novo lar deveria ser perfeita.
Após o jantar, uma agradável conversa iniciou-se; recordações dos tempos idos, lembranças de momentos que eram guardados com carinho na mente e no coração da família Diniz, até que um barulho vindo do sótão quebrou o clima de nostalgia.
Todos se entreolharam, não imaginavam o que poderia estar acontecendo. Pablo não hesitou e saiu correndo para averiguar o que acontecia. No mesmo instante um forte cheiro tomou conta do ar, até então fresco e perfumado pelas rosas brancas que enfeitavam a sala de estar onde todos se encontravam. Um cheiro de carne em putrefação tomou conta do ambiente; não se podia identificar a sua origem.
Quando chegou ao sótão, após subir correndo as escadas, Pablo não encontrou nada que pudesse ter causado tal barulho. No cômodo inutilizado havia apenas caixas com documentos velhos, brinquedos antigos e muitas, muitas fotografias penduradas na parede em quadros com molduras antiquadas.
Nesse momento, um cala frio lhe subiu dos pés à cabeça, ele não sabia quem foram aquelas pessoas; nem ao menos sabia a história da fazenda, quem haviam sido os antigos proprietários, enfim, nenhuma informação relevante que o esclarecesse onde realmente era o lugar em que estavam vivendo.
Retornando à sala, as três mulheres da família estavam apreensivas, esperando por uma justificativa plausível para o fato, justificativa esta, que Pablo não tinha.
__O que houve lá em cima? Caíram algumas caixas? Ou algum outro problema? Indagou Yeda.
Pablo pensou por alguns segundos antes de responde-la. Não queria assustá-las à toa.
__ Não querida! Não houve nada! O que aconteceu é que a casa está infestada de enormes ratazanas que se assustaram com a nossa conversa, não se preocupe, não há nada de errado! Amanhã mesmo darei um jeito nisso!
__ Deve ser por isso então o cheiro insuportável que sentimos, que horror! Disse Yeda, sentindo-se enojada.
Pablo não havia sentido cheiro algum, o que o deixava mais cismado. Pensativo sobre o quê poderia estar acontecendo, optou por antecipar a hora de dormir, conduziu então, suas filhas aos seus leitos. Pela primeira vez as irmãs se recusaram a dormir separadas, o que deixou Yeda aborrecida, pois cada uma de suas filhas tinha seu próprio quarto, pensado nos mínimos detalhes e decorados de acordo com o gosto de cada uma. Mas diante de tal situação, a mãe entendeu que seria melhor estarem juntas para que se tranquilizassem.
Os candelabros foram apagados - a energia elétrica ainda era algo utópico para aquela região - e agora a escuridão tomava conta da casa. Tatá e Maísa dormiam, quando de repente Maísa acorda assutada e olha para a porta, antes fechada e agora aberta, uma figura muito estranha surgia diante de seus olhos. Em uma fração de segundos ela pode observar seus detalhes, antes que o pânico tomasse conta de seu ser.
Alto, magro, usava uma espécie de farda, na qual muitas estrelas ostentavam, provavelmente, o número de condecorações recebidas, ou algo do gênero. Estava ali, aquele homem estranho, parado na porta de seu quarto. Com a cabeça baixa, protegida por um kepe, em suas mãos uma grande arma, provavelmente um dos modelos usados em grandes combates.
A figura bizarra não disse se quer uma palavra, e antes mesmo que Maísa pensasse em gritar, correr, chamar por sua irmã, ou algo nesse sentido, a figura desapareceu.
Por um momento a menina se perguntou se aquilo havia sido um sonho ou realidade. Por puro medo de assumir para si mesma e também para os outros o que havia acontecido - poderia ser acusada de inventar coisas, mentir, ou pior: ser vista como maluca - optou por classificar o ocorrido como fruto de sua imaginação. Voltou a dormir, agora mais tensa que antes.
Após uma noite agitada, sem conseguir dormir profundamente, Maísa acordou e foi tomar seu café da manhã. A bela mesa posta lhe abriu o apetite! E um convite de seu pai para caminhar e conhecer a fazenda lhe fez se sentir empolgada e temporariamente se esqueceu do fato ocorrido durante a noite.
Primeiramente uma caminhada pelo bosque que logo acabava revelando uma vista muito bonita de um grande lago. Observando mais de perto, a água era turva e parecia ser muito profunda. Maísa passou um tempo olhando algumas algas que flutuavam na superfície, quando de repente, uma visão inesperada...Era uma criança! uma criança que boiava na superfície da água turva. Loira, com cabelos cacheados. Em uma fração de segundos uma mão grande, de homem, que vestia, aparentemente uma roupa escura a puxou para o fundo, fazendo com que a imagem logo se dissipasse em meio às algas.
Assustada, a menina deu um único grito que se fez ecoar por uma distância incalculável. Pablo imaginou que algo muito grave poderia ter acontecido:
___ Minha filha! o que houve?
___ Você se machucou?
Por um instante o silêncio imperou. Ela simplesmente não conseguia reagir e responder. Pálida e gelada com o susto, olhou para seu pai, que não entendeu nada, e começou a apontar com seu pequeno dedo para a parte do lago, onde havia visto a imagem.
___ O que há lá, Maísa?
___ O que você está vendo? Algum animal?
___ Não papai! O que eu vi foi muito pior!
Maísa pensou, e novamente ponderou. Não disse nada do que realmente havia visto.
