Cabeça de Mulher.
 
Após oito badaladas do relógio de parede, Jean Sylvie Daphné da Cunha chegou em casa, passou pelo portãozinho, caminhou pouco, o suficiente para chegar até o vaso de samambaia que fica ao lado da porta. Correu a mão por debaixo do vaso e pegou a chave, abriu a porta de casa. Quem sai por último, deixa a chave por debaixo do vaso.

Jean Sylvie entrou na casa escura e abafada. A casa estava fechada deste de manhã bem cedinho, o calor durante o dia foi intenso, o ar muito seco, o mormaço estava insuportável e os ventos de pouca monta.

Com muita prudência, entrou tateando a parede até chegar ao interruptor, não demorou para alcançá-lo. Não é propriamente um excesso de cautela, mas devido a um trauma na adolescência, havia caído ao andar numa sala escura: machucou o queixo, o cotovelo direito e teve um corte profundo no ombro.  Jean se tornou precavido e ressabiado ao adentrar em qualquer lugar escuro.

Ao ligar o interruptor, a luz da sala alumiou boa parte da cozinha também.  Retrocedeu um pouco para fechar a porta da sala e seguiu direto para a cozinha com o embrulho que trazia debaixo do braço esquerdo. Já dentro da cozinha, ao ligar o interruptor, fez se a luz. A claridade era perfeita, via até a própria sombra deslizar pelo chão, às vezes, vagava pelas paredes da cozinha quando se movia.

Tirou tudo de dentro do pacote: chou-chinois, chou rouge, pomme de terre, céleri, endive, mâche e topinambour. Conferiu um por um. Limpou-os bem e guardou-os. Jean Daphné tem boas habilidades na culinária francesa, porém, prefere deixar para seu amorzinho fazer, ou que ela decida quando fazer.

Lavou as mãos, enxugou-as num pedaço de papel toalha e seguiu para a sala. Sentou no sofá, tirou primeiro a camisa úmida de transpiração, em seguida se livrou da camiseta branca, quase molhada de suor. Tirou os sapatos, as meias e por fim, arremessou a calça para um lugar ignorado na sala.
Espreguiçou no sofá sem a menor preocupação.  O tecido grosso do sofá absorveu todo a transpiração que escorria das costas, sentiu- se confortável. Cochilou como uma criancinha imaculada.

As nove badaladas do relógio de parede, não lhe trouxe para a realidade, agonizava em pesadelos. Após as dez badaladas do relógio, sua tormenta estava entre o céu e a terra.

Charlotte Aimee Desiré da Cunha chegou as dez e vinte e cinco no portão da casa, passou pelo portão e deu meia volta o suficiente para trancar o portãozinho feito de bambu com corda de bacalhau.

Charlotte foi direto até o vaso, mas as chaves não se encontravam no local combinado com o seu esposo. Foi até a porta e girou a maçaneta banhada em um metal barato que reluzia como ouro. A lingueta da fechadura destravou e a porta abriu.

A porta deveria estar trancada a chaves, era um acordo que se tornou um hábito do casal.  Charlotte levou a mão à maçaneta por instinto, apenas para confirmar que a porta estava trancada e não destravada. Ficou surpreendida com o fato, entrementes, relevou, serenou os ânimos e adentrou a casa. A luz da sala estava alumiando todo o cômodo, assim como toda alumiada estava a cozinha.

Charlotte Aimee Desiré é uma mulher já madura, casou aos 29 anos de idade, de hábitos simples e despretensiosa, todavia, muito atenta a tudo que se passa a sua volta e tem um ótimo ouvido. Caminha devagar, mas seus passos são firmes. Suas mãos estão sempre ocupadas. Quando sai de casa, sempre mantem as duas mãos segurando uma bolsinha que lembra uma nécessaire Océane de cor salmão.

O seu pai era um nordestino de João Pessoa da Paraíba, homem de baixa estatura, pele queimada, mãos pequenas e pernas curtas. Trabalhava muito e falava pouco, sempre espiava as pessoas e as coisas de soslaio, com os olhos cobertos pela aba de seu chapéu de couro.

Sua mãe, era uma francesinha que chegou ao Brasil com seus male male dezessete anos de idade.  Saiu de Antibes, cidade do interior da França. Era uma mulher calma, mas discutia constantemente com o marido.  Ele só espiava, escondido debaixo do chapéu de couro, escondia risinho baixinho de deboche dela.

Charlotte Aimee Desiré da Cunha, entrou na sala e observou as peças de roupas do marido espalhadas pela sala.  Olhou uma a uma, não as tirou do lugar, retrocedeu quatro passos, trancou a porta e girou a chave três vezes. Agora que a porta da sala estava fechada, viajou até a cozinha: havia pedaços de papel toalha dentro da pia, corria um fio d’água da torneira, sobras de legumes espalhados pela mesa, pia e no chão.

Os talheres do café da manhã estavam sobre a mesinha de centro, haviam pedaços de pão, a manteiga de leite estava toda derretida, uma caixa de leite, sobras de café nos copos e na cafeteira. A espátula de passar manteiga estava sobre o assento de algodão da cadeira. Havia também, um ovo cozido e um exército de formigas dominando duas bananas da terra cozidas em um prato de plástico amarelo.

