Galinha d’água! Que d’água é?
Cozida ou assada?
Do jeito que vier!

 
                       
 
O vento de ontem,  enche o coração do vaqueiro com lembranças da  infância  e meninice e traz à memória as noites de lua cheia no alpendre da fazenda, as brincadeiras de galinha d’água e as enchentes do Saracura.
Ele atirava uma pedra no meio do rio e os meninos mergulhavam feito martim-pescador e traziam a pedra de volta, nadando com uma mão só. As meninas se banhavam vestidas, noutro ponto,  retirado dali. Mas na hora de voltar pra casa... Na hora de voltar pra casa, o reencontro dos gêneros se dava no caminho, com alegreia, muita algazarra e respeito. Elas sinalizavam a  partida, no tom da conversa em voz alta,  quando se preparavam para ir embora.
Lau quis perguntar que significava reencontro dos gêneros. Era palavra nova para ele, mas pelo desenrolar da conversa, compreenderia.
Percebeu que João Velho tinha estudo, mas ele Lau, não se acanhava; ao contrário, ficava atendo para aprender com os mais sabidos. E usava o novo vocabulário, na próxima oportunidade que houvesse.
— Continue, Nhô! Como era o reencontro dos gêneros?
 Lau criava imagens na mente. Não fora um rapaz namorador. Talvez João  o tenha sido.
 — Diga homem, diga logo!
— O vozerio era sinal para os meninos que também faziam o  mesmo, e o encontro acontecia. Nada de galanteio, a não ser muito sutilmente, e só com os olhos, olhando nos olhos e tirando ligeiro.
Lau gravou a palavra galanteio, e associou a outra que remetia a alguma coisa relacionada com galo. Mexeu-se na sela> Sentou de banda, flexionando uma perna e retesando a outra.
— Aceito um gole de água.
— A água acabou, mas estamos quase chegando.
— Então termine de contar a história, Nhô!
— O capim orvalhado roçava nas pernas, e as meninas aproveitavam para dar um grito cheio de dengo: ‘Ui!’ O rosto ficava vermelho, e o coração disparava.
— O coração das meninas?
— Estou falando do meu. Como vou saber que o coração dos outros disparou?
João sabia, mas não quis dizer.Guardou para si mesmo as emoções e o medo, quando uma cobra travessou a trilha.
Acabou contanto:
— No dia em que um cascavel atravessou a vereda. Senti o coração de Euzébia saltando fora.
Percebeu que estava prestes a revelar uma intimidade.
— Coisa à-toa, Lau. Coisa de menino metido a homem!
— Já começou, agora conte. Com todo respeito à sua senhora. Naquele tempo o senhor era solteiro...
— Pois aí, o coração de Euzébia disparou assustado. Pegou minha mão e pôs sobre o peito dela. Meu coração também acelerou.
João Velho percebeu que tinha confiado seu segredo a um estranho. 
— Euzébia tirou minha mão dali, e me olhou de um jeito tão bonito... Reparei direito: os olhos dela eram verdes, contornados por um til bem caprichado em volta de cada um deles. Desenhados como se fossem feitos a lápis por bom artesão.
 Euzébia não tinha queda por  homem bonito. João não era bonito nem feio, era simplesmente, João, aquele que mexia com ela por dentro, lá no coração da alma... Acontecia às vezes um roçar de mão, quando os pés desviavam de uma pedra no caminho, acontecia, sem querer, querendo muito. Aí as costas das mãos se tocavam. Ela puxava demonstrando susto lavado de vergonha, e ele, envergonhado, punha a mão no bolso.
— O amigo é nativo dessas redondezas?
— Meu umbigo foi enterrado no barranco do Saracura! E o senhor?
— Nasci em Umbuzeiro, no estado do Pernambuco. Vim morar em Minas, faz mais de  quarenta anos!
Não quis dizer que era pai solteiro. Tinha um filho formado em medicina e tirado a escritor. Mas o desgosto que o afastara do Pernambuco, não foi o menino. A mãe do menino foi a grande decepção de Lau. Ele propusera casar, quando ela ficou grávida, mas Enói se negará, chegando a dizer que não precisava dele para nada. Foi quando Laudelino fez a matula e deixou o sertão pernambucano, ameaçado de morte pelo pai da moça.
— Viúva da seca, ela se tornou.
