Salvatore

Eu estava mergulhado num sonho sem sentido e cheio de imagens desconexas; deuses e homens dançando numa piscina cheia de sangue; bombas explodindo e mulheres nuas tocando trombetas. Normalmente sempre sonhos coisas desse tipo. O sonho certamente teria seguido com evoluções de personagens e cenários, se não fosse o telefone tocando pra me acordar. Puxei o fone do gancho- meu telefone fica no chão, numa altura em que eu sempre possa atender deitado na cama- e impacientemente esperei que falassem. Eles é que devem falar primeiro.

"Alô... Salvatore?" Era uma voz de mulher cansada, uma voz de alguém que parecia estar à beira da morte ou então ter chorado recentemente, ou então, as duas coisas.

"Sim. Em que posso ajudá-la?"

Ela soluçou, assou o nariz, soluçou de novo, teve um início de choro que sufocou abruptamente. Depois de anos nesse ramo, sinto que essas coisas pouco a pouco foram deixando de me comover.

"Eu preciso... Preciso do seu serviço...", disse ela, voltando a chorar.

Esperei alguns segundos. Saquei o maço de cigarros do bolso interno do meu agasalho e acendi um . Consultei o relógio: 20:12.

" A que horas?" Nenhuma resposta. Aquilo estava começando a me irritar.

"Senhora, estou bastante ocupado, será que pode dizer a que hor..."

"Onze horas" Disse ela, na voz mais forte que parecia poder usar. Soltou um longo suspiro e completou: "Onze horas, onze e meia, tanto faz para mim, mas essa noite".

As mulheres normalmente sempre preferem a noite. Deve ser a sua natureza romântica.

"Tudo bem, às vinte e três horas está bom para mim. Preciso apenas do seu endereço". Ela passou o endereço. Anotei mentalmente.

"Agora, por favor, quem foi o médico que forneceu minhas referências profissionais?"

Ela disse o nome do médico. Bateu. Era um dos doutores que costumava recomendar meus serviços. Um médico de renome, diga-se de passagem.

"Então tudo bem. Mas o seu médico disse quanto em média custam os meus serviços?"

Silêncio. Um novo e longo suspiro

"Sim", ela falou, finalmente.

"Então tudo bem. Até lá".

Deve ser uma madame, pensei enquanto batia a cinza do cigarro no cinzeiro, dando um longo bocejo. Ainda sentia vontade de dormir, mas tinha coisas a fazer. Meu apartamento estava escuro, ouvia os carros do lado de fora, e sentia ainda mais vontade de dormir. Especialistas- médicos, psicólogos e demais curandeiros- afirmam que o desejo excessivo de dormir é um sintoma de depressão frequente em pessoas com tendências ao suicídio. Tudo bem, não há nada de muito agradável no mundo. A Bíblia ou qualquer filósofo morto há mais de um século que tivesse um pouco de visão- obrigação essencial em qualquer filósofo- já preconizavam que esse seria um século opressor para todas as almas. Eu mesmo repudio o mundo como um todo. Tenho nojo desse apartamento velho, de ficar mergulhado nessa penumbra, sempre entorpecido de ansiolíticos ou conhaque, dia após dia, ouvindo o som interminável dos carros lá fora, deitado na cama até ganhar coragem para levantar, acender as luzes e fazer alguma coisa. Mas o suicídio é impensável para mim. Um homem sem esperanças é um homem livre, e um homem livre é normalmente um homem atormentado pela falta de esperança, que vive uma vida inconsequente e paga um preço alto e constante, por isso, logo, não é livre coisa nenhuma. Ah, não há saída, pensei, enquanto me desvencilhava dos cobertores e levantava, sentindo dores de todos os tipos em todas as partes do meu ser.

Tomei um banho quente e longo- outra característica peculiar dos suicidas- , depois me vesti e saí. O apartamento estava uma zona, mas não tenho paciência nem tempo pra limpar o lugar. Uma vez tive a imprudência- ou melhor, a burrice de contratar uma diarista. Pagava o triplo do que normalmente se paga pra esse tipo de serviçal. Apenas pedi: não toque naquele armário em frente à janela (sim, eu tenho um armário que deixo em frente à janela, pela falta de espaço do quarto e também porque serve para bloquear a luz do dia). E assim foi, por dois dias. Estava gostando da moça. No terceiro dia, ela apareceu e como de hábito, deixei o cheque e saí, para como sempre, retornar somente quando ela tivesse ido embora. Porém, à guisa de teste, não deixei o armário trancado. Voltei vinte minutos depois. Não deu outra; a puta mexia nas minhas coisas- minhas fotos, diários de rotina de trabalho, nas minhas ferramentas. Ah! Não se pode confiar em ninguém! Ela me olhou com pavor, tremia, os olhos vítreos, como o de um toxicômano. Segurei ela pelo pescoço com ambas as mãos, até ela cair.

