O poço

Queno surgiu por entre as árvores.

Estava tão pálido quanto da última vez, mas parecia enfim, ter alcançado um pouco de paz.

Ele se aproximou timidamente. Os pezinhos descalços pisando na relva molhada.

-Você voltou. –Comemorou com a voz fraca.

Não. Eu não tinha voltado, estava apenas de passagem.

Senti uma ponta de inveja da serenidade que testemunhei em seu semblante e da eterna meninice.

O tempo não tinha passado para ele.

Para mim, não bastasse marcar minha pele, lembrava a todo o momento, que se tornava escasso.

Nossa casa transformara-se num amontoado de pedras, o mato encobria quase tudo. Em meio á paisagem de ruína e abandono, avistei o poço.

Vinte anos depois, ele continuava lá. Protegido e isolado.

Debrucei-me sobre a amurada, uma parede baixa que o padrasto levantara ao redor da escavação.

Queno precisou de ajuda para afastar as tábuas que cobriam sua embocadura.

Os braços magros nunca tiveram força, causa muitas vezes, dos castigos infligidos pelo marido de nossa mãe.

Permanecemos longos minutos em silêncio, vislumbrando o fundo da perfuração, arremessando pequenas pedras, esperando ouvir o encontro delas com a água.

-Eu não voltei, Queno.-Revelei determinada.- Só preciso das respostas.

Apertei suas mãos geladas entre as minhas. Lamentei pelo frio do qual ele ainda não conseguira se libertar.

-Ajude-me a saber...

Ele compreendeu a angustia que me conduzira àquele lugar.

Há duas décadas eu percorria clínicas psiquiátricas, assombrada pelas dúvidas, vagando entre a fantasia e realidade.

Olhamos na direção da casa.

Novamente enxerguei o horror evidenciado na face maltratada de minha mãe.

-Ana, venha para dentro. - Ela não cansava de ordenar após a morte do padrasto.

Eu obedecia.

Quando entrava, ajoelhava-me diante do altar improvisado, onde duas velas permaneciam acesas.

-Peça perdão, Ana.- Ela implorava com desespero.

-Reze e peça perdão. -Suplicava sem conseguir me afrontar, a vergonha e o pavor delineados em seu rosto.

O padrasto castigava Queno com o cinto de fivela.

Atirava para ele as sobras de comida que ficavam sobre a mesa.

Tinha deixado meu irmão com medo, os olhos assustados aguardando o próximo suplício.

Os homens resgataram o corpo inchado do fundo do poço.

-Foi o Queno!-Afirmei sem medo.

“Foi o Queno”, gritei todas as vezes.

Uma tarde o doutor Célio veio com a ambulância.

Na partida, não procurei a figura atormentada de minha mãe.

Encontrei meu irmão resguardado pelas árvores. O corpo magro e debilitado, marcado por cicatrizes e pequenas mutilações. Chorava por ele e por mim.

-O padrasto era mau.-Afirmei sem culpa, enquanto o arranjo de madeira voltava a cobrir a perfuração, que por anos abastecera nossa casa com água; para onde meu irmão era arrastado nas manhãs frias como “lição”.

Queno concordou.

O padrasto era mau. O sarilho o atingira com velocidade, provocando o desequilíbrio e a queda.

Não fossem os homens, teria ficado lá embaixo.

Caminhamos até o carro estacionado na estrada de terra.

-Você ficará bem?-Perguntei aflita .

Ele assentiu com um sorriso. Pela primeira vez eu o via sorrir abertamente.

-Não foi você, Queno.-Confessei antes de entrar no automóvel.

-Como podia ser?-Perguntei dominada pela tristeza e saudade que a separação definitiva começava despertar.

No cemitério da cidade meu irmão repousava ao lado de minha mãe e de seu algoz.

Mais de vinte anos haviam se passado desde o dia em que Queno fora encontrado desfalecido ao lado do poço. As mãos geladas abraçadas ao corpo encolhido.

Um menino doce e frágil, que jamais teria força para girar o sarilho que desequilibrara o padrasto.

-Não foi você ,Queno, repeti a mim mesma, relembrando aquele dia.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 07/05/2017
Reeditado em 08/05/2017
Código do texto: T5992240
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