— Não, Nhô!  Nunca fui casado. Enói tinha bom emprego e educou o menino, sem precisar de mim. Morava na capital. Eu é que era um matuto da roça, um vaqueiro. Talvez por isso não quis casar comigo. Deixo essa vida de vaqueiro não! Nem por nada. Sei que o menino hoje é formado, e mora em Recife, mas a notícia que tenho dele é só por carta dos parentes.
— Tenho um filho bastardo. Aliás, não gosto do termo bastardo. Filho é filho. 
--Não conhece teu filho?
-- Não! Mas soube que é casado com uma mineira e tem filhos.
-- Dói muito não conhecer o filho de suas entranhas.
--Dói - respondeu Nhô Velho.
E se calaram.
Laudelino percebeu a dificuldade de Nhô que tentava fazer um cigarro de palha.
— Não force seu braço. Dê cá o fumo e a palha...
Fez um palheiro e o entregou a João Velho, sem passar a língua para fechar o cigarro. João agradeceu e afastou todo sentimento de culpa por ter feito confidências a um estranho. Lau não era mais um estranho para  Nhô Velho.
O sol se escondeu detrás de uma nuvem azul-acinzentada.
— Parece que vai chover!
— Não! É apenas uma nuvem passageira — disse Lau.
Também passageira era sua vontade de se casar. ‘Qual a mulher que  vai querer um homem com quase sessenta! Até emprego fica difícil nesta idade.’ Guardou seus pensamentos para si mesmo, e cavalgaram duas horas contadas no passo dos burrinhos. Finalmente, venceram a  descida grande que escorrega para o Saracura.
— Estamos quase chegando. Mais um taco  de hora e dá pra ver a  sede da fazenda Campo Grande, ainda o sol com o olho de fora. Vai chover não! O sol já está  caçando cama pra dormir.
— Nem fale em dormir. Estou viajado.
— Não é por menos. Montado num burro!
— É duro, mas é bom. Pisa firme. Pra andar nesses capotes de serra, o burro navega melhor que o  cavalo.
— Não conheço burro macio. Se existe um, nunca fui apresentado a ele.
Lau riu.
— Qual é sua Graça?
— João Ferreira da Silva! Conhecido por João Velho. Fico mais agradecido com o derradeiro nome.
-- O nome diz muito. É a identidade da pessoa. João é  nome bom. Lá onde eu morava, tinha um animador de Quadrilha bom demais da conta!  Chamado João Batista. Tocava sanfona, e o pai dele tocava pífano. O filho também tocava sanfona, mas não chegava nem nos pés do pai.
— Como devo tratar vossa senhoria?
— Meu nome de assento é Laudelino da Paz. Tratado por Lau.
— O senhor gasta, seu Lau?
— Agradecido!
— Pode enrolar outro  palheiro  pra mim?
— Não se acanhe.
Com dificuldade, João  retirou do bolso uma pedaço   de arapiraca;  palha de milho e um canivete. Meio sem jeito, Laudelino cortava e deixava o fumo picado miúdo, cair na palma mão. Aparou as pontas da palha de milho, e derramou o fumo naquela pequena manta, semelhante a uma casca de  baunilha, aberta a fio comprido. Enrolou, apertando o fumo, mas não passou a língua nas bordas...
— Agora o senhor acaba de fechar.
João Velho puxou uma baforada. Levantou o queixo, e soprou a fumaça  para cima. Chegou mais perto da outra montaria.
— Arrede, seu João, meu animal não aceita nada por trás!
— Pareceu manso!
— Tem sestro.
— Se fosse só bicho que tem sestro...Conheci uma polaca na Vila Mimosa...Conto não! É  coisa feia...
— Estou gostando se sua prosa.
— Também tive simpatia por seu modo. Por que veio sozinho caçar onça?
— Vingança!
— A bicha deu baixa na criação?
— Não quero falar disso agora. Não apanhamos intimidade ainda. Guardo meu sentimento na bacia dos olhos, para derramar em mim mesmo. Depejo sozinho, lá dentro do coração. O senhor me pareceu uma pessoa boa. Acho melhor a gente se tratar de compadre. Aproxima mais o sangue.
— Fico satisfeito com a proposta, compadre João.
— Se Euzébia ainda pudesse ter filho, eu dava pro sinhô batizar.
— Fico feliz, compadre Velho.
— Você se resolve, Laudelino! Ou você me chama de João, de Joao Velho, ou Nhô Velho. Só não precisa chamar pelo nome completo. Nome de João Ferreira da Silva, todo mundo tem.
— Respeito seu gosto, compadre Nhô.
