BLASÉ
 

 

Sete horas da manhã de uma terça-feira. A rua do bairro residencial estava quieta e vazia, mas aos poucos a maré densa da rotina se sobrepunha, trazendo consigo o barulho de portas se abrindo e fechando, carros arrancando, bebês chorando. A cidade se levantava vagarosamente, após uma noite mal dormida.

 

Mariana era mais uma nessa multidão. Acordava às seis e meia para às sete e pouquinho pegar o coletivo. Professora da rede de ensino local, ministrava aulas de gramática aos alunos do curso básico. Tinha trinta e nove anos, era divorciada e mãe de uma filha de doze, Eloá. Viviam juntas. O pai havia se mudado há muito tempo e nunca mais aparecera, embora ainda depositasse a pensão.

 

Naquela manhã, como habitualmente fazia, Mariana deixou a filha sozinha aos próprios cuidados. Havia educado bem a menina, que já era uma mocinha bastante independente. Mesmo assim, ainda a mantinha debaixo de suas asas, pois não queria que sofresse o que ela sofreu, isto é, que se perdesse sob o jugo de um homem. Severa na educação da filha, ditava as regras como um general.

 

Após tomar rápido café da manhã, escovou os dentes, recolheu sua bolsa e dirigiu-se apressada à saída. Desceu as escadas do pequeno edifício quase em marcha, como que indo para a guerra. A mente divagava longe nos afazeres da escola: as pestes que tinha que educar, o convívio com a austera diretora, o trato com as colegas fofoqueiras... Por isso, ao deixar o condomínio, quase não reparou o homem que estava do outro lado da rua. 

 

Era um cara alto, barbudo e de compleição forte, muito bem-vestido. Fumava um cigarro, encostado num carro velho, quase caindo aos pedaços. Sua vista estava encoberta por óculos escuros, os quais lhe emprestavam uma feição dúbia, misteriosa.

 

A incauta professora, a princípio, não o notou ao abrir o portão de saída. Mas a figura era tão exótica que não pôde desviar o olhar. Fitou-o por alguns segundos, sem entender. O homem, porém, não esboçou qualquer reação, mantendo-se sereno em seu vício. Apenas esperava... ou olhava para ela? Não era possível dizer. Os óculos ocultavam suas pretensões. Mariana achou aquilo muito esquisito, mas deu de ombros e continuou sua caminhada ao ponto de ônibus.

 

Como sempre fazia, ministrou aulas aos alunos do ensino fundamental de manhã e à tarde. Às terças, também aplicava o supletivo noturno. Chegava em casa apenas às onze horas, exausta, sem disposição alguma. Por isso, quando passou pela rua deserta, não percebeu que o carro continuava lá.

 

* * *

 

No dia seguinte, vezeira, Mariana saiu de seu prédio às sete horas. Quando atravessou o pórtico e virou-se para a rua, um choque: lá estava o mesmo sujeito do dia anterior, parado, de óculos escuros, trajando roupas sociais, fumando encostado em um muro. O velho automóvel estava estacionado próximo a ele.

 

“Meu Deus! Quem é esse cara? O que será que ele está fazendo?”, pensou ela. Encarou o homem num relance. A mesma feição blasé. Parecia olhar para ela, ao mesmo tempo que parecia olhar para o nada. Não dava para saber.

 

De súbito, sentiu medo. Medo do desconhecido. Medo do imprevisto. Medo de que aquele homem fizesse algo com ela e com sua filha. Medo de sua aparência sinistra e do fato de que vivia naquele local há mais de vinte anos e nunca havia visto o sujeito.

 

Continuou a caminhada para o ponto de ônibus, sem olhar para trás. Apressou o passo. Sentou-se no banco do pequeno terminal, inquieta. Os outros passageiros que ali estavam não notaram sua ansiedade. Trêmula, sacou o celular e enviou uma mensagem para Eloá, pedindo para ter cuidado. O medo irracional contaminava seus pensamentos.

