Manhã de inverno

A mulher veio correndo em minha direção.

Uma senhora já.

No meio da forte neblina pude ver o corpo magro, gesticulando e vindo até mim.

Fiquei na dúvida. Espero ou apresso o passo?

Àquela hora da manhã, um frio daquele, o que alguém ia querer comigo?

Segui.

Pernas e braços congelados pelo frio. Mal conseguia abrir a boca arroxeada.

A mulher não parou.

O que ela queria? Comecei ficar apreensivo.

Teria me reconhecido de alguma situação?

Estaria me confundindo com algum amigo ou familiar?

Descartei a segunda hipótese.

Duvido que uma senhora de bem fosse ter um parente ou conhecido como eu.

E ela parecia alguém de bem.

Não devia ser rica, porém demonstrava ser uma pessoa que não vivia mergulhada em todo tipo de miséria, como eu.

Se viesse com pregação de evangelho ia “ter o dela”.

Eu não estava nem um pouco interessado em proposta de salvação, amor de Jesus e outras coisas que as igrejas ensinam e ninguém aprende.

Sempre a mesma frase: Jesus te ama.

Ama nada.

Se é que amou algum dia, faz tempo. Foi antes que eu nascesse.

Depois foi só desgraça.

Nem entendo o que ainda estou fazendo em cima dessa terra ou porque gente como eu tem que nascer.

Olhe pra mim. Quase congelando de tanto frio. Andando de um lado para outro, esperando a “loja” do Fernando abrir.

O dinheiro que poderia levar pra casa, comprar um leite para meu filho, vai ficar na loja.

Não bastasse o frio agora tem a fome .

Podia ir à casa da minha avó, ela não me negaria um prato de comida, mas ainda tenho vergonha na cara.

Não vou tirar o pouco que ela tem.

Por que é que o Fernando não abre logo?

Certamente passou a noite vendendo, tá “forrado” no dinheiro e eu aqui.

Fome. Frio.. A mulher no meu encalço.

Se vier com graça “meto o louco” nela agora mesmo.

Neblina. Pouca gente na rua. Vai ser fácil.

Pra deixar de ser besta e ficar seguindo os outros.

Vai ver quer que eu faça algum serviço pra ela.

Está me vendo assim, desorientado, quer me ajudar.

Conheço este tipo de ajuda.

“Limpa minha calçada que te dou um prato de comida.”

“Carrega meu entulho e te pago um corote de cachaça”.

Não quero sua comida nem sua cachaça.

Já esperei muita coisa de gente como ela ou com melhores condições.

Já quis ter pai, mãe, escola, emprego, casa, carro.

Um dia desejei tudo isso.

Hoje eu só quero que o Fernando abra a “loja”.

Ele me vende fiado, depois dou um jeito de pagar.

Quem sabe resolvo isso agora mesmo?

Nada. A velha não tem cara de quem carrega algo de valor.

Só se for um dente.

Antigamente as pessoas usavam dente de ouro.

Então, vou ter que matar a mulher pra arrancar.

Coitada.

Penso na minha avó. Velhinha, só caco na boca.

Criou os netos como pôde.

Não salvou nenhum.

Minha avó merecia isso?

Meu filho merece ter um pai assim?

A mulher parou.

Deve ter cansado, mas continuou acenando, me chamando com as mãos.

O que ela quer?

Será que está caduca? Não reconhece mais a maldade?

Ela não vê que sou um sujeito perigoso? Não percebe que estou à margem do mundo em que ela vive?

Que cidadão de bem se aproximaria de mim?

Quem deixaria o conforto de sua casa, numa manhã de inverno, para me perseguir?

Ela não parecia tão velha pra ser “coroca”.

Tudo bem que diz o ditado que “preto quando pinta já tem mais de cento e trinta”.

Ainda assim.

Deve ter uns sessenta anos, posso ver agora que parte da neblina está se dissipando.

Os cabelos crespos sem fios brancos .

Ela me aponta o volume que tem em um dos braços.

Caramba, o que esta velha está armando?

Se vier com graça, acerto ela com uma pedra mesmo.

Já disse que não tenho nada a perder.

O menino sem pai, sem mãe, aquele que, um dia, já foi o prodígio na escola vai aparecer na página policial.

Esqueço minha avó e arrebento a velha na pedrada.

Vou esperar e descobrir qual é .

Talvez tenha um celular no bolso. Quem é que não tem hoje em dia?

Se ela tiver, tomo e troco com o Fernando.

Poupo os dentes da velha.

Ela se aproxima devagar. Acho que recuperou o fôlego.

Protege o volume com os braços magros.

Nem consigo me mexer de tanto frio.

O arroxeado da boca está passando para braços e pernas.

Um dia eu sonhei ter uma casa bonita, que me protegesse nos dias de frio, chuva, calor.

Formaria uma linda família e minha avó teria o conforto que sempre foi negado a ela.

Exerceria uma profissão com dignidade e ninguém iria me propôr arrancar grama da calçada com as mãos, em troca de comida.

Eu seria um exemplo para os irmãos menores.

Meu filho se orgulharia de mim.

No momento eu só tenho dois desejos.

Quero desvendar o mistério da velha e que a “loja” do Fernando comece a vender.

Só isso.

A mulher se aproxima.

Não dou margem para empatia.

Fico sério, tento intimidá-la com os olhos.

Ela sorri e pergunta:

-Meu filho, você não está com frio?

Fico sem resposta.

Ela estende a sacola que tem no braço.

-Veste esta calça e esta blusa. Tem meias também .Eram do meu menino, porém estão novas. Se não se agasalhar pode apanhar uma pneumonia.

Peguei a sacola, a mulher não esperou resposta nem agradecimento, virou as costas e se foi.

Olhei lá dentro, junto com as roupas encontrei pão e uma garrafa com leite.

Procurei um canto para me vestir, sentei na calçada e me alimentei.

Mulher louca, ela não sabe que eu sou a escória da sociedade e um dia ela ou um de seus familiares podem ser minhas vítimas?

Outra vez, me perguntei por que é que gente como eu nasce e continua viva.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 03/06/2017
Reeditado em 03/06/2017
Código do texto: T6017551
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