—Tem coisa de gostar mais. E a gente gosta muito quando é chamado pelo nome que gosta. Tem apelido que faz mal! Quero dizer: faz mal lá dentro da pessoa. Lá na vaidade dela. Todo homem tem seu orgulho de homem dentro si. Quem já viu dizer que alguém goste de ser chamado Zé da Égua. Só por conta de que em sua mocidade, fez aquela besteira com animal?...
— Quase todo moleque fez isso, compadre!
— Mas é pecado. Arrependo muito.
— Sê besta Nhô! Deus sabe. Ele mesmo pôs brasa na fornalha. Atiçou  fogo no corpo da mocidade, pra geração crescer. Morre muita gente. Tem que ter vivente nascendo, senão o mundo acaba! Quando chega a  velhice,  Deus  apaga o fogo. Joga água fria  na fervura. Lava a panela suja, e fica tudo limpo de novo. Alvejado e areado com sabão. Tira o encardido todo e tudo fica branco de novo. Sem mancha. Sem pecado. Todo velhinho é quase santo...
— Deve ser.
—É...Se a roupa pega nódoa ou fica destroçada demais,  a gente joga fora, ou põe no pesado  do dia-a-dia, põe para tomar sol e suor no lombo do dono, até se puir e virar pó. Mas, Deus joga fora não! Lava e põe no sol pra quarar. Porque mesmo lavado, fica fedor de coisa ruim, aí Deus põe no sol pra sair o mau cheiro.
— O senhor está falando de purgatório? Essa prosa é melhor trocar, na presença do padre!
— É certo! Vaqueiro entende é de boi, cavalo, invernada... Mas quando falo de Deus, sinto minha alma clareada, lavada em sete águas.
— Parece que Deus  fica satisfeito quando se fala nele.
— Fica. Falar bem até das pessoas é bom. Não falo mal de ninguém. E se o sujeito vier falar mal de outro perto de mim, eu disparo a fazer elogio. Falar bem  da pessoa  mal falada. Aí, o língua de trapo  fica desconsertado, quando não vai embora, muda de assunto.
— O compadre entende muito  de religião!
— Posso entender, mas não nunca vi Deus! Ele deve existir. Já me livrou de muitos perigos.
— Deus também nunca vi,  compadre Lau. Mas no inferno eu já fui.
— Foi no inferno?
— Fui!
— Viu o capiroto?
— Quase coisa.
— Cruz, credo. Pois conte! Mas deixe eu me benzer primeiro.
— Faça o Glória ao Pai direito. Esse gesto que fez é de tanger mosca!
E João Velho fez o sinal da cruz, antes de narrar sua visita ao inferno. Lau mostrou medo. E também se benzeu. Queria ouvir a história e não queria.
— Faz muito tempo! Assim que me senti com o gangote grosso, arrumei a mala e fui caçar emprego no Rio de Janeiro. Tinha quase nada não! O quê um rapaz nascido e crescido na roça tem pra botar na bagagem? Até o saber é pouco!
— Conta logo, homem de Deus!
— Pois bem! Meu primeiro emprego foi numa chácara. Num era bem dentro da capital não! Era puxado pra fora, numa cidade montada no morro. Lugar bonito pra morar...
— Conta logo, homem! Não precisa passar o endereço. Quero ir lá não!
— Como eu ia dizendo. O primeiro emprego não deu certo. A culpa foi minha. Não roubei, nem matei, mas fiz besteira.
— Foi por causa disso que o senhor veio embora?
— Não! Mudei pra capital. Foi na capital que conhecia a VM da rua Ceará.  Recomendo ninguém ir lá não!
— Estou ficando ansioso. Quero endereço não. Conte a história.
— Mudei pra capital. Foi lá que vi a desgraça! O inferno.
— Viu ou  não viu o capiroto?
— Já disse que não vi.
— Com licença da palavra: que merda você viu?
— Pior que isso compadre. Fedor de enxofre.
— Então diga!
—Tem uma vila lá no Rio de Janeiro,  cheia de casa.
— Qual é a vila que não é cheia de casa, compadre?