 

Durante o resto do dia, a visão do homem fumando próximo ao carro velho não saiu de sua cabeça. Tentou raciocinar um pouco: talvez fosse um parente do Seu Fabrício, o vizinho da frente, cuja calçada fora invadida pelo barbudo. Não conhecia a família do Seu Fabrício, mas deveria ser isso. Só poderia ser isso! Sim, um parente, nada mais. Deveria fazer companhia para o velho, já que ele aposentara havia alguns meses.

 

Ao voltar mais cedo para casa naquela quarta, já que não havia supletivo noturno, Mariana sentia-se um pouco mais calma, embora tivesse tido enorme dificuldade em aplicar gramática aos estudantes durante a tarde. O medo lhe cobrara caro. Ainda assim, mantinha-se convicta de que aquele homem deveria ser apenas um parente do Seu Fabrício, nada mais, e que, tão logo acabasse a visita, ele sairia dali. Era a sua esperança, o seu consolo. 

 

No entanto, ao chegar à alameda, lá estava o carcomido veículo, tal qual um monumento macabro, uma homenagem à sua miséria. Teve calafrios pavorosos diante da sinistra geringonça. Pensamentos loucos atravessaram a sua mente, como se fossem seres rastejantes que se encaminham para o bote. Imaginava que sua filha corria perigo, que havia sido raptada pelo maníaco, que estava sendo violada por ele!

 

Uma torrente gélida desceu sua espinha. Com um grito, correu até a entrada do prédio e trancou o portão grosseiramente. Subiu as escadas numa carreira insana e, irrompendo no pequeno apartamento, deu com a sua filha assistindo à televisão.

 

– Mãe?! Você está bem?

 

A menina mirava apreensiva a genitora, que, pálida e ofegante, com os olhos saltando as órbitas, assemelhava-se a uma adicta, uma louca. Nesse momento, porém, num gesto de alívio, Mariana agarrou a filha e beijou-a compulsivamente, sem dizer palavra alguma.  

 

* * *

 

A semana passou e, em todos os dias, rigorosamente às sete da manhã, Mariana encontrava o sujeito mal-encarado na porta de seu prédio. Em todas as ocasiões, ele parecia fitar a mulher. Em todas as vezes, ele estava fumando, ora encostado no carro, ora na cerca-viva da casa de Seu Fabrício.

 

No sábado à tarde, Mariana, apreensiva e desesperada, decidiu ligar para o senhor de idade visando esclarecimentos. Ninguém atendeu. Ligou para outros vizinhos, mas todos desconheciam o sujeito. O pior: somente ela tinha visto o homem barbado, fumante e de roupas ecléticas. As pessoas que moravam na rua simplesmente ignoravam a sua presença.

 

Na segunda-feira da semana seguinte, Mariana queria não ter acordado. Eram seis e quarenta, ela havia dormido mal e estava atrasada. Uma noite de sonhos obscuros envolvendo o barbudo mal-encarado, o qual mais parecia um espírito onipresente, vigiando todos os seus afazeres e colocando vermes em sua mente. Não, não poderia deixá-lo tomar conta! Por favor, não!

 

Tomou um café frio, lavou o rosto no banheiro, vestiu sua roupa e pegou os pertences. Atabalhoadamente, desceu as escadas do edifício e apertou o interruptor de saída. Deslocou o portão com cuidado e olhou pela abertura.

 

O homem barbado lá estava, como de costume, fumando. Vestia um terno cinza. Mariana gelou. Ficou parada vários minutos, observando. Ele parecia retribuir sua encarada, mas os óculos escuros não permitiam uma conclusão certeira. Palpitando e tremendo, ela decidiu sair. Fechou o portão bruscamente e disparou desesperada rua afora.

 

Naquele dia, não conseguiu trabalhar. Teve náusea e cólica. Pediu à diretora do colégio para não dar aula e voltou para casa mais cedo. O homem não estava lá, somente o carro antigo.

 

* * *

 

Acordou resoluta na manhã seguinte, às seis horas. Tomou banho, preparou o café. Alimentou-se, vestiu-se e saiu. Eram quinze para as sete. O automóvel não havia chegado ainda, mas transcorreram apenas quatro minutos para que Mariana o visse, dirigindo-se vagarosamente até o estacionamento rotineiro. Ela estava esperando, sentada junto à soleira do portão de seu prédio.