___ Eu pensei estar caindo na água, papai. Foi só isso.
___ Ora, menina! Não precisava gritar tanto apenas por causa disso. Eu estou aqui!Claro que não a deixaria cair!
Assustada, a menina não disse se quer mais uma palavra durante o percurso de volta para a sede da fazenda. A poucos metros da entrada principal, que os levaria para o jardim e posteriormente para a calçada que os levaria para a sacada da sala, mais um fato inexplicável aconteceu.
Agitada e ansiosa para chegar logo em casa, resolveu apressar o passo e começou a correr. Sem prestar atenção onde pisava, logo alguns detritos espalhados pelo chão começaram a machucar seus delicados pés. Entretanto, o pior ocorreu quando em um pedaço de madeira velha um prego atravessou seu pé, fazendo-a desmaiar na hora devido ao susto.
Pablo vendo o ocorrido, correu o mais rápido que pode em socorro de sua filha. Levando-a para dentro de casa, observaram que o prego havia apenas perfurado seu calçado e um pouco da pele entre os dedos. O que os tranquilizou, pois apenas um remédio caseiro seria necessário para cicatrizar a ferida.
Com o passar dos dias muitos outros eventos inexplicáveis continuaram acontecendo. Cheiros estranhos, barulhos misteriosos, objetos que desapareciam e surgiam em lugares inusitados, vozes e passos eram constantemente ouvidos dentro da casa, assim como cantigas, risadas, choro de crianças e mais comumente barulho de tiros e explosões.
Era visível que algo não estava certo, no entanto, o senhor e senhora Diniz, não concordavam em admitir e abandonar o sonho de viver naquele lugar que tanto almejaram. Maísa, inconformada e tomada de um instinto investigativo resolveu pesquisar por sua própria conta e risco aquele lugar misterioso.
Em uma manhã gelada e com o sol encoberto por nuvens finas, a menina saiu com a desculpa de ir à casa de uma amiga na fazenda vizinha. No entanto, o destino era outro. Maísa havia ouvido falar de uma senhora, muito idosa já, que conhecia todas as histórias daquela região. não pensou duas vezes para procurá-la.
Esperta como era, sabia que a idosa não lhe daria muita atenção e muito menos lhe confiaria fazer grandes revelações. Enquanto batia a sua porta, já planejava como iria convencê-la.
___ Senhora! Senhora! Bom dia!
___ Olá menina, quem é você?
___ Bom dia, sou Maísa, filha do senhor Pablo Diniz e senhora Yeda Diniz.
___ Minha mãe pediu para que viesse aqui convidá-la para um chá logo mais, no inicio da tarde.
__ Ora, que simpática!!
__ Sim, ela gostaria muito de conversar com a senhora, está encantada com as histórias que ouviu sobre essa região nos últimos tempos!
__ Hum, sei!!
__ Mas a minha mãe é uma pessoa muito reservada, ela jamais vai perguntar alguma coisa, a senhora é quem tem que dizer as coisas à ela, mesmo que ela não pergunte!
__ Entendo, estarei lá então!
Convencida de que seu plano daria certo, voltou para casa, e logo foi falar para sua mãe que havia encontrado uma vizinha, por acaso, no caminho da escola e que a mesma havia dito que gostaria de tomar um chá na sua casa e então ela havia a convidado!
A princípio a mãe a repreendeu, mas em seguida, após os inúmeros argumentos da menina, Yeda se convenceu que Maísa apenas estava tentando ser educada, assim como ela mesma a havia ensinado ser.
Chegando no horário marcado, as duas travaram uma conversa interessante, sem perceber que tudo se tratava de uma manipulação de Maísa.
___ Como estão as coisas? Estão gostando de morar aqui? Perguntou a senhora, com um olhar desconfiado.
___ Ah, sim! É muito bom, o clima é bom, tudo é muito bom mesmo! A dona de casa fez questão de enfatizar, como se nada de anormal estivesse acontecendo!
___ Que bom! realmente é difícil acreditar depois de tudo o que aconteceu nesse lugar que as coisas estejam indo bem!
___ Coisas!? Que coisas?
___ Esse lugar há muito, mas muito tempo atrás serviu de alojamento para soldados. Aqui realizavam-se treinamentos, aulas, jogos. Com a desativação do alojamento o terreno foi abandonado.
___ Como assim?
___ Sim, durante muito tempo o terreno ficou abandonado, quando resolveram utilizá-lo para algo útil. Foi criado bem aqui, embaixo desta casa, um cemitério. Famílias inteiras foram sepultadas aqui. Especialmente os soldados e seus familiares, mas também algumas pessoas da vizinhança, como um menino que morreu afogado lá no lago.
___ Como assim, embaixo da casa?
___ Sim, havia um cemitério, e os restos das lápides ainda existem! Se observarmos bem vamos perceber muitos detritos de construções por aqui. Muitas famílias passaram por aqui, mas nenhuma conseguiu ficar por muito tempo.
Nesse momento, Maísa que ouvia tudo atenta, escondida no corredor, entendeu tudo o que aconteceu! O espaço dos corpos enterrados foi invadido para a construção dessa casa. Mas não devia! As almas que ali repousam precisam ter seu espaço de volta. É apenas isso que elas querem!!