— Cheia de casa de prostituição. É uma vila só de rapariga. A rua, d’um lado e do outro é só de mulher da vida. Mulher bonita, mulher feia, nova, velha...Tem mulher vestida no jeito de ir pra festa, outras com roupa, no ponto de esperar homem na cama. Pouco pano cobrindo as vergonhas, quase um filó. Dá pra ver tudo: peito mole, peito duro, peito caído, peito empinado... Lá embaixo, o que não está coberto de gordura, é  tudo igual na feia e na bonita, do mesmo jeito, porque elas passam o gilete. Também põem o gilete escondido, pregado no céu da boca, pra cortar homem que não paga pelo serviço...Tem  homem que fica por lá, atrás de mulher, outros, caçando homem pra se deitar junto. Todo mundo caçando jeito de se divertir. Bebendo, curtindo música e dançando. Foi na dança que vi a  feição do capiroto, e senti o fedor de enxofre. O capiroto requebra no corpo daquelas mulheres,  fazendo posição de quem vai vadiar,  provocando assanhamento. Horror, compadre! Num lugar daquele, não tenho coragem de beber nem um copo d’água. E vou contar pro senhor: é dentro da cidade, arribado da praça da Bandeira... pouquinho.
— Quero endereço não, Nhô Velho! Conte só a história.
 Laudelino  mostrava-se irritado.
— O lugar é muito conhecido no Rio. Jornalista vai lá fazer retrato pra botar no jornal. A televisão mostra para o mundo todo. Acha que é vantagem. Sujeira que a gente não pode retirar, empurra pra debaixo do tapete. Não tem pra quê mostrar ao mundo. Só estou contando que você me pediu.
— Pedi, e até agora você não contou.
— Vou contar agorinha: As mulheres chegavam lá empurradas da sorte. Sem maridos, fugidas da guerra...naquele tempo...
— Adiante essa parte. Você não é do tempo da guerra.
— Bom, quando estive por lá, as plrostitutas estrangeiras não estavam mais.   Tem história delas em livro, mas num dá o recado de modo de se  entender. Ou dá, e o povo num entende. Tem que ir lá pra ver.
— Vou não, compadre, já disse que não vou!
— Cansadas de apanhar dos maridos — contando já nos tempos de agora,  —  as mulheres se separam deles e vão pra Vila Mimosa. Chegam com meia-vida,  e são obrigadas pela dona do cabaré a se misturarem com aquelas que já têm mais de cem mil quilômetros rodados, precisando fazer serviço de motor e lanternagem. É ordem da madama: tem que se misturar para o freguês escolher. Então, ela acende uma luz negra; fica todo mundo igual. Quem se deu mal na escolha, tem que pagar, nem que não faça nada. Entrou no quarto, paga.
— Que inferno é esse que não tem capiroto!
— O capiroto está lá , só ninguém ver ele em pessoa, com chifre e tridente. E ele  é besta de se apresentar  assim? Fica dançando e se requebrando no corpo daquelas mulheres, convidando, convidando pra vadiagem. Pra vadiar, tem que casar na igreja, pra Deus abençoar. Penso assim, compadre. O pior mesmo é quando junta homem com homem e mulher com mulher! Como vai nascer ‘fi’ desse jeito? O  bicho homem está ficando escasso. Complicado demais para a gente entender. Se  não nascer mais crianças, o mundo acaba, porque todo dia morre gente...É preciso respeitar os gostos, mas não aprecio ver essas coisas. Quem quiser fazer, faça longe de mim!
— É assim mesmo! Tem gente que gosta de Deus. Tem gente que gosta do adversário. Vai de cada um. Tem gente que diz que homem beijar homem e mulher beijar  mulher é  normal. É a realidade do mundo! O mundo lá fora pode ser desse jeito... Comigo não! Coisa do mundo é do mundo. Também respeito, seja por doença ou safadeza, respeito, mas não quero pra mim, nem pra minha família. As  coisas do mundo devem ficar no mundo. A casa do homem é o santuário da família. Tolero, mas não aceito. Aceitar é outra coisa. Ninguém venha me obrigar a ser mulher. Nasci homem! Cabra macho! Não sou nordestino, mas penso igual a eles: homem é homem, mulher é mulher! Deus não criou o terceiro sexo. Isso é coisa do ‘demo!’. Quando o mundo todo estiver igual a Sodoma e Gomorra, vai cai enxofre do céu e acabar com todos os viventes. Até os animais vão pagar pelo pecado do homem.
Nhô olha admirado para  Lau, montado num burro velho, com as rédeas soltas,  sem fazer diferenciação.
— Não acredito que esse burrinho seu seja brabo! Não aceitar  nada por trás é outra coisa. Também num aceito! Mas  se anda com as rédeas soltas! É manso.
Lau riu.