 

Assim que parou o carro, o barbado saiu, fechou a porta num movimento rápido e encostou-se na lateral. Tirou um isqueiro e um cigarro do bolso. Acendeu-o tranquilo, com o mesmo desinteresse de sempre. Um procedimento repetido à exaustão, metodicamente, todo santo dia, no mesmo horário, no mesmo local. A fisionomia indiferente e alheia do restante do mundo encerrava a cena.

 

Mariana, então, levantou-se e foi caminhando a passos largos em direção àquele indivíduo. Parou a poucos centímetros dele e, com o dedo em riste, apontando para o seu rosto, berrou:

 

– Escuta aqui, seu cretino! Não sei quem é você nem o que você quer, mas fique longe de mim e da minha filha! Ouviu? Seu pervertido!

 

O escândalo reverberou pela rua e algumas pessoas puseram a cabeça para fora da janela. Mariana estava imóvel, o corpo retesado de raiva, ainda com o dedo apontado para o nariz daquele sujeito. Mas o homem não alterou um milímetro sequer do semblante. O mesmo blasé de sempre. Alguns segundos se passaram e Mariana se perguntava se ele tinha algum transtorno mental. Até que lentamente levantou a mão em que estava o cigarro e, sem demonstrar qualquer emoção, deu um trago. Aspirou a nicotina e soltou uma baforada no rosto da mulher.

 

Mariana gritou, furiosa. Num gesto rude, ameaçou um tapa. O sujeito, porém, não se moveu, nem disse coisa alguma. Apenas fitava a professora com seus óculos escuros. Ela espumava de raiva, praguejando de todas as formas contra aquele homem. Soltou o verbo e não economizou no vocabulário. Ainda assim, ele permanecia imóvel, pleno de si.

 

– Quem é você, seu filho da puta?!

 

A resposta, mais uma vez, foi o silêncio.

 

Transtornada com aquela apatia, Mariana gemeu e disparou pela alameda, chorando acintosamente. Andou a esmo pela cidade durante horas, incontinente. Seus sentimentos não faziam sentido. Por que sentia tanta raiva daquele cara? O que ele tinha feito? No entanto, lá estava ele, uma figura ameaçadora, revestida de sombras, que, quando se revelava, era como um leão à caça de si e de sua filha, mirando-as sem qualquer pudor. Ao menos, é o que ela imaginava. A dubiedade da visão do homem a deixava louca.

 

As trevas já tomavam as ruas quando Mariana voltou para casa. Trancou-se no quarto e continuou com a choradeira pavorosa, a qual reverberava pelo apartamento. A noite se abatia sobre ela, e seu estado doentio só piorava, em meio a escândalos homéricos.

 

Eloá, desesperada com a situação patética da mãe, foi capturada por emoções estranhas e contraditórias. Ao passo que se sentia impotente e indefesa, além de condoer-se pela genitora, também era preenchida por indignação, raiva e impaciência.  Desconhecia o motivo daquela situação e isso, aliado à lamúria arrepiante, trazia-lhe a mais abjeta repulsa.

 

Mariana, com sua personalidade altiva e sistemática, ergueu muralhas entre si e Eloá; muralhas feitas de regras, preconceitos e crenças há muito arraigadas, de forma que a menina passou a projetar os ressentimentos sobre a mãe, embora esta estivesse desamparada e entregue aos mais profundos abismos de irracionalidade.

 

Ao raiar do sol, após passar a noite em claro, Mariana verificou se a menina dormia. Sim, Eloá, lá pelas tantas da madrugada, exausta da choradeira, desabara sobre a cama e adormecera. A professora, então, foi até a cozinha e retirou uma faca da gaveta. Tomada pela cólera cega e irracional, desatinou pelas escadas do prédio, correu para a rua e, tremendo, pôs-se a espreitar por entre a sebe do Seu Fabrício. Sua visão foi tomada de uma neblina rubra que obscurecia qualquer vestígio de sanidade. Tudo o que queria era ver-se livre do indivíduo asqueroso que lhe assaltava a mente.