Jamais havia matado alguém por asfixia. Como me livrei do corpo é outra história.

Meu carro é um fusca verde,pelo menos nessa semana. Sempre vivo trocando de carros, em diversas oficinas de bairro. Desmanches. Meu ofício não me permite permanecer com o mesmo veículo por muito tempo. Então, a cada trabalho realizado preciso de um carro novo. Isso era um problema no começo. Mas depois de conhecer as pessoas certas, afinal, ficou mole barganhar, e portanto, há muito tempo conseguir um carro à preço de banana, bom o bastante para rodar sem me deixar no meio do caminho deixou de ser um problema.

Dou partida no fusca e saio da garagem. Ao passar pela portaria, o porteiro na guarita acena, sorrindo. Ele aqui é o único que sabe do meu ramo de trabalho. Vira e mexe dou alguma grana pra ele pra que não abra a boca sobre meus negócios. Ele diz ao povo do prédio que trabalho negociando carros, que represento empresas que tem veículo próprio, coisas assim, por isso sempre estou dirigindo um carro diferente. Faz um bom trabalho, pois aqui ninguém jamais sequer me dirigiu um olhar suspicaz.

Estou dirigindo, vagarosamente, como sempre ouvindo música- meus carros tem que ter som. É um item imprescindível. Blues, funky, jazz, sempre música desse naipe. Cruzo uma rotatória, um grande painel indica que tenho vinte minutos pra chegar na casa da minha cliente. Dirijo de vagar, poderia chegar lá em dez. Puxo uma garrafa de conhaque debaixo do banco, dou um longo gole, e de repente me ocorre que não há nada melhor do que a sensação de saber que se tem tempo de sobra para se chegar ao seu destino. E constato que raramente ando tendo boas sensações, então diminuo ainda mais a velocidade e deixo a música negra me invadir.

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Às vinte e três paro em frente a casa. Uma casa de madame, aparentemente sem vizinhança próxima, como eu havia presumido. Desço do carro, aperto a campainha, um portão elétrico se abre e eu entro. A porta está aberta, posso adivinhar, mas mesmo assim bato.

"Entre", vem a voz lá de dentro, voz de soprano, parecendo de uma mulher entre quarenta e cinquenta anos, bêbada. Abro a porta e entro. Deitada num sofá está ela, com um copo na mão, quase bonita, com cabelos castanhos ondulados, muito bem tingidos. Quarenta e cinco anos no máximo. Mais uma vez eu estava certo.

"Vamos, rápido".

"E o dinheiro, senhora?"

"Ali, naquele envelope", ela aponta, indicando com uma das mãos um sofá defronte para o dela, revelando o seio direito por debaixo do roupão, que na semi-escuridão do quarto parece ainda bonito. Pego o envelope, abro e confiro. Tudo certo.

Ela já está nua, me observa enquanto tiro a roupa. Logo que termino de me despir, ela pede-me para ligar um rádio, num canto da sala. Vou até lá, e dou o play. Subo por cima e começamos. Passa um minuto ou mais, e então a peruca dela cai, indo parar no chão. Deixo de penetrá-la e saio de cima dela para juntar a peruca, mas ela me puxa de novo, com gemidos de protesto. A música porcaria de amor está no que parece ser seu ápice, e é nesse momento que ela goza. Saio de cima dela, apanho minhas roupas, e estou começando a me vestir quando ela diz, "Agora, por favor!".

Está chorando.

Eu sempre prefiro encerrar meu trabalho vestido.

Mas o cliente, afinal de contas, sempre tem razão.

"Tudo bem, não vai doer nada. Está pronta?"

Ela respira, arfante, e depois de uns segundos, finalmente responde, "Estou pronta".

Pego a pistola de dentro do bolso interno do meu jaquetão jogado no outro sofá, e quando me volto, encontro ela deitada com um dos braços em frente aos olhos e o outro com a mão tapando a vulva, como se fosse uma modelo pousando para um pintor. Chego mais perto. Antes, por garantia, aumento o rádio. Uma mera precaução, uso um silenciador que não acordaria nem o sujeito com o sono mais leve que se possa pensar.

Três tiros na cabeça, a menos de um metro de distância. Trabalho encerrado. Pego o envelope com meus honorários e deixo a casa.

Dirigindo de volta o meu fusca verde, novamente bebo meu conhaque batizado com ansiolítico, ouvindo Magic Slim, e pensando em qual será a cor do meu próximo carro.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 05/06/2017
Reeditado em 08/11/2018
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