— Dizem que burro não amansa. Acostuma com o dono. Esse aqui já teve tanto dono, que se acostuma com qualquer pessoa. Só num pode chegar no coice, isso não pode...
— Como é o nome dele?
— Cada dono põe um nome! Em minhas mãos ele atende por Fome.
— Fome, compadre! Nome esquisito.
— O dono caça é nome esquisito pra botar nos bichinhos!
— É mesmo. O meu chama Xerém. Quem monta nele fica quebrado igual milho de  pilão.
— Pra ter ganhado o nome de fome. Seu burrinho deve comer demais!
— Nem não! Ele nasceu na beira de um rio seco, lá nas bandas de onde veio. A mãe morreu na parição. Ele passou fome e sede. Morreu de fome...quase. Ai, pegou o nome pra ele, assim, que caiu em minhas mãos. O senhor  entente...
Pausa.
— Ia pensando comigo: Ora, me sinto vingado, compadre  Lau!
— Vingado?
— Vingado desse bicho que levo as orelhas nos alforjes.
— Ela comeu bezerro?
— Comeu, mas isso não conta. O padrão tem muito. Ela comeu meu filho, e eu só tinha um. Quero dizer, com Euzébia eu só tinha um.
— Fico de coração  rasgado, de luto com o senhor.
— Tem luto não! Honrei o sangue de meu filho. Tristeza tem. Fico pensando na mãe. Era muito apegada ao menino... Por pouco num perdeu também o marido. Quando a onça se aproximou, eu já estava machucado da queda. Botei a carabina pra matar o burro, mas não tinha bala na agulha. Tivesse matado, tinha me arrependido, porque depois que a onça apareceu, assim, do nada, ele não arredou o pé de mim. Parece que se entregava para morrer junto. Até serviu de apoio para encostar carabina. Eu estava fraco, se não apoiasse n’alguma coisa, era perigoso errar o tiro e o bicho me comer. Fiquei detrás do burro. Mais para me apoiar. Medo, tive não! A forquilha valeu muito, mas eu não tinha mão pra segurar ela. Tinha mas estava sem  serventia. Foi como se  o burro tivesse segurado a forquilha pra mim, ou um anjo! Euzébia só vive agarrada no terço. Reza de manhã, e de noite, antes de deitar e na hora que se levanta. Tem vez que fico até acanhado de mexer com aquelas coisas, depois da reza. Acabo vadiando. Deve ser pecado não! Foi Deus que deixou. Fez o  homem e a mulher. Até os bichos tem o  macho e a fêmea...
Laudelino não deixou mostrar os dentes. Nem  pôs a mão na boca. Riu pra dentro.  O coração estava rasgado... Não era hora de rir.
— Com sua licença, Nhô! Estou meio sem jeito de perguntar, mas o senhor achou o cadáver?
— Só o batedor e a sangueira. Tive coragem  de farejar não,  seu Lau!  Só me subiu a ira. Se a arma não disparasse, eu ia de unha na onça. Caçava um jeito de fundar o dedo no ‘zói’ da malvada ou no traseiro... O lugar que tivesse um buraco, eu  enfiava o dedo  e arrancava um  pedaço de  carne dela. Morria grudado nela igual tamanduá-bandeira.
— Sou compreendido de sua dor.
— O tempo cura a ferida, mas a cicatriz, fica. Não tem jeito! Rasgou demais.
— Se o compadre não se zangar. A história da visita ao inferno acabou, ou o amigo deixou uma parte pra contar depois?
— Estive umas duas ou três vezes no Teatro Municipal. Prestei atenção. Eles contam estória dividida em pedaços. Conta um pedaço, fecha a cortina. E quando abre, mostra o visconde bebendo numa mesa, arrodeado de prostituta, como na Vila Mimosa que João Guimarães diz sem dizer. Aí, fecha de novo, e quando reabre, mostra a vida acontecendo, já de outro jeito,  e com outras pessoas. Mas é gente que não existe mais. Na VM de hoje é diferente, o povo sem nome, mostra a cara mesmo, nem precisa de ninguém fazer o papel. Quem tem nome a zelar, sabe como se divertir sem ser visto. Mas o capiroto tá vendo e bate palmas.
— Que diacho é VM, compadre?
—Homem, fica mais esperto! VM é Vila Mimosa, não desconfiou não?
— Hum!...