As badaladas do relógio ecoaram pela casa, já eram onze horas da noite. Charlotte Aimee Desiré da Cunha seguiu para a sala, sentou em uma poltrona de couro vermelho, descansou os braços em suas pernas. Não tirou o seu chapéu Floppy preferido, de cor grená com fita azul.

Sentada de frente para seu marido, a princípio, o observou muito rapidamente. Tirou os olhos dele e fixou o olhar no teto. Lembrou: por ele estar bem acima do peso ideal, roncava bastante e alto, mas hoje, naquele momento não estava roncando.

Com a vista fixa no teto, lembrou de quando o conheceu. Foi num final de tarde, estava sentada no banco da praça da Liberdade, olhava para um livro de Stendhal, mas não estava lendo, nem corria os olhos pelas páginas, apenas segurava, com os olhos presos numa figura. A figura de nada valia, não significava nada, apenas olhava, seus pensamentos vagueavam de um ponto a outro no infinito.

Era um mancebo, para sua idade era muito sofisticado! Conhecia bons livros, boas peças de teatro, cinema e redigia até bem. Falava pouco, mas quando falava era muito claro, muito direto nas respostas e nas opiniões. Ele não gostava de falar ‘eu acho’, mas ‘eu acredito’. Dizia que quem diz, eu acho, é por que não tem opinião formada com fundamentos, assim sendo, ele acreditava que não deveria se manifestar sobre nada que não tivesse um conhecimento mínimo do assunto.

Charlotte Aimee Desiré da Cunha resolveu se levantar, não olhou para Jean Sylvie Daphné da Cunha. Seu rosto já começava a avermelhar, uma dificuldade de respirar lhe incomodava. Com as duas mãos no rosto, levantou passivamente. Ao dar três passos, passou por cima da calça, logo depois por cima da camisa, em seguida pisou na camiseta com duas manchas amarelas debaixo da manga e no último passo, antes de penetrar no quarto, passou por cima da meia branca furada no calcanhar.

Seguiu direto para o quarto, se despiu, colocou as roupas no cesto de roupas sujas, seguiu para o banheiro. Se banhou em água fria, usou seu sabonete Dermacyd Neutralize preferido, não lavou os cabelos. Deixava a água escorrer pelo pescoço, com os olhos fechados. A água fria arrefeceu seu humor e acabou perdendo a noção do tempo.

Com os olhos selados, fechou a torneira feita em material que imita marfim, esperou todas as gotas deslizarem até os pés. Abriu o box de vidro blindex de cor fumê, estendeu o braço direito e sua mão alcançou a toalha de banho.

Seguiu direto para o closet, vestiu roupas leves, retornou para o banheiro, escovou seus longos cabelos, amarrou-os bem. Olhou firmemente no espelho. O brilho dos seus olhos fundiam com o brilho do espelho e de águas estancadas nos olhos.

Não tardou muito, caminhou direto para o quarto, sentou na cama em cima da perna esquerda dobrada, cruzou os braços e falou firme e com o timbre da voz intenso.

-- Jean Sylvie Daphné, nós precisamos conversar! Precisamos rever essas suas atitudes dentro de casa. Faça o seguinte, pegue essas roupas na sala e coloque-as no lugar certo. Vá tomar banho! Eu vou te esperar, não podemos adiar mais essa conversa, vai ter que ser hoje! Você está me ouvindo?

Jean Daphné não falou sequer uma palavra, não moveu um milímetro do lugar, do jeito que ela o encontrou no sofá, ele permanecia.

A mãe de Jean era sulista, seus avós eram poloneses, entrementes, antes de seus avós virem para o Brasil, moraram doze anos em Montpellier na França. Jean foi muito bem-educado pelos pais, estudou em boas escolas e se tornou um excelente aluno de francês. Formou em Letras e especializou na língua francesa.

Charlotte Aimee ficou esperando a resposta do marido, como ele ficou calado, Aimee foi até a porta do quarto, esticou o pescoço e viu que ele continuava como dantes. Deitado no sofá com o rosto virado para o lado do encosto.

No quarto a luz do abajur estava acessa, a penumbra estava pesada, Aimee sentou na cama, não ficou abatida ou acabrunhada pelo fato do marido não lhe dar a menor atenção. Mas sentiu-se um pouco desrespeitada. Sentou na cama, recostou na cabeceira, voltou a falar com o marido:

-- Jean meu filho! Você vai ou não vai aluir desse sofá? Essa sua teimosia já está me dando nos nervosos! Seu indecente.
O silêncio reinava absoluto quando Charlotte ficava quieta, dava-se a impressão de que a casa ficava até maior!

-- Eu lhe conheço bem, seu espertinho! pensa que vai me cansar fazendo eu lhe esperar? Ou espera que eu me zangue e durma falando sozinha né? Negativo meu bem! Lembro muito bem da última vez que me fez dormir chorando de raiva,  seu insensível. Desta vez não bonitão!