 

No horário costumeiro, o homem chegou, estacionando a poucos metros de distância da mulher. Deixou impassível o automóvel, olhando para os lados, mas não a viu, porquanto devidamente escondida em meio aos arbustos da cerca-viva. Desta vez, o sujeito estava deveras elegante. Vestia um terno creme e sapatos marrons lustrados, além do famigerado par de óculos escuros.

 

Mariana captou a oportunidade quando ele se distraiu com o maço de cigarros. Uma fúria sanguinária subiu à sua cabeça, enquanto afastava com cuidado as plantas, caminhando na direção do indivíduo. Não mais via um homem, mas sim um demônio a ser precipitado no inferno, um ser desprezível que, com suas baforadas arrogantes, tomava-lhe tudo silenciosamente.

 

Sorrateira, avançou pelas costas do barbudo, erguendo a faca. Quando estava na iminência de atingi-lo, ele, com o canto do olho, percebeu o movimento. Virou-se bruscamente e, num bote ferino, golpeou-a na face. A força descomunal da pancada levou a mulher ao solo, atordoada. A lâmina voou longe. Antes que pudesse reagir, o fulano já estava em cima dela, agarrando-a pelo braço e torcendo-o para as costas. Colocou-a de bruços no asfalto e pôs o joelho em cima de seu corpo. 

 

– Seu maníaco desgraçado! Vou te matar! Nunca chegue perto da minha filha!

 

Mariana proferia um berreiro descomunal, de modo que alguns passantes já se avolumavam por perto. Contendo a mulher possessa com o próprio peso, sufocando-a, o homem esperou que ela ficasse inconsciente para, então, entrar no carro e dar o fora dali, antes que qualquer pessoa se aproximasse.

 

Minutos depois, aparecia uma viatura, que se punha no meio do círculo de curiosos, os quais observavam incrédulos a professora desmaiada. Alguém ligara para a polícia. Aliás, Seu Fabrício o tinha feito. Afinal, havia acordado cedo e dera de cara com uma louca agachada no meio do seu jardim. Quando enfim despertou, Mariana estava em surto, atacando todos os presentes, inclusive os policiais.

 

– Idiotas! Estúpidos! Ignorantes! Por que não foram atrás daquele bandido?!

 

A fúria era tamanha que ela investiu contra os agentes, possessa, fora de si. Esbravejava, xingava, dizia que sua filha estava em perigo. A cena era de uma patética lamúria que envergonhou os vizinhos e a própria Eloá, a qual, tendo acordado com o clamor da rua, a tudo acompanhava de sua janela, transtornada.

 

– Não encostem em mim! – Mariana berrava e esperneava, enquanto era conduzida ao camburão.

 

Enfim contida, os investigadores puderam colher depoimentos das testemunhas; contudo, os relatos eram desencontrados: uma gritaria medonha na rua, uma mulher correndo com uma faca, o desmaio, e... ninguém havia visto o barbudo de terno, para desespero da encarcerada.

 

Tudo parecia surreal, de outro mundo. O homem simplesmente sumira. Como foi possível? Mariana sentira o peso de seu corpo, o cheiro de cigarro, a textura do terno de linho. E ele simplesmente evaporou! Um homem daquele tamanho! Ela havia negligenciado a esperteza do fulano...

 

Depois do ocorrido, Mariana ficou algumas horas no xadrez por desacato. O delegado, farto da gritaria, encaminhou-a para a psicóloga e engavetou o caso. Negou-se a investigar as alegações da mulher, de que era perseguida por um maníaco, pois não foi com a cara dela. 

 

Solta, a vida de Mariana transformou-se inteiramente. A personalidade de generala havia cedido à de um ser disforme, doente e inútil, que tinha acessos de fúria e dependia de remédios. No fim, foi internada em uma instituição psiquiátrica. Eloá mudou-se logo após, abandonando-a. Foi morar com o pai, agora não mais ausente.

 

O barbudo elegante, por sua vez, nunca mais foi visto.

LS Boynard
Enviado por LS Boynard em 18/05/2017
Reeditado em 26/11/2024
Código do texto: T6002954
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