— Este é meu jeito. Fui até simples demais. Pois bem, aquelas mulheres foram perseguidas, mais da conta. Ninguém queria polaca morando perto. E foram dando jeito de escorraçar pra longe. Isso naquele tempo! Hoje ninguém mais sabe quem é quem... Quando estive lá, foi nesses tempos modernos. Tinha mais polaca não.  Vi mulheres tatuadas, seminuas a fervilhar nas calçadas e portas de bares; vi quartos enfileirados como lojas de galerias. Em cada porta uma mulher dizendo em voz alta: ‘Paga só dez reais por um beijo. O serviço completo na cama é vinte’.
— Que diacho é polaca?
— Aquele povo que veio de longe, do estrangeiro... povo claro, de olho azul. Gente que foi pra Vila Mimosa se prostituir pra não morrer de fome,  porque os maridos tinham morrido na guerra... Com o tempo,  polaca passou a ser o mesmo que meretriz, por conta da atitude daquelas estrangeiras. E na roça esse nome pegou nos  bichos, nas fêmeas dos bichos...Disso você sabe, compadre!
— O senhor é estuado, compadre Nhô!
— Assentei banco de escola...pouco. Aprendi pro gasto. Gosto mesmo é de correr atrás de boi arisco no mato.
— Minha leitura também é fraca, compadre Nhô, mas o amigo gasta bem a palavra.
João Velho suspendeu o chapéu em gesto de agradecimento. E gemeu.
— Não faça movimento, compadre, sua  cantareira quebrada. Esbarre aí, vamos fazer uma tipoia.
— Precisa não! Dou conta de chegar em casa.
— Como o senhor queira.
— Se  o senhor não se agastar, isso em sua matula é um berrante? — disse João Velho.
— É um berrante! Vaqueiro tem que ter essas coisas. Sou guieiro. Nem faço diferença. Pra mim tanto faz ir na frente ou no coice. Dou o recado. Gosto de sentir o cheiro de boi. O barulho dos cascos na estrada... ‘Vaqueiro sem boi é como rio sem água. ’
— Pois toque o berrante! De um jeito triste e alegre. Estamos chegando.
Laudelino puxou a cordinha que fechava o saco de pano. Soprou o berrante, imitando a vaca no curral chamando cria.
João Velho chorou.
Lágrimas libertaram sua alma e aliviaram as dores do coração.  Não teve vergonha alguma de chorar diante do amigo. Laudelino também chorou. Seu o coração rasgou-se ao meio. Ouviu o murmúrio de uma leve brisa.  Ajustou o bocal e ondas amenas, se  propagaram no ar,  anunciando a vitória.
Agora  o sol já enclinava a cabeça no travesseiro da serra. Mas, quando deixaram  Sete Passagens,  na fazenda Campo Grande, ainda era hora de boi procurar sombra.
 Vaqueiro Onofre parecia apanhado por um golpe de remorso, um sentimento  de culpa. ‘Por que não pôs José Lino junto com o pai? Turíbio Soberbo formou dupla com Capistrano. João Japuaçu acompanhou os dois. A trinca ficou fraca... E João Velho foi só.’
Pururuca seguiu José Lino.
Vaqueiro Onofre continuava remoendo sentimentos: Tudo diferente da ordem que receberam  de formarem uma trempe. O rapaz da cidade precisava ser olhado por ele, Onofre. Mas, João velho deveria ter se manifestado... formado uma trempe com o filho e mais outro. Nem não! Saíram de dois em dois, e João, sozinho. Usura! Nem deu fé. Generoso prometeu dar uma bezerra a cada caçador, porque na caça à onça, todo mundo corre o mesmo risco, então a paga é a mesma. Por certo, o pai de José Lino queria ser o matador de onça mais famoso de Juramento. Matou uma, e agora queria a outra. Fazer tudo sozinho. Sem ajuda de ninguém! Como da outra vez.
— João Velho tarda muito -- comentou um enxadeiro.
— A onça quando pega o cabrito, quer também o bode. Você sabe  disso, Onofre. Aqui na fazenda já teve muita miunça. O patrão acabou com elas desgostoso da  onça.
— Sem  corpo, não tem enterro!
— Se não pararem com essa conversa, vou acabar metendo a mão na ‘lata’ de um prosa ruim!
— Vejo mais coragem no pai do que no filho.
— Nem não! João é velho até no nome.
— Velho! João é homem até debaixo d’água. Pode não salvar a vida do filho, mas o couro da onça ele traz de lembrança no rabicho da sela.
***
Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...(obra em construção)