O tempo foi passando e da sala só se ouvia a algazarra da calmaria com a quietude. Era tão mórbido que o ambiente se tornou um salão de dança para as almas penadas.

-- Eu lembro muito bem, seu engraçadinho, quando você me insultou, dizendo que eu não te amava. Falou isso para me fazer sofrer, ficar preocupada. Até o dia em que peguei você, seu cretino, fazendo piadas do meu sofrimento com seus colegas, aqueles sem-vergonha. Lembra, né? Quando fizemos um churrasquinho aqui em casa, você trouxe alguns colegas de boteco outros da firma com suas esposas.

-- Lembro muito bem sim! Uma de suas palhaçadas, no natal, foi só você beber um pouquinho e começou com suas gracinhas, lembra o que você dizia? “Sogra quando morre, a gente tem que enterrá-la de barriga para baixo, porque se ela acordar, vai começar a cavar, aí ela vai cada vez mais para o fundo. ” Depois olhava para mim e caia na rizada. Jean! Você é ridículo sabia?

Conforme o tempo foi passando, Charlotte Aimee foi se sentindo ignorada. A ideia de estar sozinha em casa, começou a entrar na mente dela.

Escorregou na cama e ficou deitada de lado, com as pernas encolhidas, juntou as mãos e colocou as entre as coxas. Aos poucos, seus olhos umedeceram, um pouco mais e as vistas já se afogaram, em seguida, a pele rosada do rosto, era lavrada por um rego d’água que descia morno, cristalino, carregado de frustrações e sentimentos desconexos.

Soluçou baixinho para nem ela mesma ouvir. As vezes um calafrio lhe descia pelos braços, outras vezes pelas pernas, sentia algo estranho no peito. Sentiu frio, mas não se cobriu. Sentiu solidão, mas nem pensou em chamar o marido. Ficou em dúvida pelo que falou para o marido, mas sentiu-se bem por ter falado.

Se Jean Sylvie Daphné entrasse no quarto, iria dizer, como se não soubesse o que estava acontecendo e controlando a irritação: Uhai! Você está chorando? Por quê? Já sei! eu fiz alguma coisa, né? O que foi dessa fez?

Após perguntar, Jean Daphné sentaria no sofá e ficaria passando a mão na cabeça, se fazendo de culpado, só para a mulher começar a falar. Jean tinha uma teoria: quando a mulher dispara a falar demais, vai acabar em choro, mas se ela estiver chorando, faça ela falar. O choro passa ligeiro, fique do lado dela. Logo logo ela vai ficar uma seda. Limpa a casa, faz tira gosto, assiste jogo com você, lava a roupa numa satisfação! É uma maravilha.

Aimee aos poucos foi esticando o corpo na cama, perdeu a vontade de comer, soltou o cabelo, abraçou um travesseiro e virou para o outro lado, ficando de costas para a porta do quarto. A penumbra agora era leve, uma corrente de ar passou pelo quarto, seu cabelo balançou como se alguém o tivesse acariciado.

O amor que sentia pelo marido, se misturou com o medo que lhe assaltou sem lhe avisar, assustou como quando Jean lhe roubou um beijo no cinema. Sentiu saudades do marido, sentiu falta do seu calor, de suas piadas, sentiu falta dos seus abraços.

Aimee chorou por amor, mas logo riu. Era sempre assim, brigavam, gritavam, emburravam, discutiam, depois faziam as pazes e riam juntos por brigar por coisas tão bobas.

Charlotte Aimee Desiré da Cunha resolveu levantar e falar com Jean, afinal, ele sempre falava, sempre simulava estar perplexo com as coisas que ouvia durante as brigas. Charlote Aimee calçou sua pantufa de cor alaranjada com bolinhas pretas, vestiu sua camisola de algodão favorita.

Aimee caminhou lentamente, sentia o corpo leve, sentiu uma paz tão gostosa que alisava sua camisola e ria olhando para a pantufa, ria muito e riu mais ainda quando lembrou que um dia queria fazer as unhas de sua pantufa.

Jean Sylvie Daphné continuava deitado. Um braço estava debaixo da cabeça, seria seu travesseiro? O outro estava apoiado no encosto do sofá com os dedos retorcidos, a perna direita estava dobrada, a esquerda esticada sobre o descanso do braço.

Charlote Aimee aproximou andando pé ante pé, andando curvada, com os cabelos quase tampando todo o rosto. Quando alcançou Jean, brincou de deslizar seus cabelos pelo corpo dele, começou pelo pé, até o rosto e retornou para onde começou.

Charlote Aimee puxou o marido, acreditando que o assustaria. Jean Sylvie Daphné da Cunha caiu no chão de olhos abertos. Ele estava morto.
 
 Chou-chinois              Repolho Chinês.        
Chou rouge                  Repolho Vermelho.
 Pomme de terre          Banana da Terra.
Céleri                            Aipo.
Endive                          Escarola.                     
 Mâche                         Salada de Cordeiro. 
Topinambour               Alcachofra